MORTA?! - Conto Clássico de Terror - Afonso Celso
MORTA?!
Afonso
Celso
(1860
– 1938)
Ao
Dr. Eduardo Prado.
Há
perto de 18 anos.
Entretanto,
sempre que me acode à memória esse caso sobre o qual tantos anos e
acontecimentos volveram — esse caso tão vulgar na aparência e na realidade
revestido de tamanho mistério —, experimento, ainda hoje, quase a mesma
impressão do terror que nos alucinou, a meu companheiro e a mim, naquela
formosa noite de luar.
Frequentávamos
ambos em São Paulo o primeiro ano do curso jurídico.
Almas
ingênuas e entusiásticas, esforçavamo-nos por parecer aos outros, como a nós
próprios, desiludidos e céticos, zombeteando constantemente do mundo, numa
ironia altaneira, conforme a feição
literária da época.
Escrevíamos
crônicas e folhetins para um jornal político, estabelecido na rua principal da
cidade, a da Imperatriz.
Comparecíamos
todas as noites à sala da redação.
Na
véspera dos dias feriados, livres da pressão de lições e sabatinas,
demorávamo-nos até tarde, a rever provas e palestrar.
Numerosos
conhecidos costumavam ali reunir-se para saber novidades, ou atraídos talvez
pelo excelente chá que o redator-chefe, paulista de velha têmpera, generoso e
fidalgo, oferecia a todos os presentes, sem exceção.
Galhofeira
e viva a conversação naquele sábado. Narrara cada qual a sua anedota. Ríramos a
valer.
Soara,
de há muito, meia-noite, quando partimos, alegres e bem dispostos, o espírito
sereno, o corpo antegostando o aconchego dos leitos amigos.
Quem
mais despreocupadamente feliz do que nos sentíamos?
Caminho
de casa a rua de São Bento — retilínea, terminando a extremidade para a qual
nos dirigíamos na Academia o velho convento de São Francisco, cujas torres
irregulares destacavam pitorescamente à claridade da lua.
E
que esplêndida lua, firme, nítida, permitindo avistar à distância os menores
objetos, envolvendo os prédios, o horizonte, a perspectiva inteira, de fluida
gaze opalina!
Silêncio
completo! Só muito longe, apagado, o latido de um cão.
Os
nossos passos iam despertando compridos ecos. Trepavam as nossas sombras pelas
paredes, ou se estendiam, esguias e intermináveis, diante de nós, sobre a
calçada.
Meu
companheiro recitava estrofes amorosas, a meia voz; eu bocejava com sono.
Mas,
de súbito, atrás de nós, ressoaram outras pisadas. Voltamo-nos distraidamente,
supondo fossem de um rondante.
A
uns trinta metros, deparou-se-nos esbelta mulher, airosamente trajada de
escuro, as mãos cruzadas sobre o peito, a cabeça e os ombros agasalhados em
ampla mantilha.
Uma
aventura, em nossa idade, àquela hora, sob a romântica luz sugestiva, não era
para desprezar-se.
Paramos,
agradavelmente surpreendidos.
II
O
vulto feminino foi-se aproximando de nós, sem hesitação.
Trazia,
suponho, fivelas douradas nas botinas, que, a cada passo, feridas do luar,
desfechavam pequenas chamas incisivas.
À
medida, porém, que se ia achegando, nos assaltava, a meu colega e a mim,
esquisito mal-estar, vago calafrio, pressentimento indistinto de perigo
sobrenatural.
Somente
mais tarde o reconhecemos, ao analisarmos detidamente as mútuas sensações
durante o estranho episódio.
Por
quê?!
Mui
diversos sentimentos nos deveriam agitar ante o contato da desconhecida, moça e
bela, talvez.
A
noturna transeunte só estacou ao esbarrar conosco.
Quedou-se
então imóvel e impassível, como uma estátua.
Nosso
mal-estar aumentou. Desordenados, batiam-nos os corações.
Miramo-la:
a mantilha encobria-lhe grande parte do rosto, mas, sob as franjas, rutilavam
olhos singulares, de um fulgor fúnebre.
Muito
pálida a porção das faces entrevista. Elegantes as formas. Impressionou-nos a
lividez cadavérica das mãos finas, azulados os dedos, nervosamente entrelaçados
sobre a protuberância graciosa dos seios.
Com
entonação prazenteira, na qual se percebia baldado esforço para sopitar a
comoção íntima, meu companheiro exclamou:
—
Que faz tão tarde pela cidade deserta, gentil vagabunda?
Eis
aqui dois estudantes notáveis, futuras glórias da pátria, e de cuja carteira,
por milagre dos deuses, ainda não se evaporou totalmente a mesada, que vão ter
a subida honra e satisfação de a acompanhar.
—
Para que lado, cara senhora, o rumo da sua vivenda? Se está fatigada, a carregaremos
nos braços, sem lhe sentir o leve peso, de soberbos com carga tão mimosa — na
expressão de Shakespeare, Robespierre ou Dante, um dos quatro evangelistas, não
me lembra qual. Foi Febo, sem dúvida, propícia aos amores, quem nos
proporcionou o seu encontro encantador.
Ela
não respondeu, nem fez um movimento.
