A PERSISTÊNCIA DA VIDA APÓS A GUILHOTINA - Conto Clássico de Terror - Alexandre Dumas
A PERSISTÊNCIA DA VIDA APÓS A GUILHOTINA
Alexandre Dumas
(1802
— 1870)
Esta narrativa de Alexandre Dumas integra o livro “Os Mil
e um Fantasmas” (“Les mille et un
fantômes”), de 1849. Escrito sob a influência de E. T. A. Hoffmann,
Washington Irving e Charles Nodier, contou, provavelmente, com a colaboração de
Paul Bocage (1824 — 1890) e Paul Lacroix (1806 — 1844). Mais tarde, “A
Persistência da Vida após a Guilhotina” (título que adotamos para esta publicação)
inspirará o tétrico conto “O Segredo da Guilhotina”, de Villiers de
L’Isle-Adam. A tradução, que apresentamos ao leitor, de autor desconhecido do
século XIX, sofreu uma necessária adaptação, ou, mesmo, uma reescrita.
Conservou-se, porém, na medida do possível, o sabor especial da linguagem de
meados do século antepassado.
I — SOLANGE
— Eu acabava de sair da Abadia e
atravessava a praça de Taranne para ir à rua de Tournon, onde morava —
contou-nos o Sr. Ledru —, quando ouvi um grito de mulher pedindo socorro.
Não podiam ser malfeitores, pois
ainda não seriam dez horas da noite. Corri para onde ouvira os gritos e, ao
clarão da lua, que saía de uma nuvem, vi uma mulher a debater-se em meio a uma
patrulha de sans-culottes[1].
A
mulher também me viu e, percebendo pelos meus trajes que eu não era de todo um
homem do povo, correu em minha direção, exclamando:
— Ah, felizmente aqui está o Sr.
Albert, a quem conheço. Ele confirmará que eu sou realmente filha da lavadeira
Ledieu.
E ao mesmo tempo a miserável,
completamente pálida de trêmula, agarrou-se a mim como um náufrago à tábua de
salvação.
— Ainda que sejas a filha da
lavadeira Ledieu, não tens carta de civismo. Minha jovem, terás que me
acompanhar ao corpo da guarda — disse um dos patrulheiros.
A moça apertou-me o braço. Senti
quanta súplica, quanto terror havia naquele gesto. Compreendi tudo.
Como ela havia-me chamado pelo
primeiro nome que lhe ocorrera, chamei-a pelo primeiro nome que me passou pela
cabeça:
— Como! És tu, minha pobre Solange?
— eu disse. — Então, o que te aconteceu?
— Ah, estão vendo, senhores? —
tornou ela.
— Bem, parece-me que nos poderias
chamar cidadãos.
— Ouça, senhor sargento: não é
culpa minha se falo assim — disse a moça. — Minha mãe tinha fregueses da alta
sociedade e ensinou-me a ser polida. De modo que adquiri esse mau costume, bem
sei, esse costume da aristocracia. Mas — o que quer, senhor sargento? — não
consigo perdê-lo.
Havia nessa resposta, dada com a
voz trêmula, um imperceptível escárnio, que somente eu pude perceber. E
perguntava a mim mesmo quem seria aquela mulher, o que era, aliás, um problema
impossível de se resolver. O que, com certeza, fiquei sabendo foi que filha de
lavadeira ela não era.
— Sabe o que me acontece, cidadão
Albert? Eu fui levar a roupa lavada a uma freguesa e não a achei em casa; tive
de esperar, para receber o meu dinheiro, que ela voltasse. Ora, hoje em dia
todos têm necessidade de dinheiro. Anoiteceu. Como eu esperava voltar a casa
com a luz do dia, não trouxe comigo a carta de civismo. Caí no meio desses
senhores... perdão... desses cidadãos, que me pediram a carta. Eu lhes disse a
verdade, mas eles quiseram levar-me ao corpo guarda. Gritei e o senhor acudiu,
justamente um conhecido meu. Então, tranquilizei-me. Disse comigo: “Já que o
Sr. Albert sabe que eu me chamo Solange, já que sabe que eu sou filha da
lavadeira Ledieu, ele responderá por mim.” Não é mesmo, Sr. Albert?
— É claro que eu respondo por ela.
— Bem — disse o cabo da patrulha —,
mas quem por ti responde, Sr. faceiro?
— Danton. Serve-te este? E ele é um
bom patriota?
— Ah, se Danton responde por ti,
nada há o que se dizer.
— Pois bem. Hoje é dia de reunião
nas Cordeliers. Vamos ao clube.
— Vamos — disse o sargento.
Cidadãos sans culottes, avante!
Marchem!
O clube dos Cordeliers ficava no
antigo convento dos franciscanos, na rua da Observance. Lá chegamos
rapidamente. À porta, rasguei uma página de minha carteira, escrevi a lápis
algumas palavras e entreguei o bilhete ao sargento, para que o levasse a
Danton. O sargento entrou no clube e voltou com Danton.
— Como! — disse-me ele. — Então te
prenderam? A ti, meu amigo e de Camille! Um dos melhores republicanos que
existem! Ora, cidadão sargento — acrescentou, voltando-se para o chefe dos sans culottes —, respondo por ele. Isto
te é bastante?
