O MISTÉRIO DE KASPAR HAUSER - Narrativa Clássica de Mistério - Ítala Gomes Vaz de Carvalho
O
MISTÉRIO DE KASPAR HAUSER
Ítala
Gomes Vaz de Carvalho
(1882
– 1948)
Numa
manhã de primavera do mês de maio de 1828, um rapazinho, que poderia ter mais
ou menos dezoito anos de idade, apareceu, não se sabe como, às portas da cidade
de Nurembergue. Estava descarnado, fraco, pálido e tremia sem cessar. Uma mecha
de cabelos louros caía-lhe sobre a testa, dando sombra aos olhos entreabertos
pelo brilhar do Sol, encarando, porém, com expressão de infinita surpresa, a
rua inundada de luz; dir-se-ia que, pela primeira vez, na vida, olhava o Sol!
Carros e carroças rolavam alegremente sobre o calçamento da rua e aqueles
rumores de rodas e tamancos pareciam ser os primeiros sons que ele ouvia, tal
era a dolorosa ansiedade que tinha espelhada no rosto. Duas senhoras passavam
ao longo da grade de um jardim, levantando com gesto gracioso a saia comprida
de cetim azul-rei e, certamente, deviam ser aquelas as primeiras mulheres que
ele via! Tudo parecia ser novo e inesperado para o rapazinho, como se acabasse
de nascer e, no entanto, já devia ter uns dezoito anos! Quando quis andar, imitando
as pessoas que via caminhar na sua frente, e tentou colocar uma perna depois da
outra, mantendo o seu corpo vertical, perdeu o equilíbrio, encolheu-se todo e
caiu no chão com um gemido. Aquele rapaz nunca devia ter caminhado!
Assim
permaneceu desmaiado e as duas senhoras, que passavam ao seu lado, no mesmo
momento gritaram assustadas. Correram então alguns transeuntes, sobrevieram
guardas e tentaram despertá-lo sacudindo-o energicamente, e os policiais
concluíram, dizendo:
—
É um vagabundo bêbado! Vamos levá-lo para a delegacia!
Chegando
no primeiro posto de polícia, o desconhecido despertou e o comissário
perguntou-lhe com doçura:
—
Quem é você? Que faz aqui? De onde vem?
O
rapazinho não abria a boca. Olhava para os guardas com os mesmos olhos entreabertos,
que pareciam não poder suportar a luz do dia, e o queixo inferior caído
demonstrava uma indizível surpresa e terror ao mesmo tempo. As mãos alvíssimas,
delicadas, tinham um tremor contínuo e mal podia ele manter o busto ereto sobre
a cadeira onde o haviam feito sentar à força!
Era
como um trágico boneco cheio de espanto e terror:
—
É um mentecapto! — pensou o delegado. E, por escrúpulo de consciência, repetiu
as perguntas. Mas tudo em vão! O desconhecido não compreendia nenhuma linguagem
humana. Só uma vez emitiu um som inarticulado, algo como a vogal "u"
pronunciada com os lábios serrados, mas nem isso foi uma tentativa de resposta;
era apenas um som instintivo, animalesco, que iludiu um instante o delegado.
Este julgou, de fato, que o rapazinho fosse mudo e deu ordens para que
trouxessem pena e tinta. Vendo, porém, aqueles objetos, o desconhecido
estremeceu internamente, agarrou a pena como se agarra um punhal e traçou
alguns sinais no papel como sob uma imposição temerosa. O delegado observou
atentamente aqueles sinais e pensou ter decifrado um nome — "Kaspar
Hauser".
—
Chama-se Kaspar Hauser? — perguntou; mas o infeliz já tinha retomado o seu
aspecto de criatura inerte, insensível e apavorada, e nem mudou quando foi
encerrado numa cela. Quando o Dr. Daumer, o médico da detenção, veio vê-lo
alguns momentos depois, julgando estar ante um homem esfomeado, mandou vir
alimentos. Se bem que a cela tivesse uma cama, Kaspar estava estendido no chão
de pedra. Evidentemente, ignorava o que fosse um leito. Quando viu o pão e a
caneca de água, foi tomado de violentas convulsões e rolou pelo lajedo,
estrebuchando. Batia os dentes como se estivesse com febre alta, mas em seguida
agarrou o pão, devorando-o vorazmente.
Uma
felicidade animal reluzia em seus olhos míopes, enquanto o Dr. Daumer olhava-o
perplexo:
—
Este rapaz, no entanto, não me parece ser um deficiente nato!
