O VENENO - Conto Clássico de Mistério - Theodore Hook
O
VENENO
Theodore
Hook
(1788
– 1841)
Antes
de ontem, ou, melhor falando, ontem, M. de Surville entrou em casa a uma hora
da manhã com a cabeça esquentada por uma discussão deveras singular que tivera
tido com seu amigo, M. de Mereil, discussão que havia terminado por uma aposta.
—
Georges — disse ele a seu criado logo que entrou no gabinete —, onde está minha
mulher?
—A senhora retirou-se para seu quarto à meia
noite.
—Muito
bem, pode ir deitar-se. Esta noite não preciso mais de você.... Ah! Traga-me o
meu copo d'água.
Georges
correu à sala de jantar e preparou, com o desvelo de um criado de boa casa, o
que lhe fora pedido.
Dissolvido
o açúcar, deitou no copo algumas gotas de água de flor de laranjeira e levou ao
seu amo a água assim aromatizada. Este bebeu-a e, com um gesto, despediu seu
criado.
Alguns
momentos, depois Georges voltou.
—
Senhor — disse —, aqui está uma carta que o porteiro trouxe agora mesmo.
—
Muito obrigado — respondeu Surville, escrevendo suas notas do dia em seu
livrinho de lembrança.
A
carta foi posta sobre a escrivaninha e Surville ficou só. Alguns momentos
depois, lançou os olhos para a carta, pegou-a, e, depois de lhe ter dado
diversas voltas com a mais perfeita indiferença, abriu-a e leu o que se segue:
“Senhor:
Se tem um pouco
de amor à vida, não beba nem coma em sua casa até amanhã de manhã. Mais tarde
lhe serão dadas todas as provas que o senhor exige. Mas, em nome do céu, siga o
conselho que lhe dá uma pessoa que teme por seus dias.”
—
Por meus dias! — exclamou Surville, assombrado. — Veneno em minha casa! No meio
de meus criados! Aos olhos de minha mulher! É impossível!
Ele
atirou com a carta com desprezo. De repente, lembrou se que acabara de beber água.
Era um costume que tinha desde a infância, coisa que fazia todas as noites.
Todavia, perguntou a si mesmo o que faria se houvesse recebido mais cedo aquele
aviso, se o porteiro o houvesse esperado e lhe tivesse entregado a carta quando
entrara, em vez de dá-la a Georges. Depois de alguns momentos de reflexão,
depois de uma luta entre sua consciência e a verdade, confessou que não teria
bebido a água. Não tinha inimigos, não obstava a fortuna de quem quer que
fosse.
—
Entretanto, quem pode — disse, apanhando a carta fatal — lisonjear-se de não
impedir alguma paixão, de não ocupar um lugar desejado por outro homem?
Lembrava-se
com certo desprazer da celeridade com que Georges lhe trouxera o copo d’água, e,
pondo alternativamente a língua em todos os pontos de seu paladar, procurava um
sabor perdido. Era-lhe suspeito o perfume da flor de laranja: teria por fim
esse luxo, que ele não havia pedido, ocultar algum gosto estranho? Tornava a
ler a carta, depois machucava-a nas mãos e, passeando por seu gabinete com
grandes passadas, a si mesmo dizia:
—
Sou um louco! Suspeitar de Georges! Que interesse tem ele na minha morte? Por
outro lado, este aviso...
Com
efeito, nenhum interesse tinha Georges em sua morte. Não era criado antigo,
apenas o servia fazia seis meses. Conhecia-o perfeitamente? Estava certo de sua
afeição, de sua dedicação? Não. Não seria possível que a esperança de uma forte
recompensa o fizesse cúmplice e executor de um crime?
Estas
terríveis probabilidades agitavam o pensamento de M. Surville. Sua imaginação
escandecia-se e inflamava-se. Sua cabeça se abrasava; o pulso estava irregular;
a aflição de que era vítima causava-lhe febre. A morte, que talvez se contivesse
em seu seio; as dores, que iam, sem dúvida, despedaçar-lhe o peito; as angústias;
a próxima agonia que o esperava, tudo lançava em seu espírito os gérmens das
mais odiosas suspeitas. Quem podia ser o instigador do crime? Sua mulher...
