A ÁRVORE - Conto Clássico Fantástico - H. P. Lovecraft



A ÁRVORE

H. P. Lovecraf

(1890 – 1937)

Tradução de Paulo Soriano


Numa encosta verdejante do monte Mênalo, na Arcádia, existe um olival ao redor das ruínas de uma aldeia. Nas proximidades encontra-se um túmulo, outrora embelezado com as mais sublimes esculturas, mas agora tão deteriorado quanto a casa. Numa extremidade do túmulo, com as suas peculiares raízes deslocando os blocos de mármore pentélico manchados pelo tempo, cresce uma oliveira anomalamente grande, e de compleição curiosamente repulsiva. Assemelha-se tanto à figura de um homem grotesco — ou de um cadáver contorcido pela morte — que os camponeses temem passar por ela nas noites em que a Lua brilha debilmente por entre os seus galhos retorcidos. O monte Mênalo é um dos locais favoritos do temido Pã, cujos estranhos companheiros são uma miríade, e os simples pastores acreditam que a árvore deve ter algum hediondo parentesco com aqueles sátiros selvagens. Mas um velho apicultor, que vive numa cabana próxima, contou-me uma história diferente.

Há muitos anos, quando a aldeia na encosta era nova e resplandecente, os escultores Kalos e Musides lá viviam. A beleza de suas obras era elogiada da Lídia a Neápolis, e ninguém ousava dizer que um ou outro se destacava em destreza. O Hermes de Kalos estava num santuário de mármore em Corinto, e a Palas de Musides rematava uma coluna em Atenas, perto do Partenon. Todos os homens prestavam homenagem a Kalos e Musides, e se maravilhavam porque nenhuma sombra de ciúme artístico arrefecia o calor da fraterna amizade que havia entre eles.

Embora Kalos e Musides estivessem sempre em perfeita harmonia, eram distintos em natureza. Enquanto Musides desfrutava das noites entre os prazeres urbanos de Tégea, Kalos preferia ficar em casa, furtando-se à visão de seus escravos para recolher-se aos frescos recantos do olival. Lá, meditava sobre as visões que enchiam a sua mente, e concebia as formas de beleza que mais tarde imortalizaria em mármore quase vivo. Os ociosos, de fato, comentavam que Kalos conversava com os espíritos do bosque, e que as suas estátuas não passavam de imagens dos faunos e das dríades com os quais se encontrava, uma vez que nunca esculpia suas obras a partir de modelos vivos.

Tão famosos eram Kalos e Musides que ninguém se surpreendeu quando o tirano de Siracusa lhes enviou representantes para lhes falar sobre a custosa estátua de Tique[1] que ele pretendia erguer na sua cidade. De grande tamanho e feitura inigualável haveria de ser a estátua, pois estava destinada a ser a maravilha das nações e uma meta para os viajantes. Exaltado para além da imaginação seria aquele cuja obra fosse escolhida, e Kalos e Musides foram convidados a competir por tal distinção. O amor fraterno entre os artistas era bem conhecido, e o astuto tirano conjecturava que, em vez de esconder do outro o seu labor, cada um ofereceria ao outro auxílio e conselhos. E de modo que tal colaboração produziria duas imagens de beleza inigualável, a mais adorável das quais eclipsaria até os sonhos dos poetas.

Os escultores aceitaram com alegria a oferta do tirano e, nos dias seguintes, os seus escravos ouviram os incessantes golpes dos  cinzéis. Kalos e Musides não esconderam um do outro a  obra que esculpia, apesar de reservarem a sua visão apenas para os dois. À exceção dos seus, nenhum outro olhar devassava aquelas duas figuras divinas, por hábeis golpes libertadas dos rudes blocos que lhes aprisionavam as formas desde o início do mundo.

