O ESTIGMA - Conto Clássico de Terror - Monteiro Lobato
O
ESTIGMA
Monteiro
Lobato
Fui
um dia a Itaoca levado pelas simples indicações do sujeito que me alugou a
cavalgadura.
—Não tem errada, é ir andando. Em caso de
dúvida, pegue a trilha dos carros que vai certo.
Assim
fiz e lá cheguei sem novidade.
No
dia da volta, porém, choveu à noite como só chove por aqueles socavões, e na
primeira encruzilhada parei desnorteado. Como o enxurro houvesse diluído todos
os sulcos da carraria, ali fiquei alguns minutos feito o asno de Buridan, à
espera dalgum passante que me abrisse os olhos. Não apareceu viva alma, e minha
impaciência empurrou-me ao acaso por uma das pernas do V embaraçador. Caminhei
cerca de hora na dúvida, até que a vista duma fazenda desconhecida me deu a
certeza do transvio.
Resolvi
portar. Abeiro-me do portão e grito o “ó de casa”.
Abre-mo
um negro velho, ocupado em abanar feijão no terreiro.
—O patrãozinho é lá em cima, na casa grande.
Dirijo-me
para lá, depois de entregue o cavalo, e subo a escadaria de pedra fronteiriça
ao casarão senhorial.
Um
grupo de crianças brincava por ali, em torno duma fogueirinha de cavacos
fumarentos.
— Fumaça para lá, santinha para cá!
Ao
avistarem-me, calaram-se e fugiram, com exceção da mais taluda, que permaneceu
no lugar, esfregando os olhos avermelhados e lacrimosos do fumo.
— Papai está?
Estava
e ia chamá-lo, respondeu, esgueirando-se pela casa adentro.
As
outras, com o dedinho na boca, vi-as a me espiarem da porta, à qual logo
assomou esbelta menina aí entre catorze e dezesseis anos, de avental azul e
corada como quem esteve a lidar em forno.
— Faça o favor de entrar! — disse-me com linda
voz, sorridente, de passo que seus olhos vivos todo me examinavam de alto a
baixo, num relance. —Sente-se e espere um bocadinho.
—A menina é filha do…
—Não, senhor. Prima. Mas moro aqui desde que
morreram meus pais.
—Tão nova e já órfã!…
— De pai e mãe. Tinha seis anos quando os
perdi na febre amarela de Campinas. O primo trouxe-me de lá e…
Aqui
rangeu a porta e enquadrou-se nela o dono da casa. Reconhecemo-nos
incontinenti, com igual espanto.
— Bruno! — berrou ele. — Que milagre!
— E tu, Fausto, onde te vim desentocar, eu que
esperava ver surgir um matutão desconfiado!
Abraços,
explicações, perguntas atropeladas. Fausto não cessava de admirar a coincidência.
— Há quantos anos não nos vemos? Dez, no
mínimo…
— Desde a opa da colação de grau. Como passa o
tempo!… Pois, meu caro, prendo-te por cá. Já não te vais daqui sem conhecer o
meu seio de Abraão e matar bem matadas as saudades.
Durante
estas expansões a menina do avental não arredou pé da sala, e eu volta e meia
regalava meus olhos na linda criatura que ela era.
Fausto,
percebendo-o, apresentou-ma.
— Laurita, minha prima…
— Já nos conhecemos —disse eu.
— Donde? —exclamou Fausto surpreso.
— Daqui mesmo, de há cinco minutos.
— Farsista! Olha, Laura, vê lá que nos tragam
o café para aqui.
A
menina ao retirar-se pôs no andar esse requebro que o instinto aconselha às
moças na presença de um homem casadouro.
—Galantinha, hein? — disse Fausto, mal se
fechou a porta.
— Linda! — exclamei, carregando com fúria o i.
—Que frescura! Que corado!
— O corado corre à conta do forno. Estão lá
todos a assar bolinhos de milho. Não conheces minha mulher? Família Leme, da
Pedra Fria. Casei-me logo depois de formado, e aqui vivo alternando seis meses
de roça com outros tantos de capital.
— Excelente vida! É o sonho de toda gente.
— Não me queixo, nem quero outra.
— Colheste, então, o pomo da felicidade?
