RELATO DE UM TAXISTA DA MADRUGADA – ME LEVE PARA CASA! Conto de Nilvio Alexandre Fernandes Braga
RELATO DE UM TAXISTA DA MADRUGADA –
ME
LEVE PARA CASA!
Nilvio
Alexandre Fernandes Braga
Olá,
depois de ouvir alguns relatos de colegas taxistas, tomei coragem e hoje
contarei o meu a vocês.
Não
tenho orgulho nenhum; na verdade, me envergonho muito, não pelo ocorrido, mas
da forma que ocorreu. Por mais estranha que pareça, essa história realmente
aconteceu e contarei a vocês, mesmo que seja desconfortável relatá-la...
Como
já revelei acima, sou taxista, trabalho em uma grande cidade do Brasil. Esse
fato foi há mais de uma década, mas mudou minha vida, em vários sentidos. Bem,
vamos lá.
Já
havia dormido dentro do carro mesmo, fazia pouco que tinha acordado de uma
soneca restaurativa, e resolvi rodar. Saí dirigindo pela cidade, não a esmo,
pois, como um bom taxista, sei os horários e as ruas certas para rodar e pegar
alguns clientes. Era por volta das 4h da madrugada, uma bela noite de lua
cheia, mas fria, muito fria, e mesmo com o ar quente do carro ligado dava para
sentir o congelamento das juntas. Era daquelas noites em que o frio congelante
vinha de baixo para cima, subindo lentamente dos pés à cabeça...
A
rádio repetia frequentemente, entre uma música e outra, que estava 6 graus. Como
se já não fosse suficiente sentir o frio, precisavam nos avisar para abalar o
nosso estado psicológico.
Todavia,
a gente se acostuma com o frio. Na verdade, nos acostumamos com qualquer coisa,
principalmente na noite. Sempre dizemos que sobreviver na madrugada é para
poucos, e está aí uma afirmação verdadeira. Somos seres adaptáveis e essa é a
razão de termos evoluído. Bem, não estou aqui para falar sobre isso e sim
contar a história ocorrida.
Continuemos,
então.
Peguei
uma passageira na porta de um hospital, uma senhora de idade avançada, que
chorava, chorava copiosamente. Ela me fez sinal e parei. Desci, educadamente
abri a porta e disse para ela que não tivesse pressa, mas ela, passando um
lenço no rosto, esboçou um sorriso.
Entregou-me um papel onde constava o endereço de uma funerária.
Bem,
já era experiente naquela época, não perguntei nada, apenas aguardei que ela
entrasse no carro e segui o caminho indicado, pois já sabia qual era a história
triste daquela senhora de rosto umedecido: ela perdera um ente querido, não
tinha quem a ajudasse naquele momento e estava indo resolver a papelada do
funeral.
Mantive
meu silêncio e respeito. Era uma corrida curta, coisa de 5, 7 minutos
aproximadamente.
Porém,
na quadra onde deixaria a senhora chorosa, vi, na esquina, um vulto estranho,
algo se esgueirando na calçada. Apertei bem o olhar e notei que era uma velha...
Vocês sabem aquela descrição básica de bruxa velha? Cabelos longos, grossos, branco-acinzentados e lisos, muito magra,
quase que esquálida, parecia ter mais de 100 anos.
Antes
que você me pergunte como notei tanto em alguém em uma passagem rápida, eu
respondo: experiência, zelo, cuidado, e atenção plena. Como disse, a madrugada
é para os fortes: é fácil de ser assaltado ou até mesmo ser morto, qualquer
descuido pode ser fatal. Então, sempre — quando eu digo sempre, é sempre mesmo
—, na quadra onde vou estacionar para largar um cliente, eu cuido de cada
detalhe.
Aquela
peculiar imagem ficou na minha mente até eu chegar ao meio da quadra, onde
deixei a passageira. Era normal ver moças nas esquinas naquele horário, mas não
senhoras de idade tão avançada assim, ainda mais naquele frio!
Parei
na gente da funerária. Educadamente, agradeci o pagamento e perguntei se ela queria que eu aguardasse. Foi
a vez de ela agradecer: disse que não precisava, pois um filho, que logo
chegaria da cidade vizinha, iria pegá-la
ali. Então nos despedimos.