— Respondes por ele. Mas repondes,
também, por ela? — indagou o obstinado sargento.
— Por ela? De quem estás falando?
— Ora, dessa mulher!
— Por ele, por ela, por todos
quantos os cercam. Estás satisfeito?
— Sim — disse o sargento. — E mais
ainda por te ter visto.
— Ora, esta satisfação pouco te
custa. Olha para mim a teu gosto enquanto aqui estou.
— Obrigado. Continua a sustentar,
como fazes, os interesses do povo e, tenhas certeza, o povo te será agradecido.
— Sim! E eu conto muitíssimo com
isso — disse Danton.
— Permite-me que eu te aperte a
mão? — prosseguiu o sargento.
— Por que não? E Danton deu-lhe a
mão.
— Viva Danton! — bradou o sargento.
— Viva Danton! — repetiu a
patrulha.
E a patrulha retirou-se, conduzida
pelo seu chefe que, a dez passos dali, voltou-se e, agitando o barrete
vermelho, gritou mais uma vez “Viva Danton!”, grito que foi pelos seus
repetido.
Eu já ia agradecer a Danton quando
o seu nome, repetido mil vezes no interior do clube, foi por nós ouvido.
— Danton! Danton! — gritavam
inúmeras vozes. — À tribuna!
— Desculpa-me, meu caro — disse
ele. — Estás ouvindo. Apertemo-nos as mãos e nos separemos. Dei a mão direita
ao sargento; a ti, dou a direita. Quem sabe se o digno patriota não está com
sarnas?
E dando-nos as costas:
— Já vou! — disse com aquela voz
poderosa que agitava e acalmava as tempestades das ruas. — Já vou! Esperem por
mim!
E entrou no clube.
Fiquei sozinho à porta com a minha
desconhecida.
— Agora, senhorita — disse-lhe —,
diga-me onde quer que eu a leve. Estou às suas ordens.
— Ora, para a casa da lavadeira
Ledieu — respondeu-me, rindo. — Não sabe que ela é a minha mãe?
— E onde mora a Sra. Ledieu?
— Na rua Ferou nº 24.
— Pois vamos à casa da Sra. Ledieu,
rua Ferrou nº 24.
E pusemo-nos a caminho.
Descemos a rua
Fosses-Monsieur-le-Prince, ganhamos a Rua Fosses-Saint-Germain e, depois, a rua
do Petit-Lion. Chegamos à praça Saint-Sulpice, e, em seguida, à rua Ferou.
Em todo trajeto, não trocamos
palavra. Somente aos raios da lua, que brilhava com todo o seu esplendor, pude
examiná-la com vagar.
Era uma encantadora moça de vinte a
vinte e dois anos, morena, com grandes olhos azuis mais espirituosos que
melancólicos, nariz fino e reto, lábios zombeteiros, dentes como pérolas, mãos
de rainha e pés de menina. Tendo tudo isto, conservava, sob os vulgares trajes
da filha da lavadeira Ledieu, um tom aristocrático que, com justa razão,
despertara a desconfiança do valente sargento e da sua belicosa patrulha.
Paramos ao chegar à porta e
olhamos, em silêncio, um para o outro.
— Então, o que deseja de mim, meu
caro Sr. Albert? — disse-me, sorrindo, a desconhecida.
— Eu queria lhe dizer, minha cara
senhorita Solange, que não valia a pena de nos termos encontrado para tão
depressa nos separarmos.
— Ora, peço-lhe um milhão de
desculpas. Pois acho que, muito pelo contrário, valia bem a pena, porque, se
não o tivesse encontrado, eu teria sido levada ao corpo da guarda e,
verificando eles que eu não era filha da lavadeira Ledieu, teriam descoberto
que eu era uma aristocrata e, muito provavelmente, teriam cortado a minha
cabeça.
— Então confessa que é uma
aristocrata?
— Não confesso nada.
— Então ao menos diga-me o seu
nome.
— Solange.
— Bem se vê que esse nome, que ao
acaso eu lhe atribuí, não pode ser o seu.
— Não faz mal. Gosto dele. E
conservo-o, ao menos para o senhor.
— Que necessidade há de conservá-lo
para mim, se nós não nos veremos mais?
— Não foi isso o que eu disse.
Falei, apenas, que, se nos tornarmos a ver, será inútil ao senhor saber como me
chamo, assim como eu saber como o senhor se chama. Eu o chamei de Albert.
Conserve esse nome, assim como eu conservo o de Solange.
— Está bem! Mas ouça, Solange... —
disse-lhe.
— Estou ouvindo, Albert — ela me
respondeu.
— É uma aristocrata. Confesse!
— Se eu não confessasse, o senhor
adivinharia. A minha confissão perde, pois, muito de seu mérito.
— E, na qualidade de aristocrata,
está proscrita.
— Isto não é de todo inexato.
— E se oculta para evitar
perseguições...
— Na rua Ferou nº 24, na casa da
lavadeira Ledieu, cujo marido foi cocheiro do meu pai. Bem se vê que não tenho
segredos para o senhor.
— E seu pai?