Fausto
não respondeu, e como o café entrasse no momento a conversa mudou de rumo.
Trouxe-o Laura, com bolinhos quentes.
— Estou adivinhando, dona Laurita, que este
foi enrolado pelas suas mãos! —galanteei, tomando um deles.
— Qual? —acudiu a menina. — Esse que tem marca
de carretilha?
— Sim!
— Justamente os que têm marca são de Lucrécia…
— Ora você —cascalhou Fausto —, a confundir as
artes da prima com as da Lucrécia!
— Os meus são estes — disse Laura, apontando
os não carretilhados.
— Realmente, a diferença é enorme. Novo
“pizzicato” da menina.
— Pois a massa é a mesma e tudo tempero de
Lucrécia…
Fausto
pôs fim aos meus desazos convidando-me para sair.
— Estás muito xucro no galanteio. Vem daí ver
a criação, que é o melhor.
Saímos
e percorremos toda a fazenda, o chiqueirão dos canastrões, o cercado das aves
de raça, o tanque dos Pekins; vimos as cabras Toggenburg, o gado Jersey, a
máquina de café, todas essas coisas comuns a todas as fazendas e que no entanto
examinamos sempre com real prazer.
Fausto
era fazendeiro amador. Tudo ali demonstrava largo dispêndio de dinheiro sem a
preocupação da renda proporcional; trazia-a no pé de quem não necessita da
propriedade para viver.
Ao
jantar apresentou-me sua mulher.
Não
condisse com o molde que cá tenho de boa mulher a esposa do meu amigo. De
feições duras, olhar de ave de rapina, nariz agudo, era positivamente feia e
provavelmente má.
Compreendi
o caso do meu Fausto: casara rico. A fazenda viera-lhe às mãos por intermédio
da esposa.
Na
presença dela Fausto mudava de tom. De natural brincalhão, embezerrava-se numa
sisudez que me era estranha; isso me disse que casaram os bens, os corpos, mas
não as almas.
Também
Laurita se coibia, e as crianças mostravam um odioso bom comportamento de meter
dó. A mulher gelava-os a todos com o olhar duro e mau de senhora absoluta.
Foi
um alívio o erguer-nos da mesa. Fausto lembrara um giro pelos cafezais e como
já estivessem arreadas as cavalgaduras partimos. Sem demora voltou o meu amigo
à expansibilidade anterior, com a alegre despreocupação dos anos acadêmicos. A
conversa correu por mil veredas e por fim embicou para o tema casamento.
—Aquele nosso horror à coleira matrimonial!
Como esbanjávamos diatribes contra o amor sacramento, benzido pelo padre,
gatafunhado pelo escrivão… Lembras-te?
— E estamos a pagar a língua. É sempre assim
na vida: a libérrima teoria por cima e a trama férrea das injunções por baixo.
O casamento!… Não o defino hoje com o petulante entono de solteiro. Só digo que
não há casamento —há casamentos. Cada caso é um caso especial.
—Tendo aliás de comum —disse eu — um mesmo
traço: restrição da personalidade.
—Sim. É mister que o homem ceda cinquenta por
cento e a mulher outros tantos para que haja o equilíbrio razoável a que
chamamos felicidade conjugal.
—“Felicidade conjugal”, dizes bem,
restringindo com o adjetivo a amplidão do substantivo.
A
vista do cafezal interrompeu-nos as confidências. Era setembro, e o aspecto das
árvores estrelejadas de florinhas dava uma sensação farta de riqueza e futuro.
Corremo-lo em parte, gozando o “prazer paulista” de ver ondular por espigões e
grotas a onda verde-escura dos cafeeiros alinhados.
— No teu caso — perguntei —, foste feliz?
—Não sei. Cedi os cinquenta, e espero que
minha mulher imite a minha abnegação. Ela, porém, mais tenaz, embirra em não
chegar a tanto: procuramos o equilíbrio ainda…
—E Laura? —perguntei estouvadamente…
Fausto
voltou-se de golpe, ferido pela pergunta. Encarou-me a fito, vacilante em
revelar-me o fundo de sua alma. Depois, como atravessássemos um sombrio trecho
de caminho, com barrancos acima, avencas viçosas, samambaias e begônias
agrestes, disse, apontando para aquilo:
— Sabes o que é uma face noruega[1]?
