ACAUÃ - Conto Clássico de Terror - Inglês de Sousa
ACAUÃ
Inglês
de Sousa
(1853
-1918)
O
capitão Jerônimo Ferreira, morador da antiga vila de São João Batista de Faro,
voltava de uma caçada a que fora para distrair-se do profundo pesar causado
pela morte da mulher, que o deixara subitamente só com uma filhinha de dois
anos de idade.
Perdida
a calma habitual de velho caçador, Jerônimo Ferreira transviou-se e só
conseguiu chegar às vizinhanças da vila quando já era noite fechada.
Felizmente,
a sua habitação era a primeira ao entrar na povoação pelo lado de cima, por
onde vinha caminhando, e por isso não o impressionaram muito o silêncio e a
solidão que a modo se tornavam mais profundos à medida que se aproximava da
vila. Ele já estava habituado à melancolia de Faro, talvez o mais triste e
abandonado dos povoados do vale do Amazonas, posto que se mire nas águas do
Nhamundá, o mais belo curso d'água de toda a região. Faro é sempre deserta. A
menos que não seja algum dia de festa, em que a gente das vizinhas fazendas
venha ao povoado, quase não se encontra viva alma nas ruas. Mas se isso
acontece à luz do sol, às horas de trabalho e de passeio, à noite a solidão
aumenta. As ruas, quando não sai a lua, são de uma escuridão pavorosa. Desde as
sete horas da tarde, só se ouve na povoação o pio agoureiro do murucututu ou o
lúgubre uivar de algum cão vagabundo, apostando queixumes com as águas múrmuras
do rio.
Fecham-se
todas as portas. Recolhem-se todos, com um terror vago e incerto que procuram
esconjurar, invocando:
—
Jesus, Maria, José!
Vinha,
pois, caminhando o capitão Jerônimo a solitária estrada, pensando no bom
agasalho da sua fresca rede de algodão trançado e lastimando-se de não chegar a
tempo de encontrar o sorriso encantador da filha, que já estaria dormindo.
Da caçada nada trazia, fora um dia infeliz, nada pudera encontrar, nem ave nem
bicho, e ainda em cima perdera-se e chegava tarde, faminto e cansado. Também,
quem lhe mandara sair à caça em sexta-feira? Sim era uma sexta-feira, e, quando
depois de uma noite de insônia se resolvera a tomar a espingarda e a partir
para a caça, não se lembrara que estava num dia por todos conhecido como
aziago, e especialmente temido em Faro, sobre que pesa o fado de terríveis
malefícios.
Com
esses pensamentos, o capitão começou a achar o caminho muito comprido, por lhe
parecer que já havia muito passara o marco da jurisdição da vila. Levantou os
olhos para o céu a ver se se orientava pelas estrelas sobre o tempo decorrido.
Mas não viu estrelas. Tendo andado muito tempo por baixo de um arvoredo, não
notara que o tempo se transtornava e achou-se de repente numa dessas terríveis
noites do Amazonas, em que o céu parece ameaçar a terra com todo o furor da sua
cólera divina.
Súbito,
o clarão vivo de um relâmpago, rasgando o céu, mostrou ao caçador que
se achava a pequena distância da vila, cujas casas, caiadas de branco, lhe
apareceram numa visão efêmera. Mas pareceu-lhe que errara de novo o caminho,
pois não vira a sua casinha abençoada, que devia ser a primeira a avistar. Com
poucos passos mais, achou-se numa rua, mas não era a sua. Parou e pôs o ouvido
à escuta, abrindo também os olhos para não perder a orientação de um novo relâmpago.
Nenhuma
voz humana se fazia ouvir em toda a vila; nenhuma luz se via; nada que
indicasse a existência de um ser vivente em toda a redondeza. Faro parecia
morta.
Trovões
furibundos começaram a atroar os ares. Relâmpagos amiudavam-se, inundando de
luz rápida e viva as matas e os grupos de habitações, que logo depois ficavam
mais sombrios.
Raios
caíram com fragor enorme, prostrando cedros grandes, velhos de cem anos. O
capitão Jerônimo não podia mais dar um passo, nem já sabia onde estava. Mas
tudo isso não era nada. Do fundo do rio, das profundezas da lagoa formada pelo
Nhamundá, levantava-se um ruído que foi crescendo, crescendo e se tomou
um clamor horrível, insano, uma voz sem nome que dominava todos os ruídos
da tempestade. Era um clamor só comparável ao brado imenso que hão de soltar os
condenados no dia do Juízo Final.