— Quanto aos que são somente meus,
não tenho segredos para o senhor, meu caro Albert. Porém, os meus segredos não
são os do meu pai. Meu pai também está escondido até achar uma ocasião de
emigrar. É só o que posso dizer.
— E a senhorita, o que pretende
fazer?
— Acompanhar o meu pai, se for
possível. Se for impossível, deixá-lo partir sozinho e depois segui-lo.
— E hoje, quando foi presa, voltava
da casa de seu pai?
— Sim.
— Ouça-me, querida Solange.
— Estou ouvindo.
— Viu o que aconteceu esta noite.
— Sim. E pude verificar a medida de
sua influência.
— Infelizmente, minha influência
não é grande. Todavia, tenho alguns amigos.
— E nesta noite conheci um deles.
— E a senhorita bem sabe que ele
não é dos homens menos importantes da época.
— Pretende empregar a sua
influência para facilitar a fuga de meu pai?
— Não. Reservo-a para a senhorita.
— E para o meu pai?
— Para seu pai, tenho outro meio.
— Tem outro meio! — exclamou
Solange, tomando-me a mãos e olhando para mim com ansiedade.
— Se eu salvar seu pai, conservará
uma boa lembrança de mim?
— Serei grata ao senhor por toda a
vida.
E proferiu essas palavras com
adorável inflexão de antecipada gratidão. Depois, olhando para mim, suplicante,
disse:
— Mas isso lhe será suficiente?
— Sim — respondi.
— Oh, eu não estava enganada! O
senhor tem um nobre coração. Agradeço-lhe em meu nome e em nome do meu pai. E
mesmo que não tenhamos sucesso, ainda assim sou agradecida pelo que o senhor já
fez.
— E quando nos veremos novamente,
Solange?
— Quando o senhor precisa
encontrar-me?
— Espero, amanhã, dar-lhe uma boa
notícia.
— Então, vemo-nos amanhã.
— Onde?
— Aqui, se quiser.
— Aqui, na rua?
— Sim, aqui. Bem se vê que é o
lugar mais seguro. Estamos a conversar há meia hora, junto a esta porta, e
ninguém passou.
— Por que não vou à sua casa? Ou a
senhorita não vem à minha?
— Porque, se o senhor vier à minha
casa, comprometo a boa gente que me dá asilo. Se eu for à sua, comprometo o
senhor.
— Então, está bem. Pegarei a carta
de civismo de uma das minhas parentes para a senhorita.
— Para que guilhotinem a sua
parente, caso me prendam.
— Tem razão. Conseguirei uma carta
com o nome de Solange.
— Muito bem. Verá que Solange
terminará sendo o meu verdadeiro nome.
— A que horas nos veremos?
— À mesma em que hoje nos
encontramos.
— Certo. Às dez horas. Mas, como
nos reuniremos?
— Nada mais simples: às cinco para
dez, o senhor estará na porta. Às dez, eu descerei.
— Então, até amanhã, às dez horas,
querida Solange.
— Amanhã, às dez horas, querido
Albert.
Quis beijar-lhe a mão; ela me
ofereceu a fronte.
No dia seguinte, às nove e meia, eu
estava na rua. Às quinze para as dez, Solange abria a porta. Cada um de nós
comparecera ao encontro antes da hora marcada.
Aproximei-me rapidamente.
— Vejo que me traz boas notícias —
disse ela, sorrindo.
— Excelentes: primeiro, aqui está a
sua carta.
— Falemos primeiro de meu pai.
— Seu pai estará salvo, se quiser.
— Se quiser, diz o senhor. Então o
que deverá fazer?
— É preciso que confie em mim.
— Isto já está feito.
— A senhorita o visitou?
— Sim.
— Então quis se expor
deliberadamente?
— O que fazer? Era necessário.
Porém, Deus nos protege.
— E disse tudo ao seu pai?
— Disse que o senhor havia salvado
a minha vida e que talvez, amanhã, salvasse a dele.
— Amanhã, sim. Justamente amanhã,
se ele quiser.
— Como será, então? Diga, fale! Que
admirável encontro será este se tudo isso se realizar.
— Somente... — disse, hesitando.
— Então o quê?
— A senhorita não pode
acompanhá-lo.
— Oh, quanto a esse respeito, a
minha decisão já está tomada!
— Depois, tenho certeza que
conseguirei um passaporte para você.
— Falemos primeiro de meu pai. De
mim, falamos depois.
— Pois bem. Eu lhe disse que tenho
alguns amigos, não foi?
— Disse.
— Hoje mesmo fui visitar um deles.
— E então?
— Um homem a quem a senhorita há de
conhecer de nome e este nome é uma garantia de coragem, de honra e lealdade.
— Qual é esse nome?
— Marceau.
— O general Marceau[2]!
— Ele próprio.
— Tem razão. Se ele prometeu,
cumprirá a promessa.
— Prometeu.
— Oh, quanta alegria eu lhe devo.
Vejamos, o que ele lhe prometeu? Diga!
— Prometeu servir-nos.
— Mas como?
— Do modo mais simples. Kléber[3] acabou de nomeá-lo general em
chefe do exército do Oeste. Ele parte amanhã à tarde.
— Amanhã à tarde... Não temos tempo
de preparar coisa alguma.
— Mas nada há o que preparar.
— Não estou entendendo...