Cá tens uma. Não bate o sol. Muita folha, muito viço, verdes carregados, mas
nada de flores ou frutas. Sempre esta frialdade úmida. Laura… é como um raio de
sol matutino que folga e ri na face noruega da minha vida...
Calou-se,
e até à casa não mais pronunciou uma só palavra. Compreendi a situação do meu
querido Fausto, e não lhe invejei as riquezas adquiridas por semelhante preço.
Deixei
o Paraíso, que assim se chamava a fazenda, com três impressões na alma:
deliciosa, a da menina dos bolinhos, no seu avental azul, corada como as romãs;
penosa, a da megera entrevista na criatura feia e má, rica o suficiente para
adquirir marido como quem adquire um animal de luxo. A terceira não a define aí
qualquer adjetivo espipado — complexa, sutil em demasia para caber em moldes
vulgares. Era o vago pressentir duma equação sentimental cujos termos —o raio de sol, a face noruega e o meu Fausto —vagamente
perambulavam dentro da minha imaginativa, às cabriolas.
Nunca
tornei àquelas bandas, nem o acaso me fez encontradiço com qualquer das três
personagens.
Este
mundo, entretanto, é uma bola pequenina. Volvidos vinte anos estava eu parado
diante duma vitrina no Rio de Janeiro quando alguém me cutucou as costelas.
—Tu, Fausto!
— Eu, sim, Bruno!
Envelhecera
Fausto quarenta anos naqueles vinte de desencontro, e o tempo murchara-lhe a
expansibilidade folgazã. Enquanto palestrávamos, uma a uma subiam-me à tona da
memória as cenas e pessoas do Paraíso, a fascinante Laurita à frente. Perguntei
por ela em primeiro.
— Morta! — foi a resposta seca e torva.
Como
nas horas claras do verão nuvem erradia tapando a súbitas o sol põe na paisagem
manchas mormacentas de sombra, assim aquela palavra nos velou a ambos a alegria
do encontro.
— E tua mulher? Os filhos?
— Também morta, a mulher. Os filhos, por aí,
casados uns, o último ainda comigo. Meu caro Bruno, o dinheiro não é tudo na vida,
e principalmente não é para-raios que nos ponha a salvo de coriscos a cabeça.
Moro na rua tal; aparece lá à noite que te contarei a minha história — e
gaba-te, pois serás a única pessoa a quem revelarei o inferno que me saiu o
Paraíso…
Eis
o que ouvi:
— Quando a febre amarela em Campinas orfanou
Laurita, eu, como o parente melhor condicionado, trouxe-a a morar conosco.
Tinha ela cinco anos e já prenunciava nas graças infantis a encantadora menina
que seria.
“Eu
estava casado de fresco e errara no casamento. Minha mulher — não o suspeitaste
naquele jantar? — era uma criatura visceralmente má.
“O
má na mulher diz tudo; dispensa maior gasto de expressões. Quando
ouvires de uma mulher que é má, não peças mais: foge a sete pés. Se eu fora
refazer o Inferno, acabaria com tantos círculos que lá pôs Dante, e em lugar
meteria de guarda aos precitos uma dúzia de megeras. Haviam de ver que paraíso
eram, em comparação, os círculos…
“Confesso
que não casei por amor. Estava bacharel e pobre. Vi pela frente o marasmo da
magistratura e a vitória rápida do casamento rico. Optei pela vitória rápida,
descurioso de sondar para onde me levaria a áurea vereda. O dote, grande,
valia, ou pareceu-me valer, o sacrifício. Errei. Com a experiência de hoje
agarrava a mais reles das promotorias. O viver que levamos não o desejo como
castigo ao pior celerado.”
— A face noruega!…
— Era exata a comparação, gélida como nos
corria o viver conjugal no período em que, iludidos, contemporizávamos,
tentando um equilíbrio impossível.
Depois
tornou-se-nos infernal.
“Laura,
à proporção que desabrochava, reunia em si quanta formosura de corpo, alma e
espírito um poeta concebe em sonhos para meter em poemas. Conluiava-se nela a
beleza do Diabo, própria da idade, com a beleza de Deus, permanente — e o pobre
do teu Fausto, um exilado em fria Sibéria matrimonial, coração virgem de amor,
não teve mão de si, sucumbiu. No peito que supunha calcinado viçou o
perigosíssimo amor dos trinta anos.
