O FANTASMA DE FISHER - Conto Clássico Sobrenatural - Autor anônimo do séc. XIX
O
FANTASMA DE FISHER
Autor
anônimo do séc. XIX
Tradução
de Paulo Soriano.
Você
já visitou a cidade, ou melhor, a vila de Campbelltown? Se não, nós o
aconselhamos a uma rápida visita. Recomendamos que o faça de boa vontade,
porque podemos falar da prazerosa experiência que nos proporciona a confortável
estalagem, na qual desfrutamos alguns dias de descontração, longe da poeira e
da agitação de Sydney. Se você já esteve lá, pode prescindir da descrição
de sua igrejinha, de sua aparência estranha, de sua ubicação agradável, enfim,
de todas as belezas que uma cidadezinha oferece a um homem ofuscado pela poeira
e pela labuta em sua primeira visita, e permitir-nos abordar imediatamente o
assunto de nossa história.
O
visitante de Campbelltown deve ter observado, enquanto passeava pela vila, um
grande prédio inacabado de tijolos, inicialmente concebido para abrigar uma
loja, mas que agora se deteriora rapidamente. Sua aparência, no entanto, revela
— qualquer que tenha sido a intenção do construtor — que algo provavelmente
deve ter interferido para impedir a realização de seu objetivo inicial. Agora o
prédio está caindo rapidamente aos pedaços, e o frescor da grama que cobre o
pasto ao redor adverte que, seja qual for a causa, as ruínas não são muito
frequentadas pelos habitantes das cabanas vizinhas.
O
edifício inacabado e a terra que o rodeia eram propriedades, alguns anos atrás[1],
de um homem chamado Frederick Fisher[2],
que ocupava uma cabana adjacente, da qual mal restam vestígios. Fisher era
originalmente um sentenciado, que servira como empregado de um cavalheiro da
vizinhança e havia se mudado para a cidade quando posto em
liberdade. Alguns anos antes do início de nossa história, ele havia
recebido seu certificado de liberdade, depois de cumprir a sentença imposta
pelas leis de seu país. Logo após reaver a liberdade, Fisher obteve a
concessão de um lote da cidade e iniciou a construção do referido edifício, com
a intenção de destinar parte dele à sua moradia e reservar o restante a uma
loja.
Fisher
era apenas um garoto à época do crime que levara a seu desterro. Seus
parentes, enfurecidos com a desgraça a que os havia submetido por sua má
conduta, pouco se importaram com ele após o degredo. E como Fisher não podia
confiar naqueles que, ao seu redor, via em circunstâncias semelhantes às suas,
não fez, portanto, amigos com quem pudesse agradavelmente passar o seu tempo
vago. Quando jovem, a sua educação fora demasiadamente negligenciada pelos
mesmos parentes que, depois de sua queda, pareciam tão ciosos em censurá-lo.
Portanto, não é motivo de surpresa que o tempo ocioso tenha lhe parecido,
ocasionalmente, um pesado fardo. Sua própria lareira pouco o atraía. Sua
conduta, desde sua chegada à colônia, não parecia nada gratificante; a
promessa de corrigir-se, feita a si mesmo na prisão e durante a viagem de
degredo, havia derretido como neve quando exposta à influência desmoralizante
do exemplo dado por aqueles que o cercavam. Fisher, buscando refugiar-se das
lembranças desagradáveis, voou, como a maioria das pessoas de sua condição,
para o que a taberna vizinha oferecia e lá, enchendo a caneca, procurou o que
não encontrava em casa.
As
inevitáveis consequências de uma conduta como essa logo se tornaram patentes.
Os cuidados que pautavam Fisher na condução de seus negócios, na época que se
seguiu à conquista de sua liberdade, eram agora negligenciados. Em vez de se
esforçar por se livrar das dificuldades que começaram a rodeá-lo, ele mergulhou
ainda mais profundamente em uma vida de dissipação, frequentando as tavernas
noite e dia. Sua inevitável ruína logo se tornou tão evidente que seus
credores decidiram não mais tolerar o atraso: ele foi preso e metido na cadeia
por uma dívida de 150 libras.
Embora
Fisher tivesse sido fraco o suficiente para permitir que o mau exemplo de
outros o desviasse do bom caminho, ele ainda estava longe de ter atingido o
ponto de depravação que muitos de seus companheiros haviam alcançado. Apesar de
ter negligenciado os seus negócios e ter dissipado os recursos que deveriam ter
sido aplicados na liquidação de suas dívidas, ele ainda conservava escrúpulo
suficiente para estremecer quando Worral, um de seus companheiros de
bebedeiras, sugeriu-lhe um estratagema para fraudar os credores: Fisher transferiria
a Worral a totalidade dos bens que ainda lhe restavam; este, de sua feita,
assinaria um contrato obrigando-se a restituir os bens assim que fosse
permitido a Fisher deixar a prisão.
As
persuasões de Worral — que para Fisher representavam a facilidade e a segurança
com que poderia safar-se aos credores e recuperar a posse de sua propriedade
sem qualquer encargo — logo superaram a repugnância que a princípio sentira, e
ele consentiu em fazer a transferência de tudo o que possuía para Worral, sob essas
condições.
