A COMBUSTÃO HUMANA ESPONTÂNEA - Narrativas Clássicas Verídicas - A. J. Rocha
A
COMBUSTÃO HUMANA ESPONTÂNEA
A.
J. Rocha
(Médico
legista do séc. XIX)
A
ideia de uma combustão humana espontânea, levada até a mais completa incineração,
parece, à primeira vista, uma coisa sobrenatural, principalmente quando se reflete
na dificuldade, que experimentavam os antigos, quando queriam reduzir a cinzas
os corpos dos seus pais. Um mui grande número de fatos bem averiguados têm,
entretanto, demonstrado que ela podia ter lugar mesmo sem o socorro de um corpo
em combustão. Para bem fazer conhecer um fenômeno, que deve sobretudo
interessar os magistrados, eu relatarei aqui os fatos mais curiosos de combustão
espontânea, embora a maior parte deles tenha sido, já muitas vezes,
transcritos.
Dom
Gio Maria Bertoli[1],
padre domiciliado no monte Volere (distrito de Levissano), transportou-se (25
de Setembro de 1776) à feira de Filetto, para onde o levavam alguns negócios.
Depois de ter empregado todo esse dia em carreiras pelo campo, dirigiu-se à tarde
para Fenile e foi apear-se em casa de um de seus cunhados que ali habitava.
Chegando, pediu logo que o conduzissem ao quarto que lhe era destinado. Chegado
li, pôs um lenço entre as espáduas e a camisa, e, logo que todos se retiraram,
principiou a ler o seu breviário. Alguns minutos se tinham apenas passado,
quando se ouviu um ruído extraordinário no quarto em que Bertoli acabava de ser
agasalhado; e este ruído, através do qual se distinguiam os gritos do padre, fez
correr, precipitadamente, ao aposento as pessoas de casa. Acha-se, entrando,
este último estendido sobre o chão e rodeado de uma chama ligeira, que se torna
mais longínqua à medida que se aproxima mais dela, e que enfim se desvanece. Põem-no
logo no leito, administram-se-lhe todos os socorros que estavam à mão.
“No dia seguinte, de manhã, eu fui chamado” —
diz Battaglia — “e, tendo examinado com cuidado o doente, achei que os
tegumentos do braço direito estavam quase inteiramente destacados das carnes e
pendentes, assim como a pele do antebraço. No espaço compreendido entre as
carnes e a coxa, os tegumentos estavam tão fortemente estragados quanto os do
braço direito; no dia seguinte, a mão direita estava completamente gangrenada.
Em minha terceira visita, todas as outras partes do ferido estavam igualmente
esfaceladas; o doente se lastimava de uma sede ardente e era agitado por
horríveis convulsões; deitava matérias pútridas biliosas e estava, além de tudo
isto, fatigado por um vômito continuo, acompanhado de muita febre e delírio; enfim,
no quarto dia, depois de um adormecimento comatoso, expirou. Enquanto ele esteve
mergulhado em seu sono letárgico, eu observei com espanto que a putrefação já tinha
feito tanto progresso que o corpo do doente exalava um fedor insuportável. Viam-se
os vermes, que saíam dele, correr até fora do leito, e as unhas dos dedos da mão
esquerda se destacarem por si mesmas.
“Tendo
eu tido o cuidado de tomar informações do doente, e dele mesmo, principalmente
sobre o que se tinha passado, ele me disse, garantindo-me a verdade dos fatos,
que tinha sentido algo como um golpe de clava sobre o braço direito, e que, ao
mesmo tempo, vira uma faísca de fogo se unir à sua camisa, que no mesmo
instante foi reduzida a cinzas, sem que, todavia, esse fogo tivesse tocado de
modo algum nos punhos. O lenço que, quando chegou, tinha aplicado sobre suas
espaduas, entre a camisa e a pele, achou-se em toda sua integridade, e sem o
menor vestígio de queimadura; os calções ficaram igualmente intactos; mas o
solidéu foi inteiramente consumido, sem que houvesse um só cabelo da cabeça
queimado.”
A
mulher do infeliz Millet, sujeita à embriaguez, foi achada, em 20 de Fevereiro
de 1725, quase inteiramente reduzida a cinzas, a alguns palmos distante do fogo
de sua cozinha.
