MEDO - Conto Clássico de Suspense - Guy de Maupassant
MEDO
Guy
de Maupassant
(1850
– 1893)
Depois
de jantar, subimos ao tombadilho. Em frente de nós, o Mediterrâneo não fazia
uma ruga em toda superfície que a lua cheia cobria de listas prateadas e
movediças.
A
vasta embarcação lançava ao céu, que parecia semeado de estrelas, uma grande
serpente de fumo negro. E, para trás, a água muito branca, agitada pela
passagem rápida do enorme navio, açoitado pela hélice, espumava, parecia
torcer-se, revolvia tanta claridade que se assemelhava a um luar em borbotões.
Éramos
seis ou oito e em silêncio estávamos ali, voltados para a África longínqua,
para onde nos dirigíamos. O comandante, que fumava um charuto, no meio de nós,
continuou de repente a conversação do jantar.
– Sim, nesse dia tive medo. O meu navio esteve
seis horas com aquele rochedo no casco, açoitado pelo mar. Felizmente, ao
anoitecer, fomos recolhidos por um carvoeiro inglês que nos avistou.
Então
um homem alto, de rosto queimado, aspecto grave, um destes homens que devem ter
atravessado longos países desconhecidos, em meio a perigos incessantes, e cujo
olhar tranquilo parece conservar, na sua profundidade, alguma coisa das
paisagens estranhas que viu; um destes homens em cujo aspecto se adivinha que
são dotados de uma coragem de ferro, falou pela primeira vez:
–
O comandante diz que teve medo. Não acredito. Engana-se com respeito à palavra
e à sensação que experimentou. Um homem enérgico nunca tem medo em face do
perigo imediato. Está comovido, agitado, ansioso. Mas o medo é outra coisa.
–
Ora essa! Pois eu afianço-lhe que tive medo.
Então
o homem de tez bronzeada tornou com voz lenta:
–
Perdão, deixe-me explicar! O medo – e os homens mais corajosos podem ter medo –
é uma coisa terrível, é uma sensação atroz, como que uma decomposição da alma,
um espasmo horrível do pensamento e do coração, e cuja lembrança é suficiente
para provocar calafrios e angústia. Mas isso não acontece, quando se é valente,
nem perante um ataque, nem perante a morte inevitável ou qualquer das formas de
perigo: acontecem certas circunstâncias anormais, debaixo de certas influências
misteriosas, em frente de perigos vagos. O verdadeiro medo é uma espécie de
reminiscência de terrores fantásticos de outrora. Um homem que acredita em
almas do outro mundo e que imagina avistar um espectro, de noite, deve sentir
medo, com todo o seu espantoso horror.
Eu
adivinhei o medo, em pleno dia, há dez anos, pouco mais ou menos. Senti-o no
inverno passado, em uma noite de dezembro.
E,
contudo, tenho atravessado bastantes perigos, bastantes aventuras que pareciam
mortais. Bati-me algumas vezes.
Uns
ladrões deixaram-me, um dia, em tal estado que me abandonaram por me julgarem
morto. Fui condenado à forca, como rebelde, na América, e atirado ao mar, da
ponte de um navio, na costa da China. De todas essas vezes julguei que estava
perdido; mas conformei-me imediatamente, sem comoção e até sem pesar.
O
medo, porém, não é isso.
Pressenti-o
na África. Contudo, ele é filho do Norte. O sol dissipa-o como faria a um
nevoeiro. Reparem os senhores bem nisto. A vida para os orientais não vale
nada; resignam-se imediatamente; as noites são claras e despidas de lendas, as
almas livres das inquietações sombrias que povoam os cérebros nos países frios.
No Oriente pode-se conhecer o pânico, mas ignora-se o que é medo.
Pois
bem! Eis o que me aconteceu na África.
Eu
ia atravessando as imensas dunas ao sul de Ouargia.
É
um dos países mais extraordinários que existem.
Os
senhores conhecem a areia lisa e direita das margens intermináveis do oceano. Pois
imaginem esse mesmo oceano transformado em areal, no meio de um furacão;
imaginem uma tempestade silenciosa, de ondas de areia amarela, enormes e
imóveis.
São
da altura de montanha essas ondas desiguais, diferentes umas das outras,
erguidas exatamente como ondas desencadeadas, mas ainda maiores e estriadas de
reflexos. O sol devorador do meio-dia lança sobre este mar furioso, mudo e sem
movimento, as suas chamas implacáveis e diretas.
É
preciso trepar essas ondas de pó de ouro, descer, tornar a subir, subir
constantemente, sem descanso nem sombra.
Os
cavalos têm estertores, enterram-se até os joelhos, e escorregam, descendo já
outra vertente daquelas colinas surpreendentes.
