A CRUZ DO PATRÃO - Conto Clássico de Terror - Franklin Távora
A CRUZ DO PATRÃO
Franklin
Távora
(1842 – 1888)
O
Beberibe é a mais rica e bela página da história do domínio holandês nas
províncias do norte do Brasil. Cada uma das suas ilhas representa um capítulo
da homérica epopeia que por muito trouxe assombrado o velho mundo no Século
XVII. A Cruz do Patrão, posto que não houvesse figurado nesses tempos heroicos,
veio a ser depois vulto importante das muitas tradições do vale do Beberibe.
A
Cruz do Patrão está situada no istmo — gigantesco traço de união — posto de
natureza entre o Recife e Olinda. É a cruz de pedra; está colocada no cimo de
elevada coluna e serve para indicar aos navegantes o poço onde surgem os
navios, entre o istmo e o Recife natural, que borda a cidade. Tem, ao norte, o
Forte do Buraco e ao sul a Fortaleza do Brum, ali plantada pelo gênio batavo.
Por
muito tempo, foi crença que todo aquele que passasse de noite por perto dela
ouviria gemidos angustiosos, veria almas penadas ou seria perseguido por
infernais espíritos. Circunstâncias acidentais davam autoridade a estas crenças
de remotas eras. Mais de um viandante, passando por ali em horas mortas,
encontrará o termo de seus dias. O sitio é de seu natural deserto e como
próprio para se cometerem violências e atrocidades. De um lado corre o rio,
profundo nas marés vivas; do outro, raiva bramindo e espadanando ondas o
oceano, túmulo insondável e medonho; o istmo é estreito, longo e ermo. Fácil
sepultura pode abrir na areia frouxa, nas águas mansas do Beberibe, ou nas
ondas cruzadas do Atlântico, a mão amestrada a ocultar as vítimas do punhal que
ela brande.
Um
dia apareceu um estudante morto junto da Cruz do Patrão. As suspeitas da Justiça
caíram sobre certo soldado de uma das fortalezas vizinhas do lugar do delito.
Nas velhas roupas do indiciado depararam-se nódoas que à Justiça pareceu serem
de sangue, mas que afirmou ser ferrugem.
Julgou-se
escusado, pela evidência do fato, o exame da ciência para completo
esclarecimento da verdade, e o infeliz, condenado a galés, foi cumprir na ilha de
Fernando o seu degredo perpétuo. Passados alguns anos, um enfermo confessou ser
ele, e não o soldado, o autor do homicídio. Ordens foram expedidas para que
voltasse à posse de sua liberdade, aquele que fora injustamente privado dela.
Estas ordens não tiveram resultados, porque durante o longo sono da Justiça da
terra, havia entregado a alma ao Criador a vítima inocente.
Anos
depois foi espingardeado junto à Cruz do Patrão outro soldado por haver erguido
a arma contra seu superior. Se bem me recordo, foi esta a última execução
capital que testemunhou Pernambuco.
Era
presidente dessa província Honório Hermeto Carneiro Leão, agraciado tempos
depois Marquês do Paraná. Por esses fatos de próxima data e por outros
semelhantes de data remota, a Cruz do Patrão foi, até certo tempo, fonte de
superstições populares. Antes de se haver feito a nova estrada que por Santo
Amaro põe o Recife em comunicação com Olinda, ninguém se animava a passar
desacompanhado, de noite pelo istmo. Os matutos que tinham de vir desta ou
voltar daquela cidade aguardavam, para o fazer, a maré seca, que lhes permitia
beirar o rio em certos pontos por entre mangues, deixando a alguns passos a
cruz fatídica. Os canoeiros tinham o cuidado de navegar por dentro, afim de
escusar a sua vista.
O
que mais particularizou, porém, a Cruz do Patrão foram tradições de espíritos
infernais, bruxarias e outras quejandas. Dizia-se que os feiticeiros iam
celebrar os seus sortilégios em noite de São João, que eles escolhiam para
iniciar nos asquerosos mistérios os neófitos. Aparecia o diabo e fazia coisas
de arrepiar o cabelo. Foi por uma dessas ocasiões que teve existência a
presente lenda. Estava celebrando a sua sessão anual o Congresso dos negros
feiticeiros do Recife. Cada um deles tinha na mão um cacho de flores de arruda.
O povo diz que em noite de São João esta planta dá flores, as quais são logo
arrebatadas pelos feiticeiros para as suas bruxarias. À meia noite começou a
choreia dos mandingueiros.
Tripudiavam
estes à roda da Cruz, rezando orações de tenebrosa virtude. O rei das trevas
não se fez esperar por muito tempo. Tinha a forma de um animal desconhecido.
