O VAMPIRO - Conto Clássico de Terror - Horacio Quiroga
O
VAMPIRO
Horacio Quiroga
(1879
- 1937)
Tradução
de Paulo Soriano
—
Sim — disse o advogado Rhode. — Advoguei esta causa. É um caso bastante raro
por aqui, de vampirismo. Rogelio Castelar, um homem até então normal, afora
algumas fantasias, foi, certa noite, surpreendido no cemitério arrastando o
cadáver recém-enterrado de uma mulher. O indivíduo tinha as mãos destroçadas
porque havia removido um metro cúbico de terra com as unhas. Na beira do buraco
jaziam os restos do ataúde, recém-queimado. E como complemento macabro, um
gato, sem dúvida vagabundo, lá jazia com o lombo quebrado. Como veem, nada
faltava ao quadro.
Na
primeira entrevista com o homem, vi que teria que lidar com um fúnebre louco. A
princípio, ele se obstinou em não me responder, embora sem deixar de assentir,
com a cabeça, em minhas ponderações. Por fim, pareceu encontrar em mim um homem
digno de ouvi-lo. A sua boca tremia de ansiedade por comunicar-se.
—Ah!
O senhor me entende!—exclamou, fixando nos meus os seus olhos febris. E continuou
com uma perturbação de espírito de que o que me recordo agora dificilmente pode
dar ideia:
—
Ao senhor, contarei tudo! Sim! Como foi a história do ga... da gata? Eu!
Somente eu! Escute-me: quando eu cheguei... lá, minha mulher...
—
Lá, aonde? — interrompi.
—
Lá... A gata ou não? Então?... Quando eu cheguei, minha mulher correu como uma
louca para abraçar-me. E, em seguida, desmaiou. Todos se precipitaram, então,
sobre mim, olhando-me com olhos de loucos.
Minha
casa! Ela tinha queimado, havia sido demolida, fundida com tudo o que tinha
dentro. Essa, essa era a minha casa! Mas
ela não, minha mulher!
Então
um miserável devorado pela loucura balançou o meu ombro, gritando-me:
—
O que você está fazendo? Responda!
E
eu respondi:
—
É minha mulher! Minha mulher, que se salvou!
Então
um clamor se elevou:
—
Não é ela! Essa não é ela!
Senti
que meus olhos, ao baixarem-se para ver o que eu tinha nos braços, queriam
saltar das órbitas. Esta não era María, a minha María, desmaiada? Um golpe de
sangue incendiou-me os olhos, e de meus braços tombou uma mulher que não era
María. Então, saltei sobre uma barrica e dali contemplei todos os que acorreram
em auxílio. E gritei com voz rouca:
—
Por quê? Por quê?
Estavam
todos assanhados, porque o vento atirava-lhes os cabelos para os lados. E todos
os olhos caíam sobre mim.
Então
comecei a ouvir de todas as partes:
—
Morreu.
—
Morreu esmagada.
—
Morreu.
—
Gritou.
—
Gritou só uma vez.
—
Eu vi que ela gritava.
—
Eu também.
—
Morreu.
—
A mulher dele morreu esmagada.
—
Por todos os santos! — gritei, então, retorcendo as mãos. — Vamos salvá-la,
companheiros! É nosso dever salvá-la!
E
corremos todos. Todos corremos com silenciosa fúria aos escombros. Os tijolos
voavam, os caixilhos caíam desaprumados e a remoção avançava a saltos.
Às
quatro horas, somente eu trabalhava. Não me restava uma única unha intacta, nem
em meus dedos havia com o que escavar. Mas em meu peito...! Eu sentia a angústia
e o furor de horripilante desgraça, que o faziam estremecer, enquanto procurava
por minha María!
Restava
apenas o piano por remover. Havia ali um silêncio de epidemia, uma anágua caída
e ratos mortos. Debaixo do piano tombado, sobre o piso púrpura de sangue e
carvão, jazia esmagada a empregada.
Eu
a retirei para o pátio, onde restavam apenas quatro paredes silenciosas,
viscosas de alcatrão e água. O solo escorregadio refletia o céu escuro. Então
agarrei a empregada e comecei a arrastá-la em volta do pátio.
Esses
passos eram meus. E que passos! Um passo, outro passo, outro passo!
Na
cavidade de uma porta — carvão e buraco, nada mais —, estava encolhida a gata
da casa, que tinha escapado do desastre, malgrado estropiada. Na quarta vez em
que a empregada e eu passamos em frente a ela, a gata lançou um uivo de cólera.
Ah!
Não foi eu, então?, gritei desesperado. Não fui eu quem buscou, entre os
escombros, a ruína e a mortalha de caixilhos, um só pedaço de minha María?
Na
sexta vez que passamos diante da gata, o animal eriçou-se. Na sétima,
levantou-se, arrastando as patas traseiras. E assim nos seguiu, esforçando-se
por molhar a língua no cabelo gorduroso da empregada — no dela, não
no de María, maldito rebuscador de cadáveres!
—
Rebuscador de cadáveres! — repeti, mirando-o. — Mas então isso foi no
cemitério!
O
vampiro então esmagou os cabelos, enquanto me olhava com seus imensos olhos de
louco.
—
Então você sabia! — falou. — Então todos sabem de tudo e me deixam falando uma
hora! Ah! — rugiu em um soluço, lançando a cabeça para trás e deslizando-se
pela parede até cair sentado. — Mas quem, aqui, me disse – disse a este ser
miserável –, por que em minha casa arranquei as unhas para nem ao menos salvar
do alcatrão o cabelo escorrido de María?!
Não
precisava de mais nada , como os senhores compreendem — concluiu o advogado —,
para que seu formasse a minha convicção quanto ao indivíduo. Foi internado em
seguida. Isto aconteceu há dois anos e ontem à noite ele teve alta,
perfeitamente curado.
—
Ontem à noite? — exclamou um homem de luto rigoroso. — E de noite se dá alta
aos loucos?
—
Por que não? O indivíduo está curado, tão são como o senhor ou eu. Demais
disso, se reincide, o que é de regra nestes vampiros, a esta hora já deve estar
agindo. Mas isto não é assunto meu. Boa noite, senhores.
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