Os cabelos do capitão
Ferreira puseram-se de pé e duros como estacas.
Ele bem sabia o que
aquilo era. Aquela voz era a voz da cobra grande, da colossal sucuriju[1]
que reside no fundo dos rios e dos lagos. Eram os lamentos do monstro em
laborioso parto.
O capitão levou a mão à
testa para benzer-se, mas os dedos trêmulos de medo não conseguiram fazer o
sinal da cruz. Invocando o santo do seu nome, Jerônimo Ferreira deitou a correr
na direção em que supunha dever estar a sua desejada casa. Mas a voz, a
terrível voz aumentava de volume. Cresceu mais, cresceu tanto afinal, que os
amidos do capitão zumbiram, tremeram-lhe as pernas e caiu no limiar de uma
porta.
Com a queda, espantou
um grande pássaro escuro que ali parecia pousado, e que voou cantando:
—Acauã, acauã[2]!
Muito
tempo esteve o capitão caído sem sentidos. Quando tornou a si, a noite estava
ainda escura, mas a tempestade cessara. Um silêncio tumular reinava; Jerônimo,
procurando orientar-se, olhou para a lagoa e viu que a superfície das águas
tinha um brilho estranho como se a tivessem untado de fósforo. Deixou errar o
olhar sobre a toalha do rio, e um objeto estranho, afetando a forma de uma
canoa, chamou-lhe a atenção. O objeto vinha impelido por uma força desconhecida
em direção à praia para o lado em que se achava Jerônimo. Este, tomado de uma
curiosidade invencível, adiantou-se, meteu os pés na água e puxou para si o
estranho objeto. Era com efeito uma pequena canoa, e no fundo dela estava uma
criança que parecia dormir. O capitão tomou-a nos braços. Nesse momento, rompeu
o sol por entre os animais de uma ilha vizinha, cantaram os galos da vila,
ladraram os cães, correu rápido o rio perdendo o brilho desusado. Abriram-se
algumas portas. À luz da manhã, o capitão Jerônimo Ferreira reconheceu que
caíra desmaiado justamente no limiar da sua casa.
No
dia seguinte, toda a vila de Faro dizia que o capitão adotara uma linda
criança, achada à beira do rio, e que se dispunha a criá-la, como própria,
conjuntamente com a sua legítima Aninha.
Tratada
efetivamente como filha da casa, cresceu a estranha criança, que foi batizada
com o nome de Vitória.
Educada
da mesma forma que Aninha, participava da mesa, dos carinhos e afagos do capitão,
esquecido do modo por que a recebera.
Eram
ambas moças bonitas aos 14 anos, mas tinham tipo diferente.
Ana
fora uma criança robusta e sã, era agora franzina e pálida. Os anelados cabelos
castanhos caíam-lhe sobre as alvas e magras espáduas. Os olhos tinham uma
languidez doentia. A boca andava sempre contraída, numa constante vontade de
chorar. Raras rugas divisavam-se-lhe nos cantos da boca e na fronte baixa,
algum tanto cavada. Sem que nunca a tivessem visto verter uma lágrima, Aninha
tinha um ar tristonho, que a todos impressionava, e se ia tomando cada dia mais
visível.
Na
vila dizia toda a gente:
—
Como está magra e abatida a Aninha Ferreira, que prometia ser robusta e alegre.
Vitória
era alta e magra, de compleição forte, com músculos de aço. A tez era morena,
quase escura, as sobrancelhas negras e arqueadas; o queixo fino e pontudo, as
narinas dilatadas, os olhos negros, rasgados, de um brilho estranho. Apesar da
incontestável formosura, tinha alguma coisa de masculino nas feições e nos
modos. A boca, ornada de magníficos dentes, tinha um sorriso de gelo. Fitava
com arrogância os homens até obrigá-los a baixar os olhos.
As
duas companheiras afetavam a maior intimidade e ternura recíproca, mas o
observador atento notaria que Aninha evitava a companhia da outra ao passo que
esta a não deixava. A filha do Jerônimo era meiga para com a companheira, mas
havia nessa meiguice um certo acanhamento, uma espécie de sofrimento, uma
repulsão, alguma coisa como um terror vago, quando a outra cravava-lhe nos olhos
dúbios e amortecidos os seus grandes olhos negros.