“O
vê-la deslizando por ali como a fada mimosa da triste mansão, ora a florir um
vaso, ora a ameigar os pequenos, já curando os doentes pobres da fazenda,
sempre irradiando beleza, felicidade e graça, foi-se-me tornando a razão do
viver. Todas as generosidades e todas as coragens dos anos adolescentes
borbulharam em meu peito. Compreendi a minha desgraça: era um cego a quem
restituíam os olhos e que, deslumbrado, via do fundo de um cárcere, através das
reixas encruzadas, a aurora, a luz, a vida, tudo inacessível... Vitimava-me a
pior casta de amor — o amor secreto...
“Correram
meses.
“Ao
cabo, ou porque me traísse o fogo interno ou porque o ciúme desse à minha
mulher uma visão de lince, tudo leu ela dentro de mim, como se o coração me
pulsasse num peito de cristal. Conheci, então, um lúgubre pedaço de alma
humana: a caverna onde moram os dragões do ciúme e do ódio. O que escabujou
minha mulher contra os ‘amásios’!
“A
caninana envolvia no mesmo insulto a inocência ignorante e a nobreza dum
sentimento puríssimo, recalcado no fundo do meu ser.
“Intimou-me
a expulsá-la incontinenti. Resisti.
“Afastaria
Laura, mas não com a bruteza exigida e de modo a me trair perante ela e todo
mundo. Era a primeira vez que eu depois de casado resistia, e tal firmeza
encheu de assombro a senhora. Tenho cá na visão o riso de desafio que nesse
momento lhe crispou a boca, e tenho na alma as cicatrizes das áscuas que
espirraram aqueles olhos.
“Apanhei
a luva.
“Estas
guerras conjugais portas adentro!… Não há aí luta civil que se lhes compare em
crueza. Na frente de estranhos, de Laura e dos filhos, continha-se. Maltratava
a pobre menina, mas sem revelar a verdadeira causa da perseguição. A sós
comigo, porém, que inferno!
“Durou
pouco isso. Escrevi a parentes, e dava os primeiros passos para a arrumação de
Laura, quando…
“Não
te recordas do bosque de pinheiros plantados em seguimento ao pomar?”
— O pinhal d’Azambuja!
— Foi o nome que lhe pus, como andassem uns
lagartões, seus fregueses, a me pilharem as capoeiras. Esse pinhal era o
passeio favorito de Laura.
Emboscava-se
nele com um livro, ou com a costura, e dessa arte sossegava um momento da
inferneira doméstica.
“Um
dia em que saí à caça, menos pela caçada do que para retemperar-me da guerra
caseira na paz das matas, ao montar a cavalo vi-a dirigir-se para lá com o
cestinho de costura.
“Demorei-me
mais do que o usual, e em vez de paca trouxe uma longa meditação desanimadora,
feita de papo acima, inda me lembro, sob a fronde de enorme guabirobeira.
“Ao
pisar no terreiro vi as crianças a me esperarem na escada, assustadinhas.
“
— Papai, não viu Laura?
“—
Laura?…
“Estranhei
a pergunta, e mais ainda vendo aproximar-se a velha Lucrécia, que disse:
“—
Não vá ter acontecido alguma para nhá Laurita, patrão! Saiu cedo, antes do
café, já é quase noite e nada de voltar.
“
—A senhora... — comecei eu a perguntar não sabia ainda o quê.
“—
Sinhá está no quarto. Andou pelo pomar, voltou e se trancou por dentro.
Não
quer enxergar ninguém, parece que comeu cobra...
“O
coração palpitou-me violento e saí em procura de Laurinha. Indaguei no
terreiro: ninguém a vira. Lembrei-me do pinhal e organizei uma alvoroçada
batida ao bosque. Com fachos incendidos de galhaça morta quebramos a escuridão
reinante.
“Nada!
“Eu
desanimava já de encontrá-la por ali, quando um capataz, desgarrado à frente,
gritou:
“—
Está aqui um cestinho!
“Corremos
todos. Estava lá o cestinho de costura e, mais adiante... o corpo frio da menina.