Uma
carta do General americano William Stepherd encerrava o fato seguinte. O
cadáver de uma mulher velha se evaporou e desapareceu por uma causa interna,
desconhecida, no espaço de perto de hora e meia. Uma parte dos indivíduos da
família tinha ido deitar-se, e outros tinham saído; a velha ficou em pé para
arrumar a casa. Pouco depois, um de seus netinhos entrou e viu o assoalho
ardendo. Gritou, levou-se luzes, e procedeu-se à extinção do fogo. Enquanto estavam
assim ocupados, percebeu-se alguma coisa de singular sobre o pavimento: havia
uma espécie de ferrugem ensebada e cinzas, com restos de um corpo humano; um
cheiro extraordinário se espalhava no quarto; todos os vestidos estavam
consumidos pelo fogo, e ninguém achava a desgraçada velha. Acreditou-se, a
princípio, que, querendo acender o seu cachimbo, tinha caído no fogo e se havia
queimado; mas, vendo-se que o fogo era tão insignificante, julgou-se que seria
impossível que ela fosse consumida totalmente, mesmo quando o fogo fosse dez vezes
mais considerável. A combustão dos vestidos nunca poderia produzir uma incineração
completa, pois que os antigos eram obrigados a empregar tulhas de lenha
inteiras para chegar a este resultado, e escolhiam mesmo aquelas madeiras que
continham mais matérias resinosas, tais como o pinheiro, o teixo, o freixo, o lárix
etc.
Nós
poderíamos citar um muito maior número de fatos análogos; eles nos apresentariam
os mesmos resultados. Todavia, resulta de todos aqueles que se possuem até aqui,
que a combustão humana espontânea se nota quase sempre nos indivíduos, pelo
menos, sexagenários, mui gordos, ou mui magros, mas de uma constituição mui débil,
dados a embriaguez e, sobretudo, a que é devida às bebidas alcoólicas — cuja
ingestão, aliás, é mais frequente, no inverno, nas mulheres que nos homens; que
se desenvolve instantaneamente, invade a quase totalidade do corpo, e o consome
no espaço de algumas horas e, muitas vezes, muito mais rapidamente; que a chama
que ela produz é sempre fraca, pouco levantada, e desenvolve pouco calor, pois
que quase nunca ataca os móveis que
cerca o cadáver em combustão, de modo que o quarto fica intacto e é somente
alcatifado de uma ferrugem ensebada e espessa; que, nos casos observados até o
presente, tem-se muitas vezes achado uma lâmpada, uma candeia, um foco de pouca
extensão a uma distância mais ou menos afastada do lugar onde tinha existido a
incineração; que a água dificilmente extingue dificilmente a chama, e que,
apesar de sua cessação, a combustão persiste menos no interior — e sempre as
partes do corpo que têm sido subtraídas são feridas de esfácelo[2].
A
combustão humana espontânea pode ser explicada? As teorias emitidas até hoje
nos parecem inteiramente insuficientes e podem ser facilmente destruídas por
argumentos tirados da fisiologia ou da química. Assim, nos contentaremos de
referir as duas principais teorias adotadas. Uns supõem que os licores alcóolicos,
que são continuamente ingeridos no estômago, penetram todos os tecidos do
organismo, embebe-os, por assim dizer, e chega um momento em que basta a vizinhança
de um corpo em combustão para que os tecidos mesmos se queimem e se consumam.
Outros, tendo em consideração uma mais ou menos grande quantidade de hidrogênio
que se encontra constantemente nos intestinos, supõem que este gás pode ser
produzidos nas outras partes do organismo, ou penetrá-las de maneira a inflamar-se
pela aproximação de um corpo em combustão, ou sob a influência do fluido elétrico;
fluido que se teria então se manifestado instantaneamente no indivíduo mesmo, que
é visto desenvolver-se em um grande número
de animais, ou em algumas partes de certas pessoas colocadas em circunstâncias
particulares.
Esta
última opinião, sobretudo, que pertence a um médico legista muito distinto, é
inteiramente destruída pelas experiências de Davy. Essas experiências provam
que a chama não pode atravessar uma teia metálica de aberturas de pequenos
diâmetros. Nesta hipótese, seria preciso admitir que a chama do corpo em combustão,
colocada perto do indivíduo incinerado, teria penetrado através dos poros da pele,
fenômeno inadmissível. No que se refere à causa da combustão do hidrogênio ao fluido elétrico
desenvolvido instantaneamente no indivíduo, a explicação cai por si mesma,
quando refletimos que o hidrogênio não pode queimar sem o contacto do oxigênio,
qualquer que seja a quantidade de faíscas que se façam chegar até ele.
Fonte: “O Crepusculo”
(BA), edição de 15 de agosto de 1845.
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