Nas
relações de todos os dias, a voz da filha da casa era mal segura e trêmula; a
de Vitória, áspera e dura. Aninha, ao pé de Vitória, parecia uma escrava junto
da senhora.
Tudo,
porém, correu sem novidade, até ao dia em que completaram 15 anos, pois se
dizia que eram da mesma idade. Desse dia em diante, Jerônimo Ferreira começou a
notar que a sua filha adotiva ausentava-se da casa frequentemente, em horas
impróprias e suspeitas, sem nunca querer dizer por onde andava. Ao mesmo tempo
que isso sucedia, Aninha ficava mais fraca e abatida. Não falava, não sorria,
dois círculos arroxeados salientavam-lhe a morbidez dos grandes olhos pardos.
Uma espécie de cansaço geral dos órgãos parecia que lhe ia tirando pouco a
pouco a energia da vida.
Quando
o pai chegava-se a ela e lhe perguntava carinhosamente:
—
Que tens, Aninha?
A
menina, olhando assustada para os cantos, respondia em voz cortada de soluços:
—
Nada, papai.
A
outra, quando Jerônimo a repreendia pelas inexplicáveis ausências, dizia com
altivez e pronunciado desdém:
— E que tem vosmecê com
isso?
Em
julho desse mesmo ano, o filho de um fazendeiro do Salé, que viera passar o Saõ
João em Faro, enamorou-se da filha de Jerônimo e pediu-a em casamento. O rapaz
era bem-apessoado, tinha alguma coisa de seu e gozava de reputação de sério.
Pai e filha anuíram gostosamente ao pedido e trataram dos preparativos do
noivado. Um vago sorriso iluminava as feições delicadas de Aninha. Mas um dia
em que o capitão Jerônimo fumava tranquilamente o seu cigarro de tauari à porta
da rua, olhando para as águas serenas do Nhamundá, a Aninha veio se aproximando
dele a passos trôpegos, hesitante e trêmula, e, como se cedesse a uma ordem
irresistível, disse, balbuciando, que não queria mais casar.
—
Por quê? — foi a palavra que veio naturalmente aos lábios do pai, tomado de
surpresa.
Por
nada, porque não queria. E, juntando as mãos, a pobre menina pediu com tal
expressão de sentimento, que o pai enleado, confuso, dolorosamente agitado por
um pressentimento negro, aquiesceu, vivamente contrariado.
—
Pois não falemos mais nisso.
Em
Faro, não se falou em outra coisa durante muito tempo, senão na inconstância da
Aninha Ferreira. Somente Vitória nada dizia. O fazendeiro do Salé voltou para
as suas terras, prometendo vingar-se da desfeita que lhe haviam feito.
E
a desconhecida moléstia da Aninha se agravava a ponto de impressionar
seriamente o capitão Jerônimo e toda a gente da vila.
“Aquilo
é paixão recalcada”, diziam alguns. Mas a opinião mais aceita era que a filha
do Ferreira estava enfeitiçada.
No
ano seguinte, o coletor apresentou-se pretendente à filha do abastado Jerônimo
Ferreira.
—
Olhe, seu Ribeirinho — disse-lhe o capitão —, é se ela muito bem quiser,
porque não a quero obrigar. Mas eu já lhe dou uma resposta nesta meia
hora.
Foi
ter com a filha e achou-a nas melhores disposições para o casamento. Mandou
chamar o coletor, que se retirara discretamente, e disse-lhe muito contente:
—
Toque lá, seu Ribeirinho, é negócio arranjado.
Mas,
daí alguns dias, Aninha foi dizer ao pai que não queria casar com o Ribeirinho.
O
pai deu um pulo da rede em que se deitara havia minutos para dormir a sesta.
—
Temos tolice?
E,
como a moça dissesse que nada era, nada tinha, mas não queria casar, terminou
em voz de quem manda:
—
Pois agora há de casar, que o quero eu.
Aninha
foi para o seu quarto e lá ficou encerrada até ao dia do casamento, sem que nem
pedidos nem ameaças a obrigassem a sair.
Entretanto,
a agitação de Vitória era extrema.
Entrava
a todo o momento no quarto da companheira e saía logo depois com as feições
contraídas pela ira.