À noite, como antes, Musides frequentava os salões de banquete de Tégea, enquanto Kalos passeava, sozinho, no olival. Mas, com o passar do tempo, as pessoas notaram uma certa ausência de alegria no outrora radiante Musides. Era estranho — comentavam — que tal melancolia abatesse alguém tão propenso a conquistar a mais alta das honrarias artísticas. Passaram-se muitos meses, mas o amargo semblante de Musides nada revelava da forte expectativa que aquela situação deveria suscitar.

Então, certo dia, Musides revelou que Kalos estava doente. Após esta revelação, ninguém mais se surpreendeu com a sua tristeza, pois o apego entre ambos os escultores era por todos conhecido como profundo e sagrado.

Muitos vieram visitar Kalos e, de fato, perceberam a palidez que assomara o seu rosto, embora o artista conservasse uma serena felicidade no semblante, que tornava o seu olhar  dotado de uma magia superior à de Musides. Este, claramente absorvido pela ansiedade, afastava todos os escravos em seu afã de alimentar e cuidar do amigo com as próprias mãos. Escondidas atrás de pesadas cortinas estavam as duas figuras inacabadas de Tique, ultimamente pouco tocadas pelo enfermo e pelo seu fiel cuidador.

À medida que, inexplicavelmente, mais e mais enfraquecia, apesar das atenções dos médicos perplexos e da companhia de seu assíduo amigo, Kalos pedia frequentemente para ser levado para o seu tão amado bosque. Lá, implorava para ser deixado sozinho, como se desejasse conversar com seres invisíveis. Musides atendia invariavelmente tais desejos, embora seus olhos se enchessem de lágrimas ao considerar que Kalos se importava mais com os faunos e dríades do que com ele, o seu íntimo amigo. Finalmente, o fim se aproximou e Kalos discorreu sobre coisas do além-túmulo. Musides, chorando, prometeu-lhe um túmulo ainda mais belo do que o de Mausolo, mas Kalos pediu-lhe que não falasse mais de glórias de mármore. Havia apenas um desejo na mente do moribundo: que alguns brotos de certas oliveiras do bosque fossem enterrados no seu local de repouso, junto à sua cabeça. E, certa uma noite, sentado sozinho na escuridão do olival, Kalos expirou.

Belo para além de qualquer descrição era o túmulo de mármore que o aflito Musides esculpiu para o seu querido amigo. Ninguém, a não ser o próprio Kalos, poderia ter feito tais baixos-relevos, onde todos os esplendores dos Campos Elísios eram revelados. Musides também não esqueceu de enterrar os brotos de oliveira junto à cabeça de Kalos.

Quando as primeiras dores de luto deram lugar à resignação, Musides passou a trabalhar diligentemente na sua figura de Tique. Toda a honra lhe pertencia agora, uma vez que o tirano de Siracusa não queria que a obra fosse feita por ninguém, salvo ele ou Kalos. A sua tarefa provou ser um desabafo às suas emoções e ele trabalhava mais ardorosamente a cada dia, privando-se dos prazeres que outrora apreciava. Entretanto, as suas noites eram passadas junto ao sepulcro do amigo, onde uma jovem oliveira brotara perto da cabeça do falecido. O crescimento dessa árvore fora tão rápido, e tão estranha forma ela assumia, que todos os que a viram explodiam em exclamações de surpresa, e Musides parecia ao mesmo tempo fascinado e repelido por ela.

Três anos após a morte de Kalos, Musides enviou um mensageiro ao tirano, e propalou-se na Ágora de Tégea a notícia de que a tremenda estátua estava terminada. A essa altura, a árvore que brotara junto ao túmulo atingira proporções surpreendentes. Excedendo todas as demais de sua espécie, a nova oliveira estendia um galho singularmente pesado sobre o salão em que Musides trabalhava. Entrementes, muitos visitantes vieram contemplar a árvore prodigiosa, bem como admirar a arte do escultor, de forma Musides quase nunca se achava sozinho. Mas ele não se preocupava com aquela multidão de visitantes: pelo contrário, agora que o seu absorvente trabalho havia terminado, parecia temer a solidão. O lúgubre vento da montanha, suspirando através do olival e da árvore sepulcral, tinha a estranha aptidão de formar sons vagamente articulados.

