O ASSASSINO - Conto Clássico de Terror - Hendrik Conscience



O ASSASSINO

Hendrik Conscience

(1812 – 1883)

 

Perto da aldeia de Overgoor está situada uma fazenda, que fora em certo tempo ocupada pelo fazendeiro Dries van den Hout, homem trabalhador e econômico que, tendo começado a sua vida com pouca coisa, chegara a ter cavalariças, estábulos e uma numerosa criação.

Além disso, o fazendeiro Dries gozava de muita simpatia e era considerado uma das melhores pessoas do lugar.

Na sua fazenda havia um empregado muito negligente, que gostava mais de dormir do que de trabalhar e tanto assim que o seu maior prazer era estar continuamente a bocejar e a espreguiçar-se.

No verão, então, a vida do pobre rapaz era intolerável. Sus, como se chamava ele, nunca se levantava à hora da chamada para o serviço pela madrugada.

Às 3 horas da manhã, quando o relógio da fazenda enchia toda a casa do tilintar odioso do seu despertador, Sus dormia. E, se estava acordado, não se levantava. Fingia não ter ouvido o sinal. Esperava que o fazendeiro o viesse arrancar do leito com palavras injuriosas e um valente par de socos que, bem depressa, lhe tirava o gosto de bocejar e de espreguiçar-se.

Quando Sus trabalhava no campo, resmungava todo o dia, maldizendo quantos sinos e campainhas havia — instrumentos que só foram feitos para o tormento do trabalhador.

Para ele, era certo que os relógios — sobretudo os despertadores — não foram inventados por nenhum moço de fazenda; isso, sem dúvida, devia ser invenção de algum fazendeiro.

Certo domingo, em que Sus ficara só em casa, executou um plano sobre o qual vinha pensando há muito tempo. Subiu a uma cadeira, à altura do relógio e, com uma pinça, quebrou três ou quatro dentes de uma roda. Agora, o relógio não andaria mais. Ele poderia dormir, tranquilamente, até que o fazendeiro despertasse por si mesmo.

Quando o fazendeiro chegou e viu o relógio parado, experimentou fazê-lo andar. Contudo, não o conseguindo, decidiu mandá-lo à aldeia, onde devia ser reparado. Sus pensou que, enquanto o relógio demorasse no conserto, ele teria pelo menos quinze dias para dormir sossegadamente.

O moço preguiçoso não contou, porém, com o galo da fazenda — um galo como poucos: o seu canto era longo e vibrante como um sino, tinha as patas e os esporões de um verdadeiro galo de briga, e não consentia que um quarto de légua ao redor outro galo cantasse mais alto.

Ele havia batido e enxotado da fazenda todos os galos da vizinhança, que tremiam ouvindo o seu canto retumbante.

Pois bem: na falta de relógio, o fazendeiro resolvera guiar-se pelo seu fiel animal. Sus, naquela noite, deitou-se certo de que não seria incomodado; mas, apenas os primeiros alvores da manhã surgiram no Oriente, o galo soltou o seu canto ruidoso. Eram duas horas.

Um grito ameaçador despertara Sus do seu sono.

— Ah! Sus, preguiçoso, o galo já cantou!

Sus sentiu o fazendeiro aproximar-se do seu leito para lhe aplicar os dois socos do costume, e saltou da cama atordoado.

Todo aquele dia Sus proferira pragas contra o pobre animal, desejando mesmo que um grão de milho se lhe atravessasse na garganta e o sufocasse.

Em todo caso, naqueles três dias que se seguiram, Sus levantou-se cedo. Ficara, porém, alimentando um grande ódio ao inocente animal, e de boa vontade já lhe teria apertado o pescoço, se não fosse o receio de ser surpreendido.

Na tarde do quinto dia, Sus recolheu-se ao leito logo depois da ceia. Para o seu pesar, não conseguira dormir aquela noite. Para causar dano a seu patrão, o mau rapaz comera em demasia.

Rolando no leito, Sus fazia penosos esforços para adormecer, e sofria pensando que, dormisse ou não dormisse, era preciso levantar-se às 2 horas. O sangue fervia-lhe nas veias. Subitamente, ocorreu-lhe a ideia de se vingar daquele que lhe causava tão grandes desgostos. Levantou-se, empalmou resolutamente uma faca afiada, e desceu, com precaução, ao quintal.

A noite estava profundamente escura; o inferno parecia favorecer seu sanguinário plano.

 Sus pôs o ouvido um instante à porta do fundo para se certificar de que o fazendeiro dormia, passou ainda uma veza lâmina da faca na palma da mão, como para afiá-la, e dirigiu-se ao galinheiro.

Um horrível sorriso lhe contraía a máscara. O celerado antegozava o crime que o devia vingar.

Todavia, foi tremendo que ele entrou no galinheiro, esgueirando-se por uma abertura que ele conhecia.

 O galo estava no seu poleiro, a cabeça entre as asas.