Eu
ia com um amigo e éramos seguidos por oito spahis
e quatro camelos condutores.
Já
falávamos, acabrunhados pelo calor, pela fadiga, e devorados pela sede como
aquele deserto abrasado.
De
repente, um dos homens saltou uma espécie de grito. Todos paramos e ficamos
imóveis, surpreendidos por um fenômeno inexplicável, conhecido dos viajantes
naquelas regiões desertas.
Perto
de nós, em uma direção indeterminada, rufava um tambor, o misterioso tambor das
dunas. Rufava claramente, ora mais vibrante, ora mais fraco, parando e
continuando logo em seguida o seu rufar fantástico.
Os
árabes, assustados, olhavam uns para os outros, e um deles disse, na sua
língua: “A morte está sobre nós”. Eis que, de repente, o meu companheiro, meu
amigo, quase meu irmão, cai do cavalo, de bruços, fulminado por uma insolação.
E
durante duas horas, enquanto eu diligenciava debalde salvá-lo, aquele tambor
invisível perseguiu-me com seu barulho monótono, intermitente e
incompreensível, e eu sentia o medo introduzir-se nos meus ossos, o verdadeiro
medo, o medo do horrível, defronte daquele cadáver querido, naquele buraco
abrasado pelo sol, entre quatro montanhas de areia, ouvindo o eco desconhecido
trazer-nos, a duzentas léguas de qualquer aldeia francesa, o rufar rápido do
tambor. Nesse dia compreendi o que era ter medo; soube-o melhor uma outra
vez...
O
comandante interrompeu o narrador:
–
Perdão, mas esse tambor? Que era?
O
viajante respondeu:
–
Não sei. Ninguém o sabe. Os oficiais, surpreendidos, muitas vezes, por aquele
ruído singular, atribuem-no geralmente ao eco aumentado, multiplicado,
excessivamente exagerado pelos silêncios das dunas, de uma saraivada de grãos
de areia, arrebatados pelo vento, e batendo de encontro a um molho de ervas
secas; porque se tem notado sempre que o fenômeno se produz nas proximidades de
pequenas plantas queimadas de sol e duras como pergaminho.
Esse
tambor seria, portanto, uma espécie de reflexo do som, nada mais. Mas não vim a
saber disto senão mais tarde.
Vou
contar agora a minha segunda comoção.
Era
no inverno passado, em uma floresta ao nordeste da França. Anoiteceu duas horas
mais cedo, tão escuro estava o céu.
O
camponês, que me guiava, ia ao meu lado, por um caminho estreito sob uma abóboda
de pinheiros, dos quais o vento encadeado arrancava rugidos.
Por
entre as copas viam-se correr as nuvens em debandada, nuvens espavoridas, que
pareciam fugir de alguma coisa assustadora.
Às
vezes, a uma rajada imensa, a floresta inclinava-se toda no mesmo sentido, com
um mesmo gemido de dor, e o frio invadia-me, apesar de eu ir bem agasalhado e
caminharmos depressa.
Devíamos
ir cear e dormir na casa de um guarda florestal, casa que já não fica muito
longe. Eu ia lá para caçar.
O
meu guia levantava a cabeça, de vez em quando, e murmurava: “Triste tempo!” –
Depois falou-me do guarda em família.
O
guarda matara um caçador fugitivo, dois anos antes, e desde então parecia estar
preocupado, como se perseguido por uma recordação. Tinha dois filhos casados
que viviam com ele.
As
trevas eram profundas. Eu não via nada em torno de mim e a ramagem das árvores,
agitando-se de encontro umas às outras, causava um rumor incessante no meio da
escuridão.
Afinal,
avistei uma luz e, daí a nada, o meu companheiro batia a uma porta. Responderam-nos
gritos agudos de mulheres.
Em
seguida, uma voz de homem, uma voz sufocada, perguntou:
—
Quem está aí?
O
meu guia disse o nome. Entramos. Foi um quadro inolvidável o que presenciamos.
Um
homem de cabelos brancos e olhar desvairado, com a espingarda carregada na mão,
esperava-nos, de pé, no meio da cozinha, enquanto dois rapagões altos, armados
com enxadas, guardavam a entrada da casa.
Nos
cantos escuros desta, pude ver duas mulheres de joelhos, com o rosto estendido
contra a parede.
Explicamo-nos.
O velho foi pôr a espingarda no lugar e ordenou que me arranjassem um quarto;
depois, como as mulheres não se moviam, disse-me bruscamente:
—
Isto, senhor, é porque eu matei um homem, faz esta noite dois anos. No ano passado,
ele veio aqui chamar-me; hoje, também o espero.
E
acrescentou, num tom que me fez sorrir:
–
Por isso não estamos descansados.