— O general lavará consigo o seu
pai.
— Meu pai?
— Como secretário. Chegando a
Vendeia[4], seu pai há de obrigar-se para com
Maceau a nunca servir contra a França e numa noite irá fugir para algum
acampamento de vendeanos, daí irá à Bretanha e de lá embarcará para a
Inglaterra. Quando se achar em Londres, mandará notícias. Conseguirei um
passaporte para a senhorita, que irá encontrá-lo lá.
— Amanhã! — exclamou Solange. — Meu
pai partirá amanhã!
— Mas não há tempo a perder.
— Meu pai não está ciente de nada.
— Conte-lhe tudo.
— Agora!
— Sim, agora!
— Mas como, a estas horas?
— A senhorita tem uma carta de
civismo e eis aqui o meu braço.
— Tem razão. Dê-me a carta.
Entreguei o documento a ela, que o
meteu na bolsa.
— Agora, dê-me o seu braço. E
vamos.
Descemos até a praça Taranne, onde
na véspera eu a havia encontrado.
— Espere-me aqui — disse-me.
Assenti com uma mesura e esperei.
Ela desapareceu na esquina do
antigo palácio Matignon. Depois, ao fim de quinze minutos, voltou.
— Venha — disse ela. — Meu pai
deseja vê-lo e agradecer-lhe.
Ela tomou o meu braço e me conduziu
à rua de Saint-Guillaume, em frente ao palácio Mortemart.
Ali chegando, tirou do bolso uma
chave, abriu uma portinhola, deu-me a mão, levou-me ao segundo andar e bateu de
um modo especial. Um homem de quarenta e oito para cinquenta anos abriu a
porta.
Estava vestido como um oficial
mecânico e parecia exercer o ofício de encadernador. Mas logo às primeiras
palavras que me disse, aos agradecimentos que me dirigiu, o fidalgo se
revelara.
— Senhor — disse-me ele —, a
Providência o pôs em nosso caminho e como enviado da Providência eu o recebo.
Será verdade que pode e, especialmente, que quer me salvar?
Contei tudo a ele. Disse-lhe como
Marceu se encarregara de levá-lo na qualidade de secretário e só lhe pedia a
sua promessa de não se armar contra a França.
— Faço essa promessa
espontaneamente e a repetirei.
— Agradeço-lhe em nome do general e
do meu.
— E quando parte o general?
— Amanhã.
— Deverei ir para a casa dele esta
noite?
— Quando lhe aprouver. Ele já o
espera.
O pai e a filha se entreolharam.
— Acho que seria mais prudente que
o senhor fosse hoje mesmo, meu pai — disse Solange.
— Sim. Mas, se me agarrarem, não
tenho carta de civismo.
— Aqui está a minha.
— E o senhor?
— Eu sou conhecido.
— Onde Marceu mora?
— Na rua da Universidade nº 40, na
casa de sua irmã, senhora Desgraviers-Marceu.
— O senhor nos acompanha?
— Eu os seguirei de longe.
Escoltarei a senhorita, quando chegarmos.
— E como Marceu saberá que sou o
homem de quem o senhor falou?
— Entregue-lhe esta roseta tricolor[5]. É o sinal combinado.
— Como lhe mostrarei a minha
gratidão?
— Entregando-me a salvação de sua
filha, como ela me entregou a sua.
— Vamos.
Ele pôs o chapéu e apagou as luzes.
Descemos ao clarão da lua que se infiltrava pelas janelas da escada.
Na porta, ele deu o braço à filha,
tomou à direita e, pela rua dos Santos Padres, foi ter à rua da Universidade.
Acompanhei-os sempre a uma
distância de dez passos.
Chegamos ao nº 40 sem ter
encontrado ninguém no caminho.
Aproximei-me deles.
— É um bom sinal — disse. — Agora,
quer que espere ou que suba?
— Não. Não se comprometa mais.
Espere aqui por minha filha.
Inclinei-me, numa mesura.
— Mais uma vez — disse ele —, muito
obrigado e adeus. A língua não tem palavras que traduzam os sentimentos que lhe
dedico. Espere que Deus um dia me faculte a oportunidade de manifestar-lhe toda
a minha gratidão.
Respondi apertando-lhe a mão.
Entrou. Solange o acompanhou. Mas,
antes de entrar, também apertou-me a mão.
Após dez minutos, a porta se abriu
novamente.
— Então? — disse-lhe.
— O seu amigo — respondeu-me
Solange — é decerto digno de ser seu amigo. Quero dizer que tem todas as
delicadezas. Compreende que eu ficaria feliz se ficasse com o meu pai até o
momento de sua partida. A irmã do general mandou fazer-me uma cama no seu
quarto. Amanhã, às três horas da tarde, meu pai estará fora de perigo. Amanhã,
às dez da noite, como hoje, se o senhor entender que a gratidão de uma filha
que lhe deve a salvação de seu pai vale a pena de o incomodar, vá procura-la à
rua Ferou.
— Decerto irei. Mas o seu pai nada
disse para mim?
— Nesta carta, que lhe dou, ele lhe
agradece pelo que fez, e lhe pede que, quanto o mais depressa puder, faça-me
sair da França.
