O DEFUNTO ALEGRE - Conto Clássico Fúnebre e Humorístico - Lúcio de Mendonça
O
DEFUNTO ALEGRE
Lúcio
de Mendonça
(1854
– 1909)
Contava-nos,
outro dia, em uma reunião familiar, o Dr. F. S., o mais letrado e o mais fecundo
conversador de nossa classe médica:
—
Em minha última viagem de propaganda republicana, pela então província de
Minas, encontrei na estrada, a duas léguas da pequena povoação de S., uma cruz
enorme, tendo por supedâneo um montão de pedras e com os braços carregados de
flores silvestres.
—
Algum assassinato? — perguntei ao companheiro de viagem.
—
Não; aqui morreu de congestão cerebral fulminante o compadre Lucas, um
companheiro, meu amigo, que, ainda depois de morto, assistiu ao casamento de
minha filha e afilhada dele.
—Ainda
depois de morto ? — interroguei surpreso; então, como alma do outro mundo, como
assombração ?
—
Em carne e osso, como nós que aqui estamos.
Passei
a não entender; mas o homem contou-me a história toda, que não deixa de ser
interessante, como um traço de costumes.
—
Vinham por aqui em ruidosa e alegre cavalgada os noivos, os pais, os padrinhos,
as famílias deles, os amigos, um magote de quase cem pessoas; na frente corriam
a pó uns moleques atirando foguetes; atrás vinha a música da nossa fazenda,
tocando peças festivas.
Mas,
de toda a comitiva o mais animado e folgazão era o pobre do compadre Lucas, que
vinha saracoteando a cavalo por perto da afilhada, a gracejar com ela e com o
noivo; eis senão quando, ao chegarmos ao ponto em que viu a cruz, o compadre
Lucas, no meio de uma cachinada interminável como eram as dele, caiu do cavalo
abaixo, a fio comprido, com as faces roxas.
Acudiu-se
logo, mas inutilmente: estava moto!
Cheguei a pensar em transferir o casamento,
mas as senhoras opuseram-se. Então, como havia de ser? Pelo menos convinha que
voltasse alguém para a fazenda mais próxima que a povoação, para guardar o
defunto até o outro dia, em que tínhamos de regressar, pois a festa do casório
era no arraial.
Tratava-se
de ver quem voltaria, e não era fácil achar, pois ninguém de boa mente se desligaria
da festa, quando surgiu uma ideia, recebida pela adesão geral:
— O Lucas fazia tanto gosto neste casamento que deve assistir a ele, morto mesmo!
— É verdade! Sem dúvida! Isso sim!
Então,
em vez de carregar para a fazenda, foi necessário transportá-lo para o arraial;
faltava, como eu disse duas léguas bem puxadas; que se fez? Passou-se um de nós
para a garupa do animal em que vinha Lucas, pôs-se o corpo deste escachado no
selim, seguro por debaixo dos braços, e aí veio o defunto a sacudir a cabeça em
gestos afirmativos, como se estivesse muito contente a aprovar a nossa
resolução.
No
arraial, vestiu-se-lhe a roupa preta, que trazia numa lata, para cerimônia, e,
sustentado por duas pessoas, lá foi também o defunto para a igreja assistir ao
casamento.
Houve a ideia de que continuasse a ser o
padrinho, mas o padre achou que não podia ser por causa da assinatura livro de
assentamento, por mais que disséssemos que o compadre Lucas bem podia assinar,
pegando-se-lhe na mão.
Ao
casório tinha de seguir-se o baile até a madrugada, como é de estilo em nossa
terra. Minha mulher teve escrúpulos: pois como já havia de dançar no dia da
morte do compadre Lucas?
—
Que tem lá isto? — opuseram os rapazes —Desde que o Sr. Lucas esteja
presente...
—
Sem dúvida, ficará numa alcova aberta para a sala do baile, sentado em uma
cadeira donde veja tudo.
—
E nos intervalos da dança bem se lhe pode rezar.
Assim
foi, nem mais, nem me nos. Numa cadeira de braços muito cômoda sentou-se o
corpo do compadre Lucas, amarrado por toalhas, entre duas velas grandes de cera,
e na parede do fundo pendurou-se um crucifixo, também ladeado de luzes.
Dançou-se
toda a noite, com animação; entre uma e outra dança vinham os pares, com o
noivo à frente, ajoelhar junto à cadeira do compadre Lucas e orava-se
fervorosamente pelo descanso de sua boa alma.
Só
se levantavam quando música dava sinal para outra valsa ou quadrilha.
—
Eis aí — observou um de nós do auditório do Dr. F. S —, eis aí o que é, literalmente
enredilhar o sagrado com o profano.
—
Mas o que se deve acrescentar — concluiu o Dr. F. S. — que tudo aquilo se fazia
sem nenhum prejuízo do sentimento religioso, com verdadeira unção e recolhimento,
como nos banquetes fúnebres dos selvagens.
Fontes: “Diário de
Natal”, edição de 13 de julho de 1907; Jornal do Recife, 1º de janeiro de 1912.
Imagem: Sara Affonso.
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