À
proporção que falava, a voz do interpelante tornava-se trêmula e aguda, como
sob a influição crescente de intenso sobressalto.
Calou-se;
e a mudez acabrunhadora da noite pesou sobre nós.
—
Vamos, responda— insistiu ele, a voz cada vez mais sibilante —; responda! Por
que não responde?!
O
mesmo silêncio, idêntica imobilidade acolheram a injunção.
Avultara
insuportavelmente a nossa inquietarão injustificada. Tremíamos e suávamos
aturdidos, como diante de fantástica e monstruosa visão.
Num
ímpeto impaciente, travei o braço à misteriosa criatura, e sacudindo-o com
força, gritei:
—
Responda, por Deus! que significa isto? quem é você? que quer? fale... fale...
Oh!
nunca mais conseguirei esquecer o olhar que ela nos dardejou, e o arrepio que
me convulsionou todo, mal lhe toquei o corpo!
Só
de o tentar descrever, após o longo período decorrido, faz-me a evocação
oscilar a pena, e já dois borrões, como lágrimas negras, estrolejaram
funestamente o papel.
Um
simples olhar de súplica, repreensão, surpresa? quem sabe?!... Mas o fluido
álgido que semelhante olhar vibrou, esse extraordinário fluido, não era, não
podia ser humano. A morte, o ignoto, o segredo supremo das coisas e dos seres,
o horror, não encontrariam manifestação mais desvairadora.
Fomos
assoberbados de um desses pavores irresistíveis que afogam a razão, suplantam
as mais fortes coragens e matam, não raro — desses que mais de uma vez seria
impossível sofrê-los na vida.
Os
cabelos erriçados, disparamos a correr, enlouquecidos, soltando brados frenéticos.
Não
sei como descemos a íngreme ladeira que nos separava ainda de nossa residência,
nem como penetramos nesta, nem como, vestidos qual estávamos, sem sequer
descalçar as botinas, nos metemos sob os cobertores das camas respectivas,
enterrando a cabeça debaixo dos travesseiros...
III
No
dia imediato, depois de sonolência febril, despertamos, manhã alta, abatidos,
como em seguida a grave enfermidade.
Não
trocamos palavra sobre o incidente estupendo da véspera, que se nos afigurava
hediondo pesadelo.
Semanas
mais tarde, quis entabular conversação sobre o assunto. Meu companheiro
confessou os transes anormais que suportara, análogos em tudo aos meus. Mas,
quando eu quis explicar o fato, atribuindo-o a um fenômeno nervoso, puramente
patológico, interrompeu-me, em tom sombrio:
—
Não; não insistas; isso me causa mal e a ti também, digas o que disseres. É
melhor mudarmos de questão. Aquilo foi uma dessas coisas insondáveis e
incoercíveis de que a existência está cheia. E cumpre que o não contemos a
ninguém. Rir-se-ão de nós, afirmando que nos achávamos bêbedos ou com início de
doidice. Discrição absoluta. Sei que por aí corre a lenda de uma donzela
morfética, de rica e nobre família, a quem consentem a estulta fantasia de
passear sozinha a desoras para que se lhe não lobrigue a repugnante enfermidade.
Porém é lenda... E não foi a morfética... não foi... Aquele olhar... aquele eflúvio... aquele
frio... Tratemos de outra matéria e esqueçamos o triste sucesso, que desabona
assaz os nossos brios... Que diabo! dois homens no vigor da idade e da saúde,
com fumaças de valentia, a correrem como cães covardes de uma frágil mulher
que, afinal de contas, nada lhes fez!... Que vergonha!... Não falemos mais
nisso...
E
o meu amigo — distinto e guapo rio-grandense, ao qual brilhantes futuros
estariam reservados se tão prematuramente não o houvesse arrebatado cruel
enfermidade — bateu furioso com o pé no solo.
Com
efeito, durante anos, guardámos silêncio.
IV
Muito
mais tarde, em Paris, rua Saint André des Arts, numa livraria que vende
exclusivamente obras de hipnotismo, força psíquica, teosofia, cabalagnose e
ciências ocultas, conversava eu com um dos redatores da Iniciação,
revista desses estudos, e lhe narrei o fato de São Paulo.
O
homem ouviu-o sem surpresa, pediu pormenores e, no fim, profundamente
convencido:
—
O Sr. e o seu camarada viram e tocaram simplesmente uma pessoa morta. Com um
pouco de sangue frio, teriam dominado o primeiro movimento do aliás instintivo
terror e desvendariam coisas interessantes. Talvez ela os quisesse encarregar
de alguma sagrada missão.
Proferiu
estas palavras com tamanha gravidade e firmeza que, malgrado meu, estremeci.
Exigi explicações, mas o meu interlocutor atalhou:
—
Entre para o nosso grêmio, dedique-se às nossas investigações e virá a saber
com certeza quem era e o que pretendia a aparição de outrora. Poderá vê-la de
novo e ouvi-la aqui mesmo em Paris. Se precisar de meu concurso, estou ao seu
dispor. Apresentá-lo-ei a excelentes médiuns.
E
despediu-se, deixando-me o seu cartão.
Comentários
Postar um comentário