Sosseguei-o
conforme pude, contente por ter ido exatamente naquela noite e assistir ao
espetáculo daquele terror supersticioso. Contei histórias e conseguir serenar
todos mais ou menos.
Próximo
da chaminé, um cão velho, quase cego e barbado, um destes cães que se parecem
com pessoas que conhecemos, dormia com o focinho em cima das patas.
Lá
fora, a tempestade furiosa açoitava a casa e, por um vidro estreito, uma
espécie de fresta aberta ao lado da porta, vi, de repente, um montão de árvores
sacudidas pelo vento, à luz de grandes relâmpagos.
Eu
sentia perfeitamente que, apesar dos meus esforços, aquela gente estava
dominada por um pavor profundo e, cada vez mais, quando eu cessava de falar,
todos os ouvidos se punham à escuta.
Farto
de assistir àqueles sustos imbecis, ia pedir para me deitar, quando o velho
guarda saltou, de repente, da cadeira, e agarrou outra vez a espingarda,
balbuciando com a voz transtornada: “Aí está ele! Aí está ele! Ouvi-o agora!” As
duas mulheres tornaram a cair de joelho aos cantos da casa, escondendo a cara
na parede. Os filhos pegaram nas enxadas.
Eu
ia tentar ainda fazê-los acalmar, quando o cão adormecido acordou bruscamente
e, levantando a cabeça, estendendo o pescoço, olhando para o lume com os olhos
quase extintos, soltou um destes uivos que fazem estremecer os viajantes, à
noite, no campo.
Todos
os olhares se dirigiram para o cão. Ele estava imóvel como se uma visão o
tivesse feito erguer e pôs-se outra vez a uivar para alguma coisa invisível,
desconhecida, terrível decerto, porque o seu se eriçava completamente.
Não
pude deixar de sentir um calafrio.
Aquela
visão do animal, naquele lugar, àquela hora, no meio daquela gente desvairada,
era verdadeiramente aterradora.
O
cão uivou durante uma hora sem se mexer, uivou como na angústia de um sonho. E
o medo, o terrível medo, apoderava-se de mim. Medo de quê? Sei-o porventura?
Era o medo, eis tudo.
Estávamos
imóveis, lívidos, esperando um acontecimento horrível, com um ouvido à escuta,
o coração palpitante, e perturbado pelo mais leve ruído.
E
o cão pôs-se a andar em volta da casa, cheirando sempre as paredes e gemendo
sempre. Aquele animal enlouquecia-nos. Então, o camponês que me acompanhara até
ali deitou-se a ele, em uma espécie de paroxismo de terror furioso e, abrindo
uma porta que dava para um pátio pequeno, atirou o animal para lá.
Ele
calou-se imediatamente, e ficamos mergulhados em um silêncio ainda mais
terrificante.
De
repente, tivemos uma espécie de sobressalto, todos ao mesmo tempo: alguém
deslizava da parede de fora que dava para a floresta. Em seguida, passou de
encontro à porta, que pareceu apalpar com mão hesitante. Depois, não se ouviu
mais nada durante dois minutos que nos tornaram insensatos. Tornou, porém, a
vir, sempre rente à parede, e raspou-a levemente, como poderia fazê-lo uma
criança com as unhas. De repente, apareceu uma cabeça branca, com olhos
luminosos como os das feras. E a boca exalou um som, um som indistinto, um
murmúrio lastimoso.
Ouviu-se,
então, o ruído formidável. O velho guarda disparara. E os filhos
precipitaram-se imediatamente, tapando a fresta com a grande mesa que
encostaram à parede, com o armário em cima.
E
juro-lhes que, ao estrondo do tiro, que eu não esperava, tive uma tal angústia
de coração, de alma e de corpo, que me senti desfalecer, prestes a morrer de
medo.
Estivemos
ali até o romper da manhã, incapazes de nos movermos, de dizer uma palavra,
crispados por um terror incrível.
Não
nos atrevemos a desmanchar a barricada enquanto não avistamos um tênue raio de
luz pela fenda de um telheiro.
No
chão, encostado à porta, jazia o cão, com a garganta atravessada por uma bala.
Saíra
do pátio fazendo uma abertura debaixo de uma paliçada.
O
homem de rosto bronzeado calou-se. Depois acrescentou:
—
Nessa noite, contudo, não me arrisquei a coisa nenhuma; mas preferia recomeçar
todas as horas em que afrontei os perigos mais terríveis a repetir o minuto do
tiro daquela noite horrível.
Tradução de autor desconhecido.
Fonte:
Conto publicado originalmente no diário O
Pharol, de Juiz de Fora/MG, entre 06 e 09 de novembro de 1904. Atualizamos
a ortografia e fizemos pequenas adaptações textuais.
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