Era preto como carvão. Os olhos acessos despediam chispas azuis. Brasas vivas
caiam-lhe da boca encarnada e ameaçadora. Pela garganta se viam as entranhas,
onde o fogo ardia. A visão horripilante a todos metia horror.
Entre
os que tinham ido tomar mandinga, achava-se uma negra de grosso toutiço e
largas ancas que lhe davam a forma da tanajura. Foi a primeira vez que passou
pelas duras provas.
O
animal informe atirou-se a ela por entre uma chuva de faíscas abrasadoras; ela,
porém, deitou-se a correr pelo istmo a fora, como se tivesse perdido a razão.
Quando pensava que havia escapado à provocação cruel, tomou-lhe a dianteira o
animal cada vez mais ameaçador e terrível. Levada pelo desespero do que via e
sentia em redor de si, a negra correu ao mar para atirar-se nas águas
gemedoras. O mar mostrava-se mais medonho que o demônio solto, e as suas vozes
puseram no coração dela mais pavor do que as dos feiticeiros, que tripudiavam a
roda da Cruz, em sua infernal choreia. Retrocedeu mais horrorizada que antes.
Tenho dado de rosto com o inimigo pela vigésima vez, correu ao rio que volvia
as águas tão de manso, que parecia adormecido. Meteu-se por elas a dentro, para
escapar à terrível perseguição.
Enganado
pela vista dos mangues, o demônio atirou-se após a fugitiva, julgando entrar em
uma floresta. Assim, porém, que o seu corpo ígneo se pôs em contato com as
águas frias, súbita explosão destruiu a furiosa alimária. O estampido ribombou
como descarga elétrica. Nuvem de fumo espesso, que tresandou a enxofre, cobriu
a face de Beberibe.
No
outro dia, na baixa mar, apareceu no lugar onde a negra se tinha afundado não o
seu corpo, mas a Coroa Preta, que indicou dali por diante aos feiticeiros a
vingança do espírito das trevas.
Há
bem poucos anos via-se ainda, na altura da Cruz do Patrão, quando a maré
deixava de fora o formoso arquipélago que a natureza situou no leito do
Beberibe, a Coroa Preta, assim conhecida entre os canoeiros pela cor dos
detritos que ali se haviam acumulado, que contrastava, por sua nudez, com as
ilhas circunstantes.
Nestas,
a natureza sorria com gentil e variável amenidade; naquela, dominava a aridez e
o deserto. Nenhum mangue fora beber em seu seio maldito o húmus que as
florestas dos mangues sugam nos seios boleados das ilhas, de contínuo
refrigeradas pelas águas lustrais do Beberibe. As ilhas, vestidas de viçosos e
alegres arvoredos, podiam oferecer residência às fadas amigas e bonançosos
gênios; a coroa escalvada só poderia servir, pela sua feição tumular e triste,
de morada a algum peregrino espírito, percursor de tempestades e de enchentes
destruidoras.
Dizia
o povo que, quando tivesse desaparecido de todo a Coroa Preta, teria cessado
também o encanto da Cruz do Patrão. O que é certo é que hoje não se fala na Coroa,
e nem na cruz. Aquela foi de todo comida pelas águas do rio, enquanto esta a
ninguém mais mete medo, porque já ninguém passa pelo istmo, exceto os soldados
que guarnecem as fortalezas.
O
Recife e Olinda, comunicam-se assídua e diariamente pela estrada de Santo
Amaro, por onde as locomotivas correm, de espaço a espaço, enchendo a margem
direita do Beberibe de fumos e ruídos, que indicam o percurso da civilização
por aquelas solidões pitorescas.
O
istmo há de desaparecer também de todo, como desapareceu a coroa e cessou o
encanto da cruz.
À
proporção que Olinda aumenta ao Sul e o Recife ao Norte, encurta nas
extremidades a língua de areia que ainda as separa. Daqui a algumas dezenas de
anos, sobre sua face, ora rasa e nua, ter-se-á levantado entre as águas azuis
do oceano e as águas claras do rio um quarteirão de casas gentis, de quase meia
légua de comprido.
O
Recife poderá então dizer à sua esposa de cara memória esta letra de um dos
seus imortais poetas:
"Não nos separa
Momento
algum;
De
dois que fomos
Somos
só um".
Fonte: “Vamos Ler”,
edição de 8 de janeiro de 1941.
Conto publicado originalmente em junho/2020.
Bem de longe, ao passar pela avenida, ainda é possível enxergar a Cruz do Patrão.
ResponderExcluirMuito obrigado pela informação.
ResponderExcluirAbraços.
Paulo