Observações
sucessivas, que duraram dias e semanas, o induziram finalmente a concluir que
Kaspar era perfeitamente são de suas faculdades mentais. O desgraçado não
compreendia nada pela razão muito simples de que ignorava tudo! Não conhecia o
uso da palavra e nem sabia caminhar ereto! Teria ele vivido só entre os
animais? Não, porque trajava decentemente e tinha os cabelos cortados na última
moda. Mas, então, qual seria o espaventoso enigma que escondia aquela vida?
Quem o teria alimentado todos aqueles anos, deixando-o em tão completa
ignorância?
Nos
dias a seguir, o Dr. Daumer trouxe-lhe alguns doces e chocolates que
despertaram gula no rapazinho. Pedia-os estendendo a mão e emitindo uma espécie
de ganido cheio de trinados. Comportava-se como uma criança, mas como criança
muito jovem, tanto assim que o Dr. Daumer lhe trouxe também alguns brinquedos:
um boneco de estopa, um chocalho e um cavalinho de pau.
Kaspar
atirou-se sobre este último com um grito rouco de imensa felicidade e apertou-o
de encontro ao peito, enquanto lágrimas de comoção lhe molharam o rosto branco
como cera. Parecia ter encontrado um objeto que lhe era imensamente caro!
—
É estranho — pensou o médico. — Ele deve já ter possuído um cavalinho de pau!
O
tempo passava sem trazer nenhum esclarecimento sobre a misteriosa identidade de
Kaspar e o bom Dr. Daumer decidiu adotar o rapazinho. Após ter obtido regular
autorização, levou-o para viver consigo, empreendendo corajosamente a tarefa de
educá-lo e de lhe ensinar a falar. Ele era incontestavelmente muito inteligente
e aproveitável! Quando, finalmente, Kaspar alcançou a possibilidade de se exprimir,
fez uma estranha declaração:
—
"Eu não sei há quanto tempo estou neste mundo! O meu passado é obscuro e
eu vivia arrastando-me de quatro pés, como os gatos, e batendo constantemente
contra obstáculos duríssimos que deviam ser as paredes de minha prisão. Eu
estava fechado num quarto escuro, sem portas nem janelas. Não via ninguém, não
ouvia ruído de espécie alguma e, quando tinha fome ou sede, dirigia-me
instintivamente para uma determinada direção, onde encontrava alimento e uma
caneca com água. Quem as colocava lá? E por qual abertura da parede? Eu o
ignoro! Assim passou o tempo impreciso, sem dúvida muitos anos, até que vi
aparecer uma coisa estranha, viva, diferente da escuridão que me cercava, uma
coisa que me fazia doer os olhos: a luz de uma lanterna! Segurava-a na mão um
ser extraordinário, que se mexia sobre umas coisas compridas... as pernas! Era
o primeiro homem que eu via! Ele deu-me comida e, quando partiu, deixou-me
entre as mãos um objeto ao qual eu me afeiçoei estranhamente, embora não o
pudesse nunca ver, apenas tocá-lo! O tato revelou-me a sua forma, tanto assim
que o pude reconhecer quando o Dr. Daumer me deu outro igual: um cavalinho de
pau! Ninguém poderá jamais avaliar o que fora para mim aquele brinquedo! Eu não
sabia exatamente o que era e nem podia imaginar o que representava; todavia,
quando me sentia desesperado e uivava gemendo, bastava-me achar no escuro
aquele cavalinho de pau e, apertando-o entre as mãos, experimentava uma
sensação de indizível conforto! Eu só andava sobre os joelhos, porque ninguém
nunca me havia ensinado a caminhar sobre a planta dos pés. Todavia, quando
aquele homem voltou outra vez é que eu reparei o modo pelo qual ele andava
sobre aquelas coisas compridas que eram as pernas, eu quis imitá-lo, mas caí logo
no chão com dores nas canelas! E passou mais tempo! O tal homem já me vinha ver
mais frequentemente e produzia certos sons harmoniosos com a boca que, agora
compreendo, era uma linguagem humana! Entrementes, eu me via coberto com roupas
mais cômodas e mais quentes, sendo que periodicamente sentia uma sensação de
frescura na nuca: cortavam-me os cabelos! Mas eu não me apercebi nunca desta
operação, de maneira que também compreendo hoje que o homem misturava ao meu
alimento um poderoso sonífero e que me trocava de roupas e cortava o meu cabelo
quando eu estava sob a ação do narcótico.
"E
o tempo passou sem que eu tivesse noção alguma do que passava, mergulhado
sempre na mesma escuridão e idêntica ignorância!
"Um
dia — seria dia ou noite? Não sei! —, aquele homem trouxe consigo alguns
objetos estranhos que tornei a ver sobre a mesa da delegacia: uma caneta com a
pena, um tinteiro e papel de carta.