Seus cabelos se erriçavam de horror só com este pensamento. Todavia, nesse
momento supremo, em que já não tinha ilusões, em que a verdade lhe aparecia
descarnada, via-se obrigado a convir consigo mesmo que, se se tinha casado por
amor, Mme. de Surville havia-se casado por exigências sociais. Ela não tinha coisa
alguma quando se casaram; ele era rico, e seu amor tinha-se mostrado generoso e
até pródigo. Se ele morresse, a sua mulher herdaria toda sua fortuna e ficaria
livre! Era, sem dúvida, uma mulher mui bem nascida, uma alma muito elevada, e
nenhum motivo de cobiça poderia desvairá-la. Mas ela o amava? Ele não sabia
que, três anos atrás, quando desposara Julie, Alfred Dennecout desejava a mão
da prima? Esse Alfred tinha sido educado com sua mulher; ambos se amavam desde
a infância, e era verdade que suas famílias sempre projetaram sua união. A
pouca fortuna de Alfred fizera preterir este casamento por outro mais vantajoso.
Alfred, oficial de infantaria, estava de guarnição em Paris e via familiarmente
sua prima. Se essa antiga paixão não estivesse extinta no coração do oficial, se
Mme. de Surville a partilhasse, a que excessos não podia levá-los um amor
insensato? Uma mulher honrada e virtuosa até então, um oficial francês, descerem
ambos ao uso do veneno! Não era verdade, não era possível.
Surville,
desesperado com tais suspeitas, procurou dissipá-las e fazê-las desvanecer pelo
meio mais natural a essa hora da noite: foi para seu quarto e deitou-se. Não
teve sono: a cabeça não achava cômodo no travesseiro, em vão se punha em sua
posição habitual. Levanta-se, veste seu roupão e acende a vela. A ideia de sua
mulher culpada, de sua mulher adúltera e envenenadora, o perseguia a seu pesar.
—
O que fará ela agora? Que pensamentos a agitaram? Deve estar em vigília como eu.
O crime, da mesma forma que a agonia, desconhece o repouso.
Infeliz
— como Macbeth —, matou o sono. Decidiu-se a ir ao quarto de sua mulher. Aproximando-se
da chaminé para pegar o castiçal, lança os olhos para o espelho e percebe,
estremecendo, que tem pálido o rosto e descompostas as feições. Penetra no
quarto de sua mulher: as cortinas do leito estão abertas; Mme. de Surville
dormia tranquilamente. Seu lindo rosto estava sossegado, e somente animado por
esse calor brando que colora as feições durante o sono. Ela parecia sorrir ao
elevo de algum sonho gracioso. À vista desta tranquilidade inocente, deste
rosto, espelho de uma consciência pura, Surville indignou-se contra si mesmo,
envergonhou-se de suas suspeitas. No mesmo momento, Mme. de Surville agitou-se
em seu leito, seu rosto empalideceu, um riso sardônico e cruel contraiu-lhe a
boca, suas sobrancelhas cruzaram-se, e ela pronunciou a princípio algumas
palavras inarticuladas. Depois, Surville ouviu distintamente:
—Está
acabado... Sim, está acabado... Estou decidida, torno a dizer.
Depois
destas palavras, ela estendeu-se na cama e, sem acordar, voltou-se para o lado
da parede. Deveria M. de Surville acordá-la para pedir-lhe conta dessas
palavras entrecortadas? Pode-se, porventura, dizer a uma mulher sempre fiel, e
que ainda há pouco o encheu de caricias: “Olhe bem para mim, senhora, estou
envenenado; eis-aqui a sua obra”?
Surville,
apesar de sua perturbação e das dores surdas que ele julgava estar sentindo,
não se atreveu fazê-lo. Deixou o quarto de sua mulher para ir a uma sala
pequena, unida a seu quarto, onde dormia seu criado.
—
Georges, Georges! — disse, estendendo as mãos para a cama do criado.
Na
cama não havia pessoa alguma, e ainda estava feita: Georges não estava ali. Oh!
Então Surville julgou-se perdido.
—
O miserável — pensou ele — deu o golpe e fugiu.