O
Sr. P., autor da demanda que resultou no encarceramento de Fisher, descobrindo
que este não era o proprietário dos bens constritos, consentiu, depois de algum
tempo, na libertação do devedor, imaginando que este seria o único meio pelo qual
poderia recuperar a quantia emprestada. Fisher, imediatamente após sua
libertação, retornou a Campbelltown, exultando o sucesso de seu plano.
Certa
noite, Fisher saiu de casa com o propósito de percorrer, como de costume, as
tavernas das vizinhanças. A manhã chegou, mas a sua continuada ausência
não causou surpresa, pois supunha-se que ele estivera tão bêbado na noite
anterior que não conseguira voltar para casa.
À
medida que o dia passava, e sem sinal algum de sua presença, um vizinho saiu a
percorrer os bares, perguntando por Fisher. Ele não estava em nenhum de seus
lugares habituais, nem ninguém o via desde a noite anterior.
Muitas
suposições foram feitas sobre a causa de sua prolongada ausência, mas nenhuma
razão plausível apresentou-se até a tarde. Worral voltou de Sydney, para onde
disse ter acompanhado Fisher na noite anterior. Disse que Fisher embarcara
cedo, pela manhã, para a Inglaterra, a fim de evitar o impertinente assédio de
seus credores, que ultimamente eram bastante problemáticos para ele, já que
alguns ameaçaram enfiá-lo novamente na cadeia. Isso foi corroborado pelo fato
de que um navio zarpara para a Inglaterra naquele dia.
As
declarações de Worral deixaram completamente de lado todas as conjecturas, que
vieram à tona, quanto à causa do desaparecimento de Fisher.
Ao
apresentar a escritura de transferência de bens assinada por Fisher, Worral foi
autorizado a tomar a posse incontestável da propriedade deixada para trás.
O
tempo passou, e o nome de Fisher foi quase esquecido ou nunca mencionado,
exceto pelos credores enganados, que se consolavam de sua perda despejando
imprecações e tomando resoluções para nunca mais serem tão facilmente iludidos.
Cerca
de seis semanas após o desaparecimento de Fisher, Hurly, um respeitável colono
nas proximidades de Campbelltown, estava retornando para a sua residência. Ele
conhecia Fisher há muito tempo, e não é de todo improvável que sua mente
tenha-se voltado ao seu súbito desaparecimento quando passou pelo local onde
aquele residira por tanto tempo. Seja como for, no entanto, nenhuma dúvida
sobre a alegação de Worral lhe ocorria.
Ele
deixou Campbelltown por volta de dez horas da noite. A Lua havia nascido, mas o
seu brilho era obscurecido pelas nuvens. Depois de passar pela. Cerca de quinhentos
a oitocentos metros depois da residência de Fisher, Hurly vislumbrou a figura
de um homem sentado no topo da cerca, situada no mesmo lado da estrada em que ficava a
casa. Ao se aproximar, foi tomado pela surpresa de claramente reconhecer
naquela figura os traços de Fisher, que supostamente estava a caminho da
Inglaterra. Acercou-se, então, da figura com a intenção de se assegurar de que
não tinha sido enganado por uma semelhança nascida de sua imaginação. A
horrível conformação dos traços, que aos poucos chegava-lhe à visão, causou-lhe
um tão grande calafrio de terror que se prostrou ali mesmo, como se enraizado no solo.
A
figura, enquanto o olhava, levantou-se da cerca e ergueu o braço, apontado na
direção de um riacho seco que atravessa o pasto naquele local. E, gradualmente,
desapareceu aos olhos de Hurly, aparentemente seguindo com o dedo as curvas do
riacho.
O
terror que, a essa visão, dominou as faculdades de Hurly desafia todo poder da
descrição. Em estado de estupefação, ele fugiu e procurou entrar na casa mais
próxima. Como conseguiu encontrar o caminho para a casa, ele não se
lembra, mas, assim que se aproximou, seus sentidos o abandonaram
totalmente. O barulho causado pelo choque de sua cabeça contra a porta,
quando ele desabou, assustou os moradores que, ao abri-la, o encontraram numa
síncope mortal. Levaram-no para dentro, onde ele permaneceu deitado durante uma
semana inteira, presa de uma febre cerebral.
A
frequente menção ao nome de Fisher em seus delírios atraiu a atenção daqueles que
o assistiam, e logo as conjecturas concentraram-se no esforço de descobrir o
que o levara a tal estado. Sua conhecida propensão à sobriedade, bem como o
testemunho daqueles que se separaram dele apenas alguns minutos antes do
singular evento, proibiam a suposição de que aquilo havia sido causado pela
embriaguez. E os boatos, com suas mil línguas, viraram a cabeça dos aldeões com
vãs hipóteses quanto à sua provável causa.
Na
manhã do nono dia de seu acometimento, Hurley acordou, após um sono longo e
revigorante, em plena posse de seus sentidos, e expressou, aos seus
circunstantes, o desejo de que se chamasse imediatamente o chefe de polícia.