Não
havia nem manobrado o carro para voltar ao ponto e o telefone tocou. Era da
central, uma chamada para buscar um passageiro com urgência no Hospital
Municipal, uma chamada prioritária; traduzindo: pagariam uma bonificação para mim e para a
empresa se fizéssemos o atendimento da forma contratada de urgência, sem
atrasos! Ótimo — eu pensei —, afinal, madrugada, tempo bom e trânsito livre, o
que poderia me impedir de chegar na hora marcada?
Dei
a volta no quarteirão e passei na esquina onde antes estava aquela senhora de
aparência estranha. Ela não estava mais lá, mas vi que ela caminhava
lentamente, já no meio da outra quadra. Diminuí a marcha e passei lentamente
por ela. Notei que ela se abaixava, se contraía. Era como se ela sentisse dor.
Pensei em parar. Na verdade, parei o carro. Quando estava pensando em baixar a
janela e perguntar se ela queria ajuda, a central falou no rádio: “carro 74, você
tem 5 minutos para chegar ao ponto de embarque!”
Olhei
para aquela velha, que agora me fitava com seus estranhos olhos grandes,
esbranquecidos e vazios, e sua boca retorcida e cheia de dentes amarelados,
parecia falar algo para mim, mas eu não escutei, mas acho que ela falava
“casa”.
Jesus
do céu, eu pensei, ela parecia um zumbi. Lembrei de um amigo que costumava
falar: “essa morreu e esqueceram de avisar!”. Ela parecia ter uns 200 anos, o
que fazia ali naquele frio? Só podia ser maluca, não tinha outra explicação. Ainda
não havia decidido se ela “merecia” minha ajuda, quando o rádio bipou e lembrei
da chamada prioritária, e eu não podia perder essa, pois fazia muita diferença
no bônus de final de mês!
Aquela
senhora feia estava quase abrindo a porta, quando engatei a marcha e rumei ao
hospital onde me esperavam. Ainda consegui ver, ao olhar pelo retrovisor, a
velha senhora encostada num poste bruxuleante; ela olhava para baixo, como se
tivesse desistido de alguma coisa. Lembro ter pensado: “a vida dela parecia com
aquela luz tremulante, logo em uma daquelas apagadas, não voltaria mais!”.
Lá
no início disse que não me orgulhava nada do que havia feito. Bem, agora já
sabem um pouco por que eu senti vergonha de mim mesmo. Fui mesquinho, mas eu
era assim, egoísta; ou, talvez, tenha sido meu instinto de sobrevivência
querendo me proteger...até hoje não sei.
Então,
segui meu caminho até o hospital e logo já nem lembrava da velha feia. Cheguei
ao ponto de embarque na hora ajustada, veio ao meu encontro um rapaz com cara
de poucos amigos, me apresentei e ele apenas me pediu para que o levasse o mais
rápido possível à funerária. Era na mesma a que eu acabara de ir levar a
senhora chorona. Comentei o fato ao rapaz, que foi logo me dizendo que
provavelmente foi a mãe dele que eu havia levado. Fiz a descrição dela e ele
confirmou que era ela. Me contou que o pai dele havia morrido há poucas horas,
naquele hospital onde os pegara, e que tinha pedido para a mãe o esperar ali,
que era só o tempo de chegar, pois vinha de outra cidade, não tinha carro,
pegara um táxi de lá para cá, mas a mãe dele sempre foi impulsiva e não
esperava por ninguém, nem por ele, e fez um comentário sarcástico: “nem sei
como ela deixou meu pai morrer na frente dela!” e deu uma triste risadinha. Mesmo
que o comentário tenha sido sem graça, até que foi bom, pois, inicialmente, eu
o achei com cara de brabo, nervoso, mas depois vi que era semblante de tristeza
e preocupação.
Me
explicou que fez o que pôde, pois precisava ajudar a mãe nesse momento tão
triste. Eu apenas consenti, balançando a cabeça para baixo e para cima, pois
sei que os passageiros falam e falam, mas pouco querem escutar, ainda não mais
em um momento de dor como aquele. Além de quê, também nunca me importei com a
dor dos outros...
Como
havia falado, eu já não lembrava da velha feia, mas, ao entrar na rua da
funerária, na hora me veio aquela imagem horrenda à cabeça.
Quando
passei pelo poste em que a tinha visto da última vez, não a enxerguei ali; a luz
que antes piscava agora estava apagada.
Será
que aconteceu o mesmo com velha? E sorri
com meu próprio sarcasmo.
