UM CRIMINOSO SINGULAR - Conto Clássico Insólito - Autor desconhecido do séc. XIX



UM CRIMINOSO SINGULAR

Autor desconhecido do séc. XIX

 

A Inglaterra tem homens excêntricos e a França tem homens singulares. Cada um destes países contém um certo número de indivíduos sérios ou cômicos. Não se deve, porém, atribuir isto à influência do país. A originalidade existe no coração humano: se os homens quisessem ser o que a natureza os fez, suas inclinações e seus gostos seriam tão múltiplos quanto as feições de seus rostos. Mas o “é assim” e o “é moda” excedem as faculdades da alma. Todos se esforçam por se parecerem uns com os outros. É moda não se parecer consigo mesmo. Bem-aventurado aquele que encontra um rosto sereno, um coração franco e sincero, um homem que pense e aja por si próprio!

Conheço um homem puro, um daqueles que não deixam de ter o seu quinhão na asneira. Só se inspira por si próprio, e isto o torna admirável: prefiro um malvado original a um virtuoso plagiário. Mandrin[1] não foi imitador; porém, não julgue que o homem, de que falei, seja Mandrin ou um agente de polícia. É a doçura e virtude personalizadas. Afora uma mania que tem de roubar e assassinar, é probo e dotado de uma candura extrema.

Furta, mas não para enriquecer ou por perversidade. Não rouba para alcançar um lenço ou um relógio, mas somente para sentir uma forte comoção. Os homens o desprezam porque não o conhecem; eu estimo-o e amo-o porque o conheço: roubou-me todas as camisas.

A princípio, tomei-o por ladrão. Porém, quanto me enganei! Foi ele mesmo que me declarou as mais recônditas lesões de sua alma. Se eu tivesse tempo, faria dele personagem de um conto fantástico. Mas todos sabem que o gênero fantástico não é o meu forte. Além disso, não quero brilhar, porque minha irmã morreu de uma queda cavalo no rio das Amazonas. Tal é a notícia que me entristece e me impede de escrever no estilo funéreo, e não nos metamos em contos fúnebres: deixemos isso para o Sr. de Balzac.

Um dia, disse-me o meu amigo que não era a fome que o obrigava a cometer alguns delitos, senão apenas a necessidade que tinha de comoções fortes.

 Ofereci-lhe um copo com aguardente, mas ele não quis beber.

— Só bebo sangue — retorquiu, com um indizível sorriso. — Amo demais a minha mãe. É a única pessoa, por quem me sacrificaria: adoro-a como ao meu Deus. Não posso facilmente esquecer as carícias que ela me fazia quando eu era pequenino. Talvez você me considere um filho inumano se eu lhe disser que quero vê-la morta, pois é o contrário: sou um excelente filho.

— Mas para que a quer morta? — perguntei.

— A sede de fortes comoções! Não posso existir sem comoções. Você me faria o favor de me dar uma bofetada?

Recusei-me. Ele insistiu. Recusei-me novamente e ele me deu um murro no queixo. Creio de cólera, dei-lhe uma grandessíssima bofetada. Ele sorriu muito satisfeito.

— Sou ladrão — prosseguiu —, não escondo isto. Bem sei que cometi um crime. Eu furtei as suas camisas certo dia, quando estavam na lavanderia. Contudo, Deus me livre de ser um velhaco! Faço consistir a felicidade de ser chamado de ladrão; ir à polícia e passar meus dias na prisão. É um exaspero se a polícia não me apanha. Mas, diga-me: o que eu poderia fazer para ser condenado às galés?

Propus uma acusação de falsificação de letras de câmbio. Ele aceitou com mil vontades e, depois, continuou o seu discurso:

—Talvez você me considere um homem feroz. Não o sou. Não sou capaz de matar um frango. Fiz, durante algum tempo, a experiência num manequim, mas vi que o assassinato não está no meu gênero. Tenho um organismo muito delicado. Não acha horrível que me falte coragem para experimentar a maior das comoções?

— E qual seria ela?

— O cadafalso. Queria morrer enforcado. Você sabe onde mora o carrasco?

Ensinei-lhe a morada de um médico, que o enviou a um filósofo e este o prendeu como o autor da morte de sua filha de 4 anos de idade.

Fui vê-lo na cadeia. Ele esperava ser condenado à morte. Ao me ver, disse:

— Não cometi crime algum, mas, graças a Deus, fui acusado. Mas mão diga nada aos juízes, porque os bárbaros poderiam perdoar-me e, assim, me privariam da mais forte das comoções: a da morte!

 

Tradução de autor desconhecido.

Fonte: “O Annunciador” (RJ), edição de 23 de fevereiro de 1850.

 



[1] Louis Mandrin (1725 – 1755), contrabandista francês, conhecido como o “Robin Hood” da França.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A MÁSCARA DA MORTE ESCARLATE - Conto de Terror - Edgar Allan Poe

O RETRATO OVAL - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe

NO CAMPO DE OLIVEIRAS - Conto Trágico - Guy de Maupassant

O CORAÇÃO DELATOR. Conto clássico de terror. Edgar Allan Poe