William
Howe, de Glenlee, que então ocupava o cargo de superintendente de polícia de
Campbelltown e dos distritos vizinhos, foi chamado. Ao tomar conhecimento das
circunstâncias, seguiu para lá imediatamente. A ele, Hurley revelou o que tinha
visto, participando-lhe a suspeita, que aquela estranha visão imprimira em seu
espírito, de que Fisher fora vítima de uma emboscada.
Assim
que Hurley conseguiu sair da cama, o Sr. Howe, acompanhado por alguns
policiais, entre os quais um aborígene rastreador chamado Gilbert, foi
conduzido pela testemunha ao local onde vira a aparição. Ao examinar
atentamente a estaca pontiaguda indicada na cerca, nela Howe descobriu manchas
de sangue. Iniciaram uma busca ativa para descobrir outros indícios do suposto
assassinato, mas nada mais foi constatado.
Considerou-se
aconselhável percorrer o curso do riacho na direção em que o espectro apontava
quando desaparecera. Alguns pequenos lagos formavam-se intermitentemente
ao longo do leito seco do riacho, e o nativo Gilbert foi orientado a explorá-los
com a sua lança. Aproximando-se, ele examinou cuidadosamente cada uma das poças
d’água, mas o movimento que fez com a cabeça denotou a sua falta de
sucesso. Quando Gilbert acercou-se de um lago maior, que ainda não fora
examinado, os observadores viram que seus olhos brilhavam. O nativo exclamou,
em tom de triunfo, embora a alguma distância do local:
—
Sente-se aqui a gordura do homem branco.
Assim
que alcançou a margem do lago, jogou a lança na água e, depois de algumas
buscas, apontou para um lugar específico na água, dizendo:
—
Homem branco ali.
Os
policiais lançaram-se imediatamente à tarefa de drenar a água. Feito isto,
passaram a escavar na areia. Restos de um ser humano, em estágio avançado de
decomposição, foram descobertos.
Agora,
tornava-se óbvio, para todos os presentes, que Fisher — se os restos
desenterrados eram realmente dele — encontrou um fim prematuro. A suspeita
recaiu em Worral, que fora a única pessoa que colhera algum benefício com a
morte de Fisher. Lembraram, também, que ele havia propalado a história do
retorno de Fisher à Inglaterra. Muitas circunstâncias, que até agora
haviam escapado à atenção, afloraram à mente dos vizinhos, corroborando a
suspeita.
Howe
prendeu Worral, e a suspeita foi confirmada por um conjunto de provas
circunstanciais. Howe se comprometeu a levar o homicídio a julgamento pelo
Supremo Tribunal Federal. A convicção de que a justiça retributiva estava
prestes a cair-lhe sobre o ombro operou tão incisivamente em sua mente que
Worral confessou-se culpado.
Sua
razão para executar tão bárbaro crime surgiu da transação mencionada na parte
anterior desta narrativa. Fisher ficou tão contente com o sucesso do
estratagema, com o qual defraudara os credores, que se esqueceu de resgatar a
escritura de transferência dos bens feita em benefício de Worral. Ocorreu a
Worral que, se conseguisse tirar calmamente Fisher do caminho, poderia reivindicar
a propriedade daqueles bens exibindo a escritura. Esse projeto lhe ocorrera
repetidamente enquanto Fisher estava na prisão, e ele tinha decidido, já a esta
altura, recuperar a posse do contrato que o obrigava a devolver a propriedade
ou, se necessário, a se livrar completamente do comparsa. Fracassado em
seu plano de obter a posse do documento, em razão da libertação inesperada de
Fisher, Worral concebeu o plano diabólico que acabou por consumar.
Sob
a máscara da amizade, ele era o companheiro de Fisher durante o dia, mas, noite
após noite, observava os movimentos de Fisher desde que este saíra da prisão.
Fora, contudo, acidentalmente frustrado
em todas as tentativas anteriores, até a que o assassínio foi finalmente consumado.
Naquela
noite, estava ele, como sempre, rondando a cabana de Fisher, procurando uma
oportunidade para alcançar os seus objetivos, quando Fisher, atraído pela
beleza da noite, saiu de casa para passear, seguido a certa distância por
Worral. No local onde o sangue foi posteriormente descoberto, Fisher parou
e se encostou na cerca, aparentemente envolto em pensamentos profundos. O
assassino tinha agora diante de si a oportunidade que tanto esperava e, pegando
uma estaca quebrada da cerca, escondeu-se silenciosamente atrás do cercado e, com
um golpe de sua arma, deixou-o estendido, sem vida, no chão. Então carregou o
cadáver da cena do crime até o local onde foi descoberto e o enterrou nas
profundezas da areia.
Algumas
semanas depois de ter confessado, expiou seu crime no cadafalso, implorando,
com seu último suspiro, o perdão de seu Criador.
[1] A presente
narrativa foi escrita em 1836, cerca de dez anos após os acontecimentos
descritos.
[2] Nascido em
Londres, Inglaterra, em 28 de agosto de 1792 e falecido em Campbelltown,
Austrália, em 1826.
Fonte: The Sydney
Gazette and New South Wales Advertiser (Austrália), ed. de 5
de março de 1936.
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