Porém,
mesmo sem a luz da lâmpada, apenas com o luar, parecia haver uma impressão
próxima daquele poste, algo como uma mancha escura no ar, como se fosse uma
sombra, uma parte mais escura que o escuro, estranho, muito estranho...
Chegamos,
me despedi do rapaz, dei meus pêsames e pedi para ele pegar leve com a mãe dele.
Não sei por quê, mas resolvi falar que, se estava difícil para ele, imagina
para ela, que era a esposa?! Ele olhou firmemente para mim, parecia que ia
dizer: “não se meta!!”, mas não, vi que os olhos dele marejaram e ele forçou um
sorriso e falou: “Obrigado pelo conselho, você tem toda a razão, e também vou
te dar um, cara: te cuida por essas noites da vida, nunca se sabe quem anda
nesse banco ai atrás!” e se foi para dentro do prédio. Achei estranho aquele
comentário, mas, com certeza, era verdadeiro.
Manobrei,
déjà vu, e sorri com o canto da boca, mas não o era; afinal, o telefone
não tocou dessa vez e também não daria o azar de ver aquela velha horrível se
arrastando pela rua, ou...
Quando
passei pelo poste, um enorme susto: a lâmpada acendeu de repente, muito forte,
firme e clara, e para surpresa maior ainda, aquela sombra escura, que eu tinha
notado antes, era uma mulher, mas não a velha grotesca, e sim uma linda jovem,
toda de preto, com longos cabelos negros amarrados, que deixavam ainda mais à
mostra seu belo rosto branco, muito branco. Pensei: deve ser gótica, dark,
sei lá o quê?, dessas que usam roupas pretas e não pegam sol!
Ela
fez sinal; eu parei, claro! Ela veio sorrindo para o carro e eu também sorri:
até que, enfim, uma visão agradável, depois de tantos passageiros chorosos e
tristes, e, pior, aquela assombração que havia visto por ali!
Nada
melhor que uma bela visão para esquecer uma feia, cheguei a rir com a mudança!
Pois imaginava ver ali aquela senhora horrenda e não essa moça de aparência tão
bela.
Ela
entrou no banco de trás, acendi a luz interior do carro. Ela sorriu: dentes
brancos, grandes e alinhados; sorri também e perguntei para onde ela queria ir,
e ela me falou o endereço e seguimos.
Desliguei
a luz interna, liguei o taxímetro e parti. Já disse era uma noite muito fria,
mas naquela hora parecia que o aquecedor do carro não funcionava, além de do
nada ter começado um cheiro estanho, um cheiro acre e pútrido. Imaginei que
fosse algo no sistema de ventilação do carro que havia estragado, cheguei a
comentar, mas ela apenas resmungou algo inteligível. Imaginei que ela estivesse
dormindo, pois no interior do carro estava escuro e eu já nem enxergava mais a
moça, até porque ela se sentou atrás de mim, escorou a cabeça na janela e
soltou os longos cabelos negros que ficaram à frente de seu lindo rosto.
Pensei: “ela deve estar dormindo”.
Liguei
uma música baixinha e não falei mais nada. Segui a viagem com calma, pois já
começava a baixar aquela cerração habitual da madrugada.
Parei
o carro, bem na frente da casa indicada por ela no início da viagem. Achei
estranho, parecia um grande mausoléu.
Me
dei conta que conhecia aquela rua, aquele bairro. Tinha me mudado dali há muito;
saí dali ainda criança, mas morei ali até uns 10, 11 anos.
Eu
realmente conhecia bem aquelas ruas e aquelas velhas casas, então me lembrei de
que ali havia uma velha casa vazia há anos, que, quando passávamos ali, meus
pais me assustavam, dizendo que aquela era uma casa assombrada por uma velha
senhora que havia morrido, que morava sozinha, quase nunca saía, não tinha
ninguém e que, em uma noite fria de inverno, quando já estava caducando, saiu a
caminhar pela cidade e se perdeu. De alguma forma, não soube mais voltar para
casa e ninguém a ajudou. Ela não tinha a quem recorrer e ninguém que passou por
aquela velha deu importância, até que ela aparentemente se deitou na rua e
esperou a morte chegar.
Ela
foi encontrada no centro da cidade, deitada, encolhida em uma sarjeta. A causa
da morte foi apurada pela polícia e eles constaram que ela morreu de hipotermia.