O céu estava escuro na noite em que os emissários do tirano chegaram a Tégea. Definitivamente, sabia-se que vinham eles para levar a grande imagem de Tique e prestar honras eternas a Musides, razão pela qual os próxenos lhes ofereceram um acolhimento extremamente caloroso. Mas, durante a noite, uma violenta ventania rebentou do cume do Mênalo e os enviados da longínqua Siracusa deram-se por felizes por encontrarem confortável descanso na cidade. Falaram do seu ilustre tirano e do esplendor da sua capital. E exultaram a gloriosa estátua que Musides havia esculpido para ele. E então os homens de Tégea discorreram sobre a bondade de Musides e de seu pesar pelo amigo; disseram que nem mesmo os próximos louros da arte serviriam de consolo à ausência de Kalos, que bem poderia ter ostentado aquela coroa triunfal. Também referiram a árvore que crescera junto ao sepulcro, próxima à cabeça de Kalos. O vento uivou ainda mais assustadoramente, e siracusanos e arcádios uniram-se em oração a Éolo[2].

À luz do dia, os próxenos levaram os mensageiros do tirano à casa do escultor, mas o vento noturno havia feito coisas estranhas. Os gritos dos escravos elevavam-se num cenário de desolação e, no olival, as colunatas brilhantes daquele vasto salão onde Musides sonhava e trabalhava já não se erguiam. Solitários e abalados lastimavam-se os humildes pátios e paredes, pois, sobre o suntuoso peristilo, o pesado galho, que sobressaía da estranha árvore nova, tinha caído, reduzindo, curiosa e complemente, aquele poema de mármore a uma pilha de escombros assustadores.

Estrangeiros e tegeanos ficaram horrorizados, contemplando a catástrofe causada pela grande e sinistra árvore, cuja aparência era tão peculiarmente humana e cujas raízes tão estranhamente se infiltravam túmulo esculpido de Kalos. E o seu medo e consternação aumentaram à medida que vasculhavam o salão desmoronado, pois não encontraram vestígio algum do gentil Musides e da estátua maravilhosamente cinzelada de Tique. Entre essas formidáveis ruínas só havia caos, e os representantes das duas cidades saíram decepcionados: os Siracusanos porque não tinham estátua para levar para casa; os Tegeanos porque lhes faltava um artista a quem coroar com os seus louros.

No entanto, os Siracusanos obtiveram, algum tempo depois, uma esplêndida estátua em Atenas, e os Tegeanos consolaram-se erguendo na ágora um templo de mármore comemorando os talentos, virtudes e amor fraternal de Musides.

Mas o olival ainda lá está, assim como a árvore que nasce no túmulo de Kalos, e o velho apicultor disse-me que, às vezes, os galhos sussurram uns aos outros, em noites de ventania, dizendo repetidamente uns aos outros: Oιδά! Oιδά! Eu sei! Eu sei!



[1] Deusa responsável pela fortuna e prosperidade de uma cidade.

[2] Deus dos ventos.


Comentários

  1. Sinistro, esse é o único dos contos de Lovecraft que não é chato e me prendeu do início ao fim, embora não tenha entendido bulhufas, mas vou relê-lo V⁠●⁠ᴥ⁠●⁠V
    Ei, é você quem traduz os contos estrangeiros daqui?
    Se for, você traduz excelentemente! Parabéns!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A MÁSCARA DA MORTE ESCARLATE - Conto de Terror - Edgar Allan Poe

O RETRATO OVAL - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe

NO CAMPO DE OLIVEIRAS - Conto Trágico - Guy de Maupassant

O CORAÇÃO DELATOR. Conto clássico de terror. Edgar Allan Poe