— Há de ser quando a senhorita
quiser — respondi com o coração constrito.
— Ao menos, gostaria de saber onde
irei encontrar-me com o meu pai — respondeu, sorrindo-me. E prosseguiu:
— Oh, o senhor ainda não está livre
de mim!
Tomei a sua mão e a apertei de
encontro ao peito. Exibindo-me a testa, como fizera na noite anterior, disse-me:
— Até amanhã.
E, aplicando os meus lábios sobre a
sua testa, não foi só a sua mão que estreitei em meu coração, mas também o seu
coração palpitante.
Voltei à casa com o coração mais
satisfeito do que nunca. Seria pela boa ação que eu acabara de praticar? Seria
porque já amava aquela adorável moça?
Não sei se dormi ou se fiquei
acordado. Sei que em mim ecoavam todas as harmonias da natureza; sei que a
noite me pareceu sem fim e o dia imenso; sei que, ao mesmo tempo, desejando
precipitar as horas, desejava demorá-las para não perder um só minuto dos dias
que ainda teria que viver.
No dia seguinte, às nove horas, eu
já estava na rua Ferou.
Às nove e meia, Solange apareceu.
Dirigiu-se a mim e apertou-me nos seus braços.
— Salvo! — exclamou. — O meu pai
está salvo e devo ao senhor a sua salvação! Oh, como eu o amo!
Daí a quinze dias, Solange recebeu
uma carta anunciando-lhe que o seu pai estava na Inglaterra.
No dia seguinte, levei-lhe um
passaporte. Recebendo-o, Solange desfez-se em prantos.
— Então o senhor não me ama! —
disse.
— Amo-a mais que a vida — respondi.
— Porém, obriguei-me para com o seu pai, e antes de tudo cumpre desempenhar a
minha palavra.
— Então — disse ela —, faltarei eu
à minha. Se tem coragem de separar-se de mim, Albert, eu não tenho a de
deixá-lo.
Ai de mim! Ela ficou.
II — ALBERT
Passaram-se três meses desde a
noite em que tratamos da viagem de Solange. E, nesse período, nem uma só
palavra de separação havia sido proferida.
Solange queria morar na rua
Taranne. Aluguei para ela um aposento sob o nome de Solange. Eu não lhe
conhecia outro nome que não este, assim como ela somente me conhecia por
Albert. Eu a fiz entrar num colégio de meninas, como professora, para assim
melhor subtraí-la às investigações da polícia revolucionária, mais ativa do que
nunca.
Aos domingos e às quintas-feiras
passávamos juntos nesse aposento na rua Taranne. Da janela do quarto de dormir,
víamos a praça em que pela primeira vez nos tínhamos encontrado.
Cada dia recebíamos uma carta: a
dela dirigida a Albert; a minha, a Solange.
Esses três meses foram os mais
felizes de minha vida.
Entretanto, eu não tinha renunciado
ao projeto que havia concebido depois de minha conversa com o criado do
verdugo. Tinha pedido licença para fazer experiências sobre a persistência da
vida após a execução. Estas experiências me demonstraram que a dor continuava
após o suplício na guilhotina, e que tal dor deveria ser terrível.
Não se pode negar que a lâmina fere
a parte mais sensível de nosso corpo, por ser a em que se acham reunidos os
nervos. No pescoço, enfeixam-se todos os nervos dos membros superiores: o
simpático, o vago, o frêmio, enfim, a medula espinhal, que é a origem mesma dos
nervos que pertencem aos membros inferiores. Ninguém negará que o quebrar, o
esmigalhar da coluna vertebral óssea deva produzir dores mais atrozes que é
possível à criatura humana sofrer.
Alguns dirão que essa dor dura
apenas alguns segundos.
Mas eu nego essa hipótese, com
profunda convicção. E mesmo que tal dor dure apenas alguns segundos, a
sensibilidade, a personalidade, o eu permanecem vivos. A cabeça decepada vê,
sente, compreende e julga a segregação do seu ser. E quem dirá se a curta
duração do sofrimento pode compensar a sua horrível intensidade[6]?
Assim, compreendo que o decreto da
assembleia, que substituiu a forca pela guilhotina, foi um erro humanitário.
Creio que é mais doloroso ser decapitado do que enforcado. Quanto a isto, não
tenho dúvida. Muita gente se enforcou ou foi enforcada e depois foi restituída
à vida. Neste caso, pois, pode-se saber o que se sofre. É a sensação da
apoplexia fulminante, ou seja, a de um sono profundo sem dor alguma especial,
sem o menor sentimento de angústia. Algo como uma chama salta diante dos olhos
e logo toma a cor azulada e logo escurece. E, então, cai-se em uma síncope.
Qualquer médico, como eu, sabe disto. O homem cujo cérebro é comprimido com o
dedo em algum ponto em que falta o pedaço de crânio não sofre dor alguma.
Adormece. Pois dá-se o mesmo fenômeno quando o cérebro é comprimido por uma
erupção de sangue. Ora, no enforcado o sangue amontoa-se. Primeiro porque entra
no cérebro pelas artérias vertebrais que, atravessando os canais ósseos do
pescoço, não podem ser comprimidas. Em seguida porque, tendendo a refluir pelas
veias do pescoço, acha-se impedido pela articulação que liga o pescoço e as
veias.