“Morta,
a bala!
“A
blusa entreaberta mostrava no entresseio uma ferida: um pequeno furo negro
donde fluía para as costelas fina estria de sangue. Ao lado da mão direita
inerte, o meu revólver.
“Suicidara-se…
“Não
te digo o meu desespero. Esqueci mundo, conveniências, tudo, e beijei-a
longamente entre arquejos e sacões de angústia.
“Trouxeram-na
a braços. Em casa minha mulher, então grávida, recusou-se a ver o cadáver com
pretexto do estado, e Laura desceu à cova sem que ela por um só momento
deixasse a clausura. Note você isto: minha mulher não viu o cadáver da menina.
“Dias
depois humanizou-se. Deixou a cela, voltando à vida do costume, muito mudada de
gênio, entretanto. Cessara a exaltação ciumosa do ódio, sobrevindo em lugar um
mutismo sombrio. Pouquíssimas palavras lhe ouvi daí por diante.
“A
mim o suicídio de Laura, sobre sacudir-me o organismo como o pior dos
terremotos, preocupava-me como insolúvel enigma.
“Não
compreendia aquilo.
“Suas
últimas palavras em casa, seus últimos atos, nada induzia o horrível desenlace.
Por que se mataria Laura? Como conseguira o revólver, guardado sempre no meu
quarto, em lugar só de mim e de minha mulher sabido?
“Uma
inspeção nos seus guardados não me esclareceu melhor; nenhuma carta ou escrito
indicioso.
“Mistério!
“Mas
correram os meses e um belo dia minha mulher deu à luz um menino.
“Que
tragédia! Dói-me a cabeça o recordá-la.
“A
velha Lucrécia, auxiliar da parteira, foi quem veio à sala com a notícia do bom
sucesso.
“-
Desta vez foi um meninão! — disse ela. — Mas nasceu marcado...
“—
Marcado?
“—
Tem uma marca no peito, uma cobrinha-coral de cabeça preta.
“Impressionado
com a esquisitice, dirigi-me para o quarto. Acerquei-me da criança e desfiz as
faixas o necessário para examinar-lhe o peitinho. E vi… vi um estigma que
reproduzia com exatidão o ferimento de Laurinha: um núcleo negro, e a
‘cobrinha’, uma estria abaixo.
“Um
raio de luz inundou-me o espírito. Compreendi tudo. O feto em formação nas
entranhas da mãe fora a única testemunha do crime e, mal nascido, denunciava-o
com esmagadora evidência.
“—
Ela já viu isto? — perguntei à parteira.
“—
Não! Nem é bom que veja antes de sarada.
“Não
me contive. Escancarei as janelas, derramei ondas de sol no aposento, despi a
criança e ergui-a ante os olhos da mãe, dizendo com frieza de juiz:
“—
Olha, mulher, quem te denuncia!
“A
parturiente ergueu-se de golpe, recuou da testa as madeixas soltas e cravou os
olhos no estigma. Esbugalhou-os como louca, à medida que lhe alcançava a
significação. Depois ergueu-se de golpe, e pela primeira vez aqueles olhos
duros se turvaram ante a fixidez inexorável dos meus. Em seguida moleou o
corpo, descaindo para os travesseiros, vencida.
“Sobreveio-lhe
uma crise à noite. Acudiram médicos. Era febre puerperal sob forma gravíssima.
Minha mulher recusou obstinadamente qualquer medicação e morreu sem uma
palavra, fora as inconscientes escapas nos momentos de delírio…”
Mal
concluíra Fausto a confidência daqueles horrores, abriu-se a porta e entrou na
sala um rapazinho imberbe.
— Meu filho —disse ele. —Mostra a Bruno a tua
cobrinha.
O
moço desabotoou o colete; entreabriu a camisa. Pude então ver o estigma. Era
perfeita a ilusão: lá estava a imagem do orifício aberto pelo projétil e do fio
de sangue escorrido.
—Veja você — concluiu o meu triste amigo — os
caprichos da natureza…
—Caprichos de Nêmesis... — ia eu dizendo, mas
o olhar do pai cortou-me a palavra: o moço ignorava o crime de que fora ele
próprio o eloquente delator.
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