Quando
a justiça suspeita de um crime, interroga as localidades, examina os móveis e
inspeciona todos os utensílios. Surville seguiu o mesmo processo. Correu à sala
de jantar. Em cima da mesa estava ainda o copo vazio em sua salva de prata.
Surville levou a mão à colherinha de prata dourada que tinha servido para
preparar a pérfida beberagem. Havia ainda algumas gotas de água no fundo do
copo, e um sedimento esbranquiçado tinha-se prendido às paredes internas do cristal.
Surville observou, com terror, que este sedimento era insolúvel na água, e que
seus granitos desiguais rangiam sob a pressão da colher. Este último fato era
concludente, tinha a evidência de uma demonstração matemática: Surville estava
envenenado e tinha em suas mãos a prova do crime.
Leva
cuidadosamente o copo para seu gabinete, deposita-o junto da carta anônima
recebida muito tarde e, porque seu criado fugiu, vai ele mesmo ao andar mais
elevado de sua casa, onde dormem seus criados, e acorda um.
—Levante
e venha, sem demora, a meu gabinete receber minhas ordens. Diga ao cocheiro que
apronte o cabriolé. Mova-se!
Em
um abrir e fechar de olhos, o criado estava pronto e o cocheiro, no meio do pátio,
empunhando as rédeas do cavalo.
—
Vá! — disse Surville ao criado. — Corra à casa do médico e diga-lhe que venha
imediatamente. O tempo é precioso!
—A
senhora está doente? — aventurou-se o criado a perguntar, ainda meio dormindo.
—Ah!
Não, não; sou eu! — exclamou. Vá, vá!
Eram
três horas da madrugada. Duas horas tinham-se passado, portanto, em cruel
agitação. O veneno iria fazer os seus efeitos. Em brevíssimo espaço de tempo — alguns
momentos, talvez — ele iria padecer horríveis tormentos, perder a vista, o
ouvido, a vontade. Iria desfalecer. Talvez morresse sem dor. Talvez o veneno, que
já circulava em seu sangue, quando chegasse às fontes da vida, o atirasse morto
sobre sua poltrona, sem que ele pudesse dizer uma palavra ou dar um grito, sem
que deixasse o menor vestígio do golpe que iria mata-lo. A ciência é hoje tão
perigosa quando reside em mãos hábeis e poderosas! Quis escrever; porém, que
indicações daria à justiça? Quem denunciaria? Sua mulher... Seu criado?... Quem
está para morrer é justo, teme caluniar um inocente, e ele não se atrevia a acusar
alguém. Teve a ideia de legar a seu amigo de Mareil tudo de que podia dispor.
Mas, quando quis escrever, seus dedos trêmulos não podiam sustentar a pena,
cujos bicos se escarrapachavam sobre o papel sem formar letra distinta alguma.
Ora passeava pelo gabinete, ora dizia a si mesmo que, andando, daria mais
atividade ao veneno, e atirava-se em sua poltrona e não se atrevia a fazer
movimento algum. Ouviu abrir-se a porta da cocheira: voltava o cabriolé.
—
Louvado seja Deus! — exclamou, pondo a mão sobre o peito ansioso.
Apareceu
o criado: vinha só. O médico não o acompanhara por ter ido assistir um parto na
outra extremidade de Paris, cinco minutos antes de o criado chegar à casa dele.
—
Estarei destinado a morrer sem socorro?! — exclamou ele, dolorosamente. — Vá e
traga o primeiro médico que encontrar. Preciso de um médico.... Os socorros
chegarão muito tarde.
O
criado correu espantado, e Surville pensou, então, nessa outra vida de que
estava tão próximo. O que ele responderia ao juiz que o esperava? Tinha sido
sempre muito honrado; porém, bastará a honradez, tal qual se entende no mundo,
para alcançar graça e perdão? Ele estava a mil léguas desses pensamentos
algumas horas antes; agora, eles o assaltavam. Seus joelhos dobraram-se
involuntariamente, sua cabeça curvou-se, suas mãos se juntarão para orar. A
este movimento, talvez instintivo, sucedeu a incredulidade secular. Ele
levantou-se e disse, como Sêneca:
—
Post mortem nihil est, ipsaque mors nihi”. Depois da morte nada há, e a
própria morte é nada.