Ausentava-se
da casa durante muitas horas, metia-se pelos matos, dando gargalhadas que
assustavam os passarinhos. Já não dirigia a palavra a seu protetor nem a pessoa
alguma da casa.
Chegou,
porém, o dia da celebração do casamento. Os noivos, acompanhados pelo capitão,
pelos padrinhos e por quase toda a população da vila, dirigiram-se para a
matriz. Notava-se com espanto a ausência da irmã adotiva da noiva. Desaparecera,
e, por maiores que fossem os esforços tentados para a encontrar, não lhe
puderam descobrir o paradeiro. Toda a gente indagava, surpresa:
—
Onde estará Vitória?
—
Como não vem assistir ao casamento da Aninha?
O
capitão franzia o sobrolho, mas a filha parecia aliviada e contente. Afinal
como ia ficando tarde, o cortejo penetrou na matriz, e deu-se começo a
cerimônia.
Mas
eis que na ocasião em que o vigário lhe perguntava se casava por seu gosto,
a noiva põe-se a tremer como varas verdes, com o olhar fixo na porta
lateral da sacristia.
O
pai, ansioso, acompanhou a direção daquele olhar e ficou com o coração do
tamanho de um grão de milho.
De
pé, à porta da sacristia, hirta como uma defunta, com uma cabeleira feita de
cobras, com as narinas dilatadas e a tez verde-negra, Vitória, a sua filha
adotiva, fixava em Aninha um olhar horrível, olhar de demônio, olhar frio que
parecia querer pregá-la imóvel no chão. A boca entreaberta mostrava a língua
fina, bipartida como língua de serpente. Um leve fumo azulado saía-lhe da boca,
e ia subindo até ao teto da igreja. Era um espetáculo sem nome!
Aninha
soltou um grito de agonia e caiu com estrondo sobre os degraus do altar. Uma
confusão fez-se entre os assistentes. Todos queriam acudir-lhe, mas não sabiam
o que fazer. Só o capitão Jerônimo, em cuja memória aparecia de súbito a
lembrança da noite em que encontrara a estranha criança, não podia despegar os
olhos da pessoa de Vitória, até que esta, dando um horrível brado,
desapareceu, sem se saber como.
Voltou-se
então para a filha e uma comoção profunda abalou-lhe o coração. A pobre noiva,
toda vestida de branco, deitada sobre os degraus do altar-mor, estava hirta e
pálida. Dois grandes fios de lágrimas, como contas de um colar desfeito,
corriam-lhe pela face. E ela nunca chorara, nunca desde que nascera se lhe vira
uma lágrima nos olhos!
—
Lágrimas! — exclamou o capitão, ajoelhando ao pé da filha.
—
Lágrimas! — clamou a multidão tomada de
espanto.
Então
convulsões terríveis se apoderaram do corpo de Aninha. Retorcia-se como se fora
de borracha. O seio agitava-se dolorosamente. Os dentes rangiam em fúria.
Arrancava com as mãos o lindo cabelo. Os pés batiam no soalho. Os olhos
reviravam-se nas órbitas, escondendo a pupila. Toda ela se maltratava, rolando
como uma frenética, uivando dolorosamente.
Todos
os que assistiam a esta cena estavam comovidos. O pai, debruçado sobre o
corpo da filha, chorava como uma criança.
De
repente, a moça pareceu sossegar um pouco, mas não foi senão o princípio de uma
nova crise.
Inteiriçou-se.
Ficou imóvel. Encolheu depois os braços, dobrou-os a modo de asas de pássaro,
bateu-o por vezes nas ilhargas, e, entreabrindo a boca, deixou sair um longo
grito que nada tinha de humano, um grito que ecoou lugubremente pela igreja:
—
Acauã!
—
Jesus! — bradaram todos caindo de joelhos.
E
a moça, cerrando os olhos como em êxtase, com o corpo imóvel, à exceção dos
braços, continuou aquele canto lúgubre:
—
Acauã! Acauã!
Por
cima do telhado, uma voz respondeu à de Aninha:
—
Acauã! Acauã!
Um
silêncio tumular reinou entre os assistentes. Todos compreendiam a horrível
desgraça. Era o Acauã!
[1] Sucuri,
serpente constritora.
[2] O acauã, na
mitologia amazônica, é uma ave de mau agouro e o seu canto anuncia
adversidades. É uma ave de rapina e ataca, de preferência, cobras.
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