"Curvo,
ao meu lado, no chão, alumiado pela lanterna, ele ensinou-me a traçar sobre o
papel certos sinais alinhados e distanciados uns dos outros, com alternativas
de linhas retas e arredondadas. Levei muito tempo para aprender. Não sei
quanto! Talvez meses! Talvez anos! Aqueles sinais, como o estou sabendo agora,
eram letras caligráficas e significavam um nome: "Kaspar Hauser"! Mas
estou bem convencido de que este não é o meu verdadeiro nome!
"Certamente,
o meu nome é outro e aquele homem ensinou-me a escrever este para transtornar
as investigações sobre a minha verdadeira identidade. Finalmente, um dia — ou
talvez uma noite? —, ele trouxe-me comida melhor e mais abundante. Eu tinha
fome — devorei tudo, mas logo principiei a sentir-me leve... leve... cada vez
mais leve... As pálpebras não queriam mais ficar abertas e irresistivelmente
fechavam-se sobre os meus olhos turvos. Não podia mais lutar contra aquele
sono; todavia, antes de adormecer completamente, senti que o homem me carregava
sobre o ombro e que me levava por um corredor interminável e sempre escuro.
"Quando
reabri os olhos, vi mil cores loucas que me cegavam e uma multidão de seres
estranhos que iam e vinham no meio de rumores incríveis e ensurdecedores. Eu
estava atirado numa rua de Nurembergue".
A
história de "Kaspar Hauser" despertou em toda a Alemanha um arrepio
de piedade e de intensa curiosidade e aquele interesse recrudesceu seis meses
depois, quando se espalhou a notícia de que um desconhecido, penetrando
clandestinamente na casa do Dr. Daumer, havia tentado apunhalar o rapazinho.
Era sem dúvida um atentado contra a vida do infeliz. Aquele ou aqueles que haviam
guardado o pobre rapaz vivo, numa sepultura, durante tantos anos, queriam agora
desembaraçarem-se definitivamente de sua pessoa.
Kaspar
compreendeu a sua triste sina e caiu num abatimento profundo. Teve crises de
pânico e terror. Via sicários em cada sombra, punhais em todas as mãos e acabou
adoecendo de pavor. Um rico senhor inglês, Lord Stanhope, profundamente
compadecido, ofereceu-se para levá-lo consigo para a Inglaterra, furtando-o
assim à perseguição de seus implacáveis inimigos invisíveis. Kaspar aceitou,
cheio de uma nova esperança e, com o consentimento do Dr. Daumer, alcançou Lord
Stanhope em Ausbach, preparando-se para deixar com ele, e para sempre, a
Baviera, onde havia sido tão infeliz!
Faltavam
poucas horas para o embarque. Kaspar tinha o coração e a mente aliviados,
quando, na véspera no dia marcado, enquanto o rapazinho atravessava os jardins
do Palácio Real, na altura do monumento a Uzen, dele se aproximou um
desconhecido, que lhe entregou uma carta, pedindo-lhe que a lesse imediatamente.
Kaspar, ainda incerto e tímido, dispôs-se a abrir o envelope, quando o
desconhecido, tirando da manga de seu paletó um punhal, enterrou-o friamente no
peito do rapaz, fugindo imediatamente depois. O pobre Kaspar, embora
mortalmente ferido, conseguiu caminhar até o hotel onde estava hospedado e caiu
sem sentidos, murmurando: "Uzen!... monumento... carta!"
Os
policiais, informados do atentado, correram para o local do crime, onde, aos
pés do monumento de Uzen, encontraram efetivamente a carta. Ela dizia o seguinte:
"Kaspar
Hauser para vocês, mas não para nós, nasceu no dia 30 de abril de 1810 e terá
que morrer em 14 de dezembro de 1833. Eu venho de muito longe! Deixo-vos as
iniciais do meu nome: M. L. O."
Kaspar
morreu dois dias depois, em 16 de dezembro de 1833. Lord Stanhope prometeu uma
recompensa de cinco mil florins a quem descobrisse o assassino, mas tudo foi em
vão! A morte selou para sempre o mistério de Kaspar Hauser, vítima de obscuros
interesses humanos que talvez protegessem a honra de uma mulher, talvez a
validez de um testamento ou mais ainda, uma grave razão de Estado e os direitos
de uma dinastia! Seria ele um descendente de Luís XVI, herdeiro da coroa de
França? Quem poderia dizê-lo ou desmenti-lo?
Fonte: “A Noite
Ilustrada” (RJ), edição de 2 de janeiro de 1945.
Comentários
Postar um comentário