Contudo,
este materialismo parecia-lhe mais verdadeiro na véspera do que naquele momento.
Contava as horas, via o ponteiro andar sobre o mostrador de esmalte.
—
Estarei frio e inanimado — pensou — e ainda durará o movimento que dei a essa máquina.
Minha boca estará muda, e o pêndulo dará as horas, indicará a hora de minha
morte, a hora em que sairei daqui para ir ao campo de repouso, e talvez a hora
em que meus amigos começarão a esquecer-se de mim.
Finalmente,
apareceu o dia. A claridade do pequeno castiçal lutava fraca contra a luz da
manhã, quando a porta se abriu e M. de Mareil, alegre, entrou no gabinete.
—
Ah, meu amigo — exclamou Surville, lançando-se no braço do amigo — estou
perdido !
—
Perdido, não. Mas você perdeu.
—
Perdi o quê?
—
A sua aposta.
—
Minha aposta?
—
Sim, dois mil francos: você não apostou, ontem comigo, que eu não poderia
alterar sua ventura, contanto que não eu tocasse nem em sua mulher, nem em seus
amigos, nem em sua fortuna?
—
Agora não se trata disso, meu amigo, estou envenenado... Tenho um inimigo que atentou
contra meus dias. Veja a destruição que a poção fatal me tem causado... Ah, se
eu lhe dissesse todas as minhas suspeitas!
—Não
dormiu?
—
Sou vítima das dores mais cruéis. Cheguei aos derradeiros limites da desgraça.
Breve morrerei. Estou envenenado!
—
Dê-me os dois mil francos que ganhei.
—
Uma carta...
—
Fui eu que a escrevi.
—
Você? Mas olhe; veja este copo.
Mareil
pegou o copo de cristal, mexeu com a colher o sedimento esbranquiçado que
Surville tinha observado: nenhum corpo insolúvel se achava entre o copo e o
metal: tudo estava dissolvido. Mareil, além disso, bebeu o resto do licor, e
fez assim desaparecer a prova do crime.
—
E Georges, como explica a sua fuga?
—
Mandei dizer a Georges que fosse à minha casa de pois de servi-lo. Esteve
bebendo toda noite com meu criado.
Neste
momento, entrou Mme. de Surville no gabinete de seu marido. Ela estava fresca e
tranquila, como uma flor que desabrocha de manhã.
—
Então, meu amigo — disse ela —, você esteve doente? Por que não mandou acordar-me?
Você me teria feito um obséquio, livrando-me de um pesadelo horrível. Sonhei,
meu amigo, que você estava no declive de um precipício, que caía, e que eu não
podia retê-lo. Eu o segurava pela casaca, mas a casaca escapava de minhas mãos...
Gritei: “Está acabado... está acabado...”. Parece que mudei de posição, e todos
esses sonhos ruins esvaneceram-se. A propósito — acrescentou ela —, recebi uma
carta do nosso primo Alfred Dennecourt, o qual partiu para a África sem se
despedir de nós. Este é um procedimento deveras censurável!
O
médico chegou esbaforido.
—
Quem é que está doente nesta casa?
—
Ninguém — disse logo M. de Surville.
—
Ainda bem!... Nesse caso, dê-me um almoço. Passei a noite assistindo um parto e
estou morrendo de fome.
—
Nada é mais fácil — respondeu Mareil. Você terá a excelente iguaria que o caçador de Surville lhe mandou
como primícias da caça, já que hoje é 4 de setembro.
—
É verdade — disse o doutor. — Mas é ainda muito cedo. Surville já está com fome?
—
Por isso respondo eu — disse ainda o desapiedado Mareil. —Surville trabalhou
toda noite em uma tragédia, cujo desfecho lhe falta.
—
E sempre lhe faltará — disse o doutor, ingenuamente.
—
Oh, sem dúvida! Acrescente a isso — continuou Mareil — que ele jantou muito mal
em minha casa, e que desde então só tomou... um copo d’água com açúcar.
Tradução de
autor desconhecido.
Fonte: “Museo
Universal”, edição de 16 de março de 1844.
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