Mas, voltemos às minhas
experiências.
Infelizmente, não me faltava em que
fazê-las.
Estávamos no período mais ativo das
execuções: trinta a quarenta pessoas eram guilhotinadas por dia e tanto sangue
cobria a praça da Revolução que se fizera necessário escavar um fosso, de três
pés de profundidade, em torno do cadafalso. Esse fosso era coberto de tábuas.
Certo dia, essa tábua cedeu quando sobre ela passava uma criança de oito ou dez
anos. Ela caiu e afogou-se.
Bem percebem que eu tinha todo o
cuidado em não dizer a Solange como eu ocupava o meu tempo nos dias em que não
a via. Além disso, devo confessar que tinha a princípio sentido uma forte
repugnância por aqueles míseros destroços humanos, e que me horrorizava com a
lembrança das dores que minhas experiências talvez acrescentassem ao suplício.
Eu estava convencido, porém, de que esses meus estudos eram ditados pelo desejo
de ser útil a toda humanidade, pois se conseguisse levar as minhas convicções a
uma reunião de legisladores, talvez obtivesse a abolição da pena de morte.
À medida que as minhas experiências
iam dando resultados, eu os registrava em um relatório.
Ao fim de dois meses, eu tinha
feito todas as possíveis experiências acerca da persistência da vida após a
execução. Resolvi levá-las ainda mais longe, se fosse possível, por meio do
galvanismo e da eletricidade.
Entregaram-me o cemitério de
Clamart e puseram à minha disposição todas as cabeças e corpos dos executados.
Haviam transformado uma capelinha, a um canto do cemitério, em laboratório.
Sabe-se que, depois que os reis foram expulsos de seus palácios, também foi
Deus expulsos de suas igrejas.
Nesse laboratório eu tinha uma
máquina elétrica e três ou quatro desses instrumentos a que se chamam excitadores.
Por volta das cinco horas chegava o
terrível funeral: os corpos vinham atirados num carro, as cabeças dentro de um
saco. Ao acaso, eu escolhia uma ou duas cabeças e um ou dois corpos. Tudo mais
era atirado numa vala.
No dia seguinte, as cabeças e os
corpos em que eu havia feito as experiências eram enterrados com os novos
cadáveres desse dia. Quase sempre o meu irmão ajudava-me nessas experiências.
Entrementes a estes contatos com a
morte, o meu amor por Solange aumentava dia a dia e, quanto a ela, a mísera
menina amava-me com todas as forças de seu coração.
Muitas vezes pensara em casar-me
com ela, muitas vezes tínhamos calculado a felicidade que esta união nos
traria. Mas para casar-se comigo, seria necessário que Solange declarasse o seu
nome de família. Mas esse nome era o nome de um emigrado, de um aristocrata, de
um proscrito: a sua sentença de morte.
Seu pai por diversas vezes lhe
havia escrito para apressar a sua partida. Ela, porém, revelou-lhe a nossa
paixão e pediu seu consentimento para o nosso casamento. Ele o concedeu.
Portanto, quanto a isso, tudo corria bem.
Todavia, entre todos aqueles
terríveis julgamentos, um ainda mais terrível nos entristeceu a ambos: o da
rainha Maria Antonieta.
Instaurado no dia 4 de outubro,
esse processo tramitou celeremente: no dia 14 ela já comparecera diante do
tribunal revolucionário; no dia 16, às quatro horas da manhã, havia sido
condenada; no mesmo dia, às onze horas, subira ao cadafalso.
De manhã, eu havia recebido uma
carta de Solange. Dizia-me que não queria passar esse dia sem me ver. Cheguei
às duas horas ao nosso pequeno aposento da rua Taranne e a encontrei desfeita
em prantos. Eu também estava profundamente abalado com aquela execução. Em
minha infância, a rainha havia sido tão boa para comigo que eu conservava uma
profunda recordação daquela bondade.
Oh, sempre hei de me lembrar
daquele dia. Era uma quarta-feira. Havia em Paris mais do que tristeza: havia
terror.
Eu estava entregue a um singular
desânimo, como um pressentimento de uma grande desgraça. Havia procurado dar
força e ânimo a Solange, que chorava, caída em meus braços. Mas faltavam-me
palavras de conforto, porque o consolo não estava em meu coração.
Como de costume, passamos a noite
juntos. E essa noite foi ainda mais triste do que o dia. Lembro-me de que um
cão, trancado no aposento sob o nosso, uivou até as duas horas da madrugada.
No dia seguinte, soubemos por quê.
O seu dono havia saído, levando a chave consigo. Na rua, fora preso e levado ao
tribunal revolucionário. Condenado às três horas da tarde, fora executado às
quatro.
Urgia que nos separássemos. As
aulas de Solange começavam às nove horas da manhã. Seu colégio era próximo ao
Jardim das Plantas. Hesitei muito tempo em deixá-la partir. Ela mesma relutava
em me abandonar. Mas ficar dois dias fora do colégio era expor-se às
investigações, estas sempre nocivas em sua situação.
