A ARCA - Conto de Terror - Roque Braz
A ARCA
Roque Braz[i]
Minha mãe fazia rápida visita a uma amiga que
morava na vizinhança. Durante a conversa das duas, descobri uma revistinha de
conteúdo pornográfico. Quando a vizinha me viu com a revista, sorriu, tomou-a
das minhas mãos com um gracejo de que eu me mostrara muito interessado e, ainda
sorridente, passou a folheá-la para minha mãe. Não sei se pela minha presença
ou pela idade bem maior que a da vizinha ou pela soma destes fatores, minha mãe
fez um ar de censura e não se mostrou interessada. Isto fez a vizinha perder o
riso que pedia cumplicidade, guardar a revista num dos quartos e voltar à boa
conversa que o meu achado interrompera.
Daí a pouco minha mãe se
retirou e a acompanhei. Mas só meu corpo foi com ela: meu espírito ficou
aprisionado à ideia de ver a revista mais uma vez e integralmente!
Aquela vizinha guardava às
vezes a chave da sua casa na nossa, prevenindo a chegada do marido num momento
em que ela não se encontrasse. Isto foi a primeira coisa que me ocorreu quando
pensei em voltar lá para me deleitar com a pornografia. Minha idade pedia e
permitia todas as peraltices inerentes à curiosidade. Acabara de descobrir o
mundo maravilhoso da sexualidade e tudo o que se relacionasse a sexo era do meu
interesse. Sem contar que nesse tempo havia pouca pornografia disponível.
Não esperei muito. Alguns
dias depois, a vizinha, acompanhada dos filhos, deixou a chave com minha mãe,
explicando que possivelmente só regressaria no dia seguinte, por conta da
visita que faria aos pais. Os pais moravam próximo da cidade, numa fazenda, mas
longe o suficiente para tornar cansativo ir e voltar no mesmo dia. O marido
estava viajando e poderia chegar a qualquer momento. Assim, pediu a minha mãe
para participar isto a ele, se necessário, e se despediu.
Logo a chave estava na
minha mão! Agora era necessário achar um jeito de entrar na casa alheia sem dar
na vista. O jeito que encontrei, uma vez que tinha as chaves na mão, foi entrar
pela porta da frente, numa atitude insuspeita de quem cumpria mandado. Os meus
doze ou treze anos de idade sugeriam o cumprimento de ordens superiores, pois
todo rapazote é menino de recados.
Ostentando resolução que o
meu interior não carregava, meti a chave e entrei. Deixei a porta fechada,
prevenindo intromissão de alguém, o que me obrigaria a uma explicação
instantânea por me encontrar ali.
Fui diretamente ao quarto
em que a vizinha entrara para guardar a revista. Olhei tudo ao redor na fraca
luminosidade da casa fechada naquela tarde quente. Acendi a lâmpada do quarto e
não vi qualquer revista. Nada na mesa de cabeceira. O guarda-roupa! Só poderia
estar ali! Abri todas as portas, revolvi todas as gavetas e nada!
Trepei numa cadeira e saí
pesquisando sobre todos os guarda-roupas da casa. O resultado foi igual. A casa
inteira revistada e nada.
Aborrecido e desapontado
fui ao quintal. Muros velhos o cercavam inteiramente. Olhei os vegetais
plantados na sua escrupulosa paz. Pensei em quais casas estavam à minha direita
e à esquerda. Naquele momento me pareceu ouvir vozes vindo da casa à esquerda.
Era a casa de José Largeprawn. Um arrepio me tomou todo o corpo. Ele morrera
recentemente. Havia muitas histórias a seu respeito. Uma delas era ter
assassinado Antônio Largeprawn, o próprio irmão, para ficar com o dinheiro que este
juntara por muitos anos numa arca. Não o matara na cidade, o que evitou provas
contra si sobre autoria do crime.
Aos poucos me acheguei ao
pé do muro, donde pude ouvir ruído de vozes provenientes da casa. Duas pessoas
discutiam. Melhor: dois homens. Vozes rouquenhas de pessoas um tanto velhas.
Pensei na arca de dinheiro e minha curiosidade se acentuou. Creio que a ousadia
da juventude e a ilusão da riqueza fácil me arrastaram para o que fiz dali em
diante.
Olhei o muro. Não era
alto. Minha cabeça estava tomada pela arca cheia de dinheiro. Subi sem pensar e
cuidadosamente desci do outro lado. Caminhei devagar em direção à porta dos
fundos, evitando fazer ruído. A porta estava entreaberta e o som das vozes
acirradas começava a ficar inteligível. Notei que um fazia acusações ao outro
que as rebatia com veemência. Meu corpo estremeceu quando reconheci as vozes de
Antônio e José Largeprawn! Não quis acreditar! Ambos estavam mortos!
Enquanto me aproximava, Ouvi
claramente um deles dizer “Você vai ter de me dizer onde escondeu o dinheiro
que estava na minha arca! Ou me diz ou eu o matarei!”. Ouvi o outro rir e dizer
“Você não pode me matar, pois você já está morto!”.
Eu já estava muito próximo
da porta para voltar atrás, embora fosse o sentimento que me dominava naquele
momento, juntamente com uma crescente sensação de medo, atenuada pela esperança
de que aquilo não fosse mais que uma brincadeira de alguém que me vira saltar o
muro.
Entrei bem devagar,
tentando evitar fazer ruído, mas um vento repentino abriu a porta por inteiro e
pude ver claramente o lugar. O medo tomou conta de mim quando constatei a
presença de vários e vários sapos espalhados ao meu redor. Arrepiado, fiquei
imaginando como não pisara nenhum