O RETORNO - Conto de Ficção Científica - Paulo Soriano



O RETORNO

Paulo Soriano

 

Para Henry Evaristo

 

Meu velho pai sentou-se na poltrona, ao lado da lareira, e me chamou:

— Venha! Venha logo! Quero contar-lhe uma história.

Ah, como eu amava aquela história! Uma história absurda, que eu já sabia de cor, mas que eu escutava com o mesmo prazer dos tempos de minha infância.

— Chegue mais junto. Isso. Quero contar-lhe uma história verdadeira — disse meu pai, sorrindo-me com satisfação.

— Conte-me, pai.

O velho pigarreou. Remexeu-se na poltrona. Uniu os dedos enrugados e, solenemente, desfiou a sua história.

— Um grupo de alpinistas suecos — um grupo desses caras malucos que gostam de arriscar a vida por nada — havia acampado em uma base de apoio, a cerca de quatro mil pés de altura, antes de iniciar a jornada rumo ao cume do monte McKinley. Segundo Anderson, o chefe da equipe, a noite transcorreu tranquilamente.

“Houve um pequeno deslizamento de neve, mas, como se tratava de um acontecimento ordinário, o líder sueco levantou o acampamento antes do amanhecer. Os homens percorreram, sem grandes dificuldades, cinco milhas na direção nordeste, com inexpressiva variação na altitude. Foi quando perceberam que o solo tremia. Fez-se um barulho ensurdecedor. Experiente, o líder Anderson era igualmente um homem de sorte, porque, a poucos metros de onde estavam, a ponta de uma enorme rocha, lisa e esguia como uma espada, elevava-se abruptamente da neve. Embora a rocha fosse plana como a superfície de uma placa de metal, havia, na região onde a pedra irrompia, um nicho estreito, como uma fenda ogival, mas capaz de abrigar a todos. Mal se acomodaram os alpinistas naquela abençoada gruta, uma massa incomensurável de neve precipitou-se vertiginosamente, rápida e uniforme como a lava de um vulcão. A grande rocha, para a felicidade dos aventureiros, elevava-se a cerca de cem metros de altura e deveria ter o dobro de comprimento nas bases laterais. Constituía um grande prisma triangular, cuja aresta, voltada para o cimo da montanha, servira-lhes de providencial anteparo. O caudal de neve, ao deslizar celeremente, deparou-se com uma bifurcação inexorável. Assim, a grande massa de neve se dividiu, talhada pela lâmina afiada da quilha rochosa, ganhando direções adversas. A correnteza, que no seu caminho arrastava árvores e animais, perdeu, aos poucos, o ímpeto e a fúria.

“Quando tudo se acalmou, o grupo verificou que um milagre acontecera. Toda a região frontal à grande rocha estivera indiferente ao tumulto provocado pela avalanche. Uma descida segura à base de apoio estava garantida.

“Por cautela, somente à tardinha o líder Anderson autorizou a descida. Assim, de mochila nas costas, os alpinistas iniciaram o retorno, admirados com a visão que tinham dos flancos devastados.

“Foi a duas milhas de distância que a equipe se deparou com algo muito estranho. Muito estranho mesmo. Sabe o que era?”

Meu pai sempre interrompia ali a narrativa. E jamais deixou de repetir a mesma pergunta. Eu adorava aquilo. Sim, eu amava aquilo tudo. Era maravilhoso aquele ritual doméstico.

— Não, pai. Eu não sei.

— Adivinhe, então.

— Não sei, pai. Diga você.

— Era algo que reluzia. Algo que parecia não ser deste mundo. Assemelhava-se a dois enormes pires unidos pelas bordas, e estava inclinado, meio enterrado na neve revolvida pela avalanche. Era metálico. O que era?

— Uma nave alienígena?

— Com certeza! — respondeu meu pai, cofiando os bigodes de seda. — Por que motivo o governo tomaria tanto cuidado para ocultá-la e transportá-la até o Novo México? Bem, a verdade é que, com o anúncio da descoberta, o exército entrou em cena. E onde há militar, há segredo e burocracia. Mandaram os suecos para casa, mas não sem antes lhes comprar o silêncio a peso de ouro. O que não evitou que um deles, por um montante bem mais generoso, vendesse a história para a NBC. Vou lhe dizer uma coisa: aquela não fora a primeira e nem a última nave alienígena encontrada na Terra. Mas a nave era diferente: estava intacta. É evidente que os militares pretendiam estudá-la. Em vão, é claro. É como se dessem um microcomputador para um neandertalense examinar.

Aqui meu pai abria um sorriso simplesmente encantador.

— Mas o segredo maior estava no interior da nave. Era uma nave pequena, com pouco mais que seis metros de diâmetro por três de altura. Levamos seis meses para decifrar o código de acesso. Eu era o matemático chefe da equipe. Eles não queriam, mas eu ousei: fui o primeiro a entrar na nave. E lá dentro tudo era muito estranho.