Chamei um coche e a levei até a
esquina da rua dos Fossés-Saint-Bernard, onde apeei, para que ela seguisse
sozinha ao internato. Em todo o caminho, tínhamos ficado abraçados, sem
proferir uma só palavra, confundindo as nossas lágrimas, que escorriam até os
nossos lábios, mesclando a sua amargura à doçura de nossos beijos.
Desci do carro, mas, em vez de
retirar-me, fiquei como que grudado no mesmo lugar, para ver por mais tempo o
coche que a levava. Vinte passos adiante, o carro parou e Solange passou a
cabeça pela portinhola, como se adivinhasse que eu ainda me encontrava ali.
Corri para ela. Entrei no coche, fechei-o e a apertei novamente nos braços. Mas
davam nove horas em Saint-Étienne-du-Mont. Enxuguei as suas lágrimas, selei os
seus lábios com um tríplice beijo e, saltando, afastei-me correndo.
Pareceu-me que Solange me chamava
novamente. Mas todas essas lágrimas, todas essas hesitações podiam chamar
atenção. Tive a fatal coragem de não me voltar.
Entrei em casa desesperado. Passei
o dia todo escrevendo a Solange. À noite, enviei-lhe um volume.
Acabava de levar a minha carta ao
correio, quando recebi uma dela.
Tinham-na repreendido. Haviam-na
multiplicado de perguntas. Ameaçaram-na de privá-la de sua próxima saída.
Tal saída seria no domingo
seguinte. Solange, porém, jurara-me que iria encontrar-se comigo, ainda que
fosse necessário romper com a diretora do internato.
Eu também jurei. Parecia-me que, se
ficasse sete dias sem vê-la, o que aconteceria se ela perdesse a saída de
domingo, eu enlouqueceria.
Ainda mais porque Solange
manifestava alguma inquietação: uma carta que achara no colégio, ao lá
retornar, enviada por seu pai, parecia-lhe ter sido violada
Passei uma péssima noite e pior
ainda foi o dia seguinte. Como de costume, escrevi a Solange e, como era meu
dia de experiências, por volta das dez horas passei pela casa de meu irmão a
fim de levá-lo comigo a Clamart.
Não o achei em casa. Fui sozinho.
O tempo estava horrível. A natureza
aflita dissolvia-se em chuva, uma chuva fria e torrencial que anuncia o
inverno. Em toda a extensão de meu caminho, eu ouvia os pregoeiros públicos
berrarem, com voz rouquenha, a lista dos condenados desse dia. Era longa. Havia
homens, mulheres e crianças. A sanguinolenta ceifa era abundante e não haveria
de me faltar, naquela tarde, objeto de estudo.
Os dias terminavam cedo. Às quatro
horas, quando cheguei a Clamat, era quase noite.
O aspecto desse cemitério, com as
suas vastas sepulturas recém-revolvidas, com as suas árvores escassas,
ressonando com o soprar dos ventos como esqueletos, era assustador e quase
hediondo.
Tudo o que não era terra revolvida
era relva, cardos e urtigas. A cada dia, a terra revolvida invadia ainda mais a
área verde.
Em meio a todas essas
intumescências do terreno, a vala do dia estava aberta, e aguardava a sua
presa. Haviam previsto um incremento no número dos supliciados, pois essa vala
era maior do que costumava ser.
Dirigi-me a ela maquinalmente. O
fundo estava cheio d’água. Quão míseros não eram os corpos nus e frios que
seriam lançados naquela água, tão gélida quanto eles!
Ao aproximar-me da vala,
escorreguei, e quase caí. Os meus cabelos se eriçaram. Eu estava molhado e com
frio. Neste estado, cheguei ao meu laboratório.
Era, como disse, uma antiga capela.
Procurei com os olhos... por que procurava, não sei... Procurei com os olhos
se, na parede, ou no que teria sido o altar, restava algum sinal de culto: as
paredes estavam nuas; o que fora altar, completamente demolido. No lugar em que
estivera o tabernáculo (isto é, Deus, a vida), havia uma caveira (isto é, a
morte, o nada).
Acendi a minha vela, colocando-a
sobre a minha mesa de trabalho, toda coberta de instrumentos de formato
estranho, por mim mesmo inventados, e sentei-me, pensando... em quê? Naquela
pobre rainha que eu vira tão bela, tão feliz, tão querida; que na véspera,
perseguida pelas imprecações de mil fúrias tinha sido levada ao patíbulo em uma
carroça e que nesse momento, com a cabeça separada do corpo, dormia na vala dos
indigentes, ela que havia dormido sobre os dourados tetos de Versalhes e de
Saint-Cloud.
Enquanto eu mergulhava nessas
sinistras reflexões, a chuva recrudescia, o vento dobrava de intensidade,
soltando os seus lúgubres uivos por entre os galhos das árvores e as hastes das
ervas, que crepitavam.
Logo esse barulho confundiu-se com
um lúgubre troar. Mas, ao invés de roncar nas nuvens, esse trovão vinha da
terra e a fazia estremecer.
Era o estrépito da carroça
vermelha, que vinha da praça da Revolução e entrava no cemitério de Clamart.
A porta da capelinha se abriu e
dois homens, completamente molhados, entraram, trazendo um saco.
Um desses era o mesmo Legros, a
quem eu visitara na cadeia, e o outro era um coveiro.