A minha mãe sempre acabava a história com o seguinte comentário:
“A
pobre coitada morreu de frio e ninguém nessa cidade ajudou! Meu filho, ai de ti se tu, quando crescer, for
mesquinho e egoísta como as pessoas dessa cidade foram com ela, se tu fizer um
tipo de coisa ruim assim, tu vai se ver comigo!” Depois do comentário, minha mãe, com cara séria, fazia
o movimento com a mão, como se puxasse minha orelha.
E
pela aparência das janelas quebradas e dos muros e grades destruídos pelo
tempo, ninguém mais tinha ido morar ali. Então, quando fui me virar para
perguntar para a moça se ela tinha me dado o endereço correto...
O
susto... essa parte é complicada de descrever... Eu quase infartei. Não era
mais moça quem estava ali. Vocês já devem saber quem estava sentada no banco de
trás de meu táxi, quando eu cheguei naquela casa, não?
Sim,
era a velha asquerosa quem estava ali. Eu quase quebrei o painel do carro com
minhas costas, ao bater ali com o pulo que dei para trás ao ver aquilo. O tempo
parou, ela me olhava fixamente com aqueles olhos mortos, esbranquecidos, que pareciam
ver dentro de mim. E o pior é que parecia que eu via o que ela via… Um vazio,
um nada.
além
daquele olhar, o sorriso, a boca —isso até hoje ainda está na minha mente —,
aquele sorriso (se é que aquilo era um sorriso), os dentes podres, negros,
alguns quebrados. Ao lembrar, eu chego a sentir o cheiro de podre que vinha daquela boca!
Agora
sabia por que desde antes estava sentindo aquele cheiro de coisa morta dentro
do carro: vinha dela, não apenas de dentro dela, mas dela, todo o corpo estava
apodrecido, era como se ela estivesse se decompondo na minha frente!
Não
sei quanto tempo durou aquilo, eu não sei se gritei e, se gritei, não ouvi,
pois na minha cabeça havia apenas a gargalhada dela: alta, estridente, como se
estivesse engasgando na própria saliva!
Eu
a vi descendo do carro, me fitava o tempo todo, seus olhos pareciam estar
mirando os meus, mas agora o olhar dela não parecia mais me machucar e sim
parecia querer me agradecer...
Como
naquela vez que quase parei para ela entrar, ela, novamente, mexia a boca
falando algo, mas dessa vez eu consegui ouvir, ela dizia “minha casa!”, e assim,
passando pelo portão da velha casa, ela assumiu novamente o vulto da moça
que entrara no táxi pouco tempo antes, e, dessa forma, sumiu na escura cerração.
Eu
acordei caído no banco do carona. Não sei quanto tempo fiquei assim, naquela
rua erma e fria. Meu pavor era tanto que apenas liguei o carro e saí o mais
rápido que pude..
Acabou!
Acho
que para ela sim, que finalmente foi levada para casa, mas para mim não acabou
ali.
Os
anos se passaram e eu mudei muito após esse fato. Pode parecer uma história de
louco, eu mesmo me tratei com psicólogo e com psiquiatra por anos para entender
o que realmente aconteceu, pois eu sei que aconteceu, , mesmo com os médicos afirmando o contrário.
Posso
garantir a vocês, eu vi o rosto da morte e sei como ela é horrível, eu sei o
cheiro que ela tem, e mesmo tendo a deixado a mulher morta naquela casa
abandonada, ela não me abandonou nunca mais: aquele rosto permanece gravado,
tatuado na minha mente.
Mas,
mesmo assim, de toda a visão horripilante que tive ao olhar para ela, o mais
horrível não foi a velha senhora se desmanchando, mas sim o vazio, o nada, o
imenso vazio da morte que eu enxerguei através daqueles olhos mortos.
Eu
vi o outro lado e eu nunca mais conseguirei esquecer, por mais que eu tente!
Amigos,
somos todos passageiros nesta vida e, quem sabe, um dia serei eu a pedir essa
última corrida, então sentarei no banco de trás de um táxi, serei o passageiro
de uma viagem que me leve para casa. Só espero
que o motorista deixe que eu entre no carro!
obrigado pela oportunidade de publicar meus devaneios
ResponderExcluirCom cereteza passar por uma situação dessa deve ser Dramático,Com certeza Abandonaria a Profissão de Taxista.
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