— O que havia lá dentro, pai? — eu sempre fazia esta pergunta tola. E o meu pai respondia, com um quê de impaciência:

— O que havia lá dentro? Nada, absolutamente nada. Exceto por uma coisa. Olhe, filho, eu imaginava que veria um painel de controle cheio de botões multicoloridos. Pensava que haveria telas de computador a laser ou coisas semelhantes. E, também, esqueletos de homenzinhos outrora verde-oliva. Mas não havia nada disso. O disco estava completamente vazio, exceto pelo... pelo que imaginei ser uma câmara criogênica ou coisa que o valha. Não estava presa ao chão. Ela flutuava. Provavelmente em razão de algum sistema de levitação baseado no eletromagnetismo. E não houve quem conseguisse removê-la do interior da nave. Os exames de ultrassom foram feitos lá mesmo e revelaram que a câmara, composta por dois compartimentos, tinha algo de muito singular em seu interior. No menor, via-se nitidamente a imagem de um par de sandálias. No outro, a do corpo de um homem. Sim, um ser humano. Nada de homenzinho verde-oliva.

“Consumimos dois anos para decifrar o código numérico que dava acesso ao compartimento menor, aliás, o único que era guarnecido de saliências semelhantes ao teclado de um computador.

“E olhe que tínhamos, à nossa disposição, os computadores mais potentes e avançados do mundo. A abertura do compartimento revelou, além do que nós já sabíamos, algo mais.”

— Não pai, não me peça para adivinhar.

— Não. Desta vez, não. Vou em frente. Além das sandálias, havia um pano de linho dobrado, com aproximadamente trinta centímetros de altura e largura. E um rolo de pergaminho perfeitamente conservado. Escrito em aramaico, meu filho. Aramaico antigo. A partir daí, vieram duas vertentes de investigação. Aos físicos coube a datação das sandálias e do pano; aos linguistas, a tradução do pergaminho. Eu disse duas vertentes? Enganei-me. Os fotógrafos — e não os cientistas — foram os primeiros convocados. Sabe por quê? Porque aquele pano era um pequeno sudário. O lenço que se colocava entre a face do morto e o grande lençol mortuário. Esse pano, quando em negativo, reproduzia, exatamente, a mesma face que está estampada no sudário de Turim. Ambas as imagens coincidiam perfeitamente, ponto a ponto, e evidentemente o pequeno lenço reproduzia a imagem humana com maior nitidez. O teste de carbono 14, de sua feita, estabeleceu que o pano, as sandálias e o pergaminho eram coetâneos. E não é preciso dizer de quando eles datavam, não é mesmo? Ah, e o que o pergaminho dizia? Dizia simplesmente: “Eis o prometido retorno do Filho do Homem”. A câmara criogênica ainda está lá. E, até hoje, ninguém conseguiu devassar o compartimento maior.

Aí terminava a história do meu pai.

Mas, nesse dia, as coisas tomaram um rumo diferente.



— Filho, não há segredo que dure para sempre. Sabíamos que havia uma ranhura na parte lateral do compartimento maior. Uma fresta de um centímetro de comprimento por três milímetros de altura. Era evidente que tínhamos, ali, um sistema mecânico rudimentar. Algo como o mecanismo que aciona uma máquina de refrigerantes. Os engenheiros dedicaram décadas de estudos, encetaram várias tentativas, mas todo esse esforço foi em vão. Creio que ainda hoje tentam abrir o compartimento. Mas não conseguirão. Eles não têm as moedas.

Dizendo isso, meu pai se levantou. Foi ao quarto e retornou com um saquinho de veludo na mão e um livro na outra.

— A imagem tridimensional de ambos os sudários revela, quando ampliada, a impressão das moedas que foram colocadas nas pálpebras do Senhor, conforme o costume da época.

Meu pai abriu o livro. Um livro escrito em italiano e repleto de imagens alusivas ao Santo Sudário. Depois, retirou duas pequenas moedas do saquinho.

— Filho, peço que compare as moedas que tenho na mão com as imagens colhidas do sudário de Turim. Não há dúvida: são as mesmas que cobriram os olhos do Senhor. Trata-se do dilepton lituus, espécie de moeda cunhada por Pilatos entre 29 e 32 d.C. Quando estas moedas me chegaram pelo correio, sem que eu soubesse quem era o remetente, não entendi. Somente depois percebi que alguém depositou em meus ombros uma pesada cruz. A maior responsabilidade que um homem jamais teve em toda a história. O Fim está aqui, em minhas mãos.

Meu pai, com a palma da mão direita aberta, olhou para as moedas.

— Agora, já não posso decidir. Estou velho demais para isso. Eu sempre hesitei em tomar a decisão. Por dois mil anos, o disco voador, que recolheu o corpo do Senhor, após a ascensão, esteve soterrado numa montanha no Alaska. E ali permaneceu até o momento em que o gelo perene derreteu. E por que derreteu? Porque a Terra está superaquecida, como resultado da produção industrial. E o que significa isto? Significa que temos tecnologia suficiente tanto para criar armas atômicas quanto para decifrar códigos extremamente complexos. O retorno do Messias não tinha data certa. Dependeria do desenvolvimento tecnológico do ser humano, cujo preço todos nós sabemos. Filho, chegou o momento em que é possível fazer despertar o sono do Filho do Homem.

— E as moedas, pai, de onde vieram?

— De Ugo Lorenzo, autoridade em numismática e um dos maiores estudioso do sudário de Turim. Ele trabalhou conosco, estudando as fotografias e as análises que foram feitas no pano. Mas não sei como ele as recuperou.

Então meu pai abriu a minha mão e nelas depositou as moedas.

— A cruz está em seus ombros — disse-me, comovido. — Resolva se é hora de pôr a radiola de fichas de dois mil anos para funcionar.

A responsabilidade agora é minha.

Mas amanhã estará tudo resolvido: moedas também servem para fazer cara ou coroa.

 


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