— Aqui tem, senhor Ledru — disse-me
o criado do carrasco. — Não é preciso que o senhor se apresse esta noite.
Deixaremos toda essa mixórdia para o senhor. Amanhã faremos o enterro. Oh, os
cadáveres não irão gripar por passarem uma noite ao sereno!
E, com uma hedionda risada, estes
dois assalariados da morte puseram o seu saco a um canto, junto ao antigo
altar, à minha esquerda.
Depois saíram sem fechar a porta,
que se pôs a bater, compassadamente, na moldura, deixando passar baforadas de
vento que faziam vacilar a chama da vela, a qual subia lívida, moribunda, pelo
pavio enegrecido.
Eu os ouvi desatrelar os cavalos da
carroça, fechar o cemitério e partir, abandonando a carroça repleta de
cadáveres.
Eu sentia uma grande vontade de
ir-me com eles. Mas não sei o que me prendia àquele lugar, embora estremecesse
todo. Certamente, não era de medo. Mas o ruído daquele vento, o crepitar
daquela chuva, o gemer das árvores que se retorciam, o sibilar do temporal que
fazia tremer a luz de minha vela, tudo isso vibrava em minha mente o vago pavor
que, a partir da úmida raiz dos meus cabelos, disseminava-se por todo o meu
corpo.
De súbito, pareceu-me que uma voz,
ao mesmo tempo doce e lastimosa, saía do âmago da capelinha e pronunciava o
nome de Albert.
Oh, dessa vez estremeci. Albert!
Somente uma pessoa no mundo me chamava assim.
Meus olhos alucinados percorreram
lentamente a capelinha — cujo recinto, embora limitadíssimo, não podia ser
completamente iluminado por minha vela — e pararam sobre o saco encostado ao
canto do altar: o tecido ensanguentado denunciava o seu fúnebre conteúdo.
No momento em que os meus olhos se
detiveram nesse saco, a mesma voz, porém mais débil e lastimosa, repetiu:
— Albert!
Ergui-me, gelado de pavor. Aquela
voz parecia sair do interior do saco.
Apalpei-me para ver se dormia ou se
estava acordado. Depois, rígido, caminhando como um homem pétreo, com os braços
estendidos, dirigi-me para o saco e nele mergulhei uma das mãos.
Pareceu-me então que lábios ainda
quentes encostavam-se na minha mão.
Eu estava nesse grau de terror em
que o excesso desse mesmo terror infunde-nos a coragem. Segurei essa cabeça e,
voltando para a minha cadeira, em que caí sentado, coloquei-a sobre a mesa.
Oh, soltei um terrível grito!
Aquela cabeça, cujos lábios
pareciam ainda quentes, cujos olhos estavam entreabertos, era a cabeça de
Solange.
Julguei estar louco. Gritei, três
vezes:
— Solange! Solange! Solange!
Ao terceiro grito, os olhos
abriram-se, fixaram-se em mim, deixaram cair duas lágrimas e, lançando uma
chama úmida, como se deles escapasse a alma, fecharam-se para não mais se
abrirem.
Levantei-me louco, perdido,
furioso. Queria fugir. Mas, levantando-me, prendi na mesa a aba da casaca. A
mesa caiu, fazendo com que a vela se apagasse. A cabeça rolou pelo chão,
arrastando-me também. Então pareceu-me que aquela cabeça, deslizando pelo
declive das lajes, vinha em minha direção. Seus lábios encostaram-se aos meus.
Um glacial calafrio percorreu todo o meu corpo. Soltei um gemido e desmaiei.
No
dia seguinte, às seis horas da manhã, os coveiros encontraram-me tão frio
quanto a laje em que eu caíra desfalecido.
Solange, denunciada pela carta do
pai, tinha sido presa, condenada e executada no mesmo dia.
E aquela cabeça que havia falado
comigo, aqueles olhos que haviam me fitado, aqueles lábios que haviam beijado
os meus lábios eram mesmo os lábios, os olhos e a cabeça de Solange.
—
Texto
em português de Paulo Soriano, adaptado de uma tradução de autor desconhecido
do século XIX.
[1] Sans-culottes é o
termo que designa os revolucionários provenientes das classes menos favorecidas
da sociedade francesa do século XVIII, a exemplo de artesãos, pedreiros,
operários e outros trabalhadores manuais.
[2] Françoise-Severin Marceau (1769-1796), militar francês, foi
general durante as guerras revolucionárias francesas, conflitos de grande
dimensão que ocorreram ente 1892 e 1802.
[3] Assim como Marceau, Jean-Baptiste Kléber (1753-1800) foi
general durante as guerras revolucionárias francesas.
[4] A Vandeia é uma região costeira do Oeste da França,
localizada no vale do rio Líger (Loire, em francês). Foi palco de uma guerra
civil contrarrevolucionária, entre 1793 e 1796.
[5] No original, cocarde, pequena rosácea de pano,
nas cores da França (vermelho, azul e branco), que os revolucionários traziam
na lateral do barrete.
[6] Não é para provocar o horror que abordamos tal assunto, mas
cremos que, no momento em que abolição da pena de morte é objeto de preocupação
geral, tal digressão não seria ociosa (Nota do Autor.)
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