O pobre animal não suspeitava do perigo que o ameaçava; dormia tranquilamente, sonhando, talvez, com a franguinha que ele vira na véspera no terreno da fazenda vizinha.

Sus sabia bem o lugar onde o galo se empoleirava. Podia, portanto, no meio das trevas, agarrá-lo sem hesitação. Contudo, ficou algum tempo a refletir como havia de segurá-lo e o matar sem que ele pudesse soltar um grito.

De repente, ouviu uma voz e empalideceu de terror. Fora um rouxinol que cantara numa arvore vizinha.

Sus praguejou uma sangrenta ameaça contra o amoroso cantor, que assim perturbava o repouso da noite, e deu um passo à frente para consumar a sua vingança.

Vibrando de ódio e de inquietação, aproximou-se cautelosamente do fundo do galinheiro, agarrou com a mão esquerda o pescoço do galo, a ponto de estrangulá-lo, e, com a direita, atravessou-lhe o corpo com a faca. Nesse instante, uma voz formidável feriu os ouvidos do celerado e o sangue lhe gelou nas veias. Era o sino da aldeia que tocava à meia noite. Aquele som reboava lugubremente.

O criminoso, tomado de inexprimível agitação, arrancou algumas penas do corpo da vítima, espalhou-as ao redor e saiu correndo do galinheiro, levando o cadáver. Parou no fundo do jardim e respirou com esforço, como um homem oprimido pelo medo. Em seguida, escondeu o corpo do galo numa moita e foi lavar, no rio, o sangue que lhe sujava as mãos.

No dia seguinte, o fazendeiro devia pensar que o galo fora comido por uma raposa. Sus voltou à casa, possuído de terror e presa de mortal emoção; atirou-se ao leito, abatido pela fadiga e pelo remorso.

A sua punição, porém, não tardou. A voz da consciência não lhe permitia conciliar o sono. Quando ia adormecendo, cheio de cansaço, uma crise nervosa lhe sacudia o corpo e o despertava em sobressalto.

Por fim, um sono pesado, um doloroso entorpecimento, pior do que a febre, se apoderou dele.

Naquela manhã, eram já quatro horas e um silencio de morte reinava na fazenda. O fazendeiro foi o primeiro a despertar e se admirou da claridade que enchia o seu aposento.

Levantou-se apressadamente, correu ao galinheiro e lá encontrou o chão coberto das penas do seu fiel animal.

Sus fora arrancado do leito e acusado pelo desaparecimento do galo. Diante da acusação, ele empalideceu, pôs-se a tremer, mas negou obstinadamente o fato.

Contudo, o fazendeiro resolveu despedi-lo e entregá-lo à Justiça.

Durante o dia, enquanto não chegava o guarda campestre ou os soldados que o deviam conduzir à prisão, Sus fora tão barbaramente espancado que desfalecera.

À noite, como não houvessem chegado os soldados, o fazendeiro consentiu que Sus dormisse na fazenda.

O infeliz rapaz deitara-se vestido.

Após uma longa insônia e um constante remordimento da sua consciência, caíra em mortal agitação.

Parecera-lhe ouvir ao seu lado o galo cantar com uma voz tão retumbante como se fosse a voz de vinte galos juntos.

Sus pulou da cama precipitadamente, julgando já ser muito tarde; mas ainda era noite.

Profundamente perturbado, ele voltou ao leito e adormeceu de novo...

Mas, apenas fechou os olhos, pareceu-lhe ouvir ainda a voz do galo que, em tristes e lamentáveis regougos, deplorava a sua desgraça.

Quando Sus abriu os olhos, os cabelos se eriçaram e um suor frio correu-lhe por todo o corpo. Recuou espantado, as mãos estendidas sobre o leito.

Diante dele, no meio de uma grande fogueira de altas labaredas, se achava o inocente animal assassinado, com o bico aberto e os olhos faiscantes. A faca estava lá, atravessando-lhe o peito, e da ferida jorrava muito sangue, que lhe salpicava a face como uma chuva vingativa. Ele sentia que cada gota de sangue que caía lhe atravessava as roupas e queimava-lhe as carnes.



Mais morto do que vivo, olhava fixamente a sua vítima e via que o fantasma abria desmesuradamente o bico e se aproximava dele para lhe rasgar o peito.

Então, atacado de inexprimível ansiedade e de um pavor imenso, deu um grito pungente e fugiu do quarto e da fazenda, internando-se no bosque, antes que o fazendeiro tivesse tido tempo de se informar do que se passara.

Sus esteve fora durante oito dias. Quando, no fim desse tempo, o guarda campestre o encontrou e o levou a fazenda, verificou-se que o desgraçado estava louco.

 

Tradução de autor desconhecido.

Fonte: “A Leitura para Todos”, edição de setembro de 1912

 


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A MÃO DO MACACO - Conto Clássico de Terror - W. W. Jacobs

O CORAÇÃO DELATOR. Conto clássico de terror. Edgar Allan Poe

O RETRATO OVAL - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe

A MÃO MORENA - Conto Clássico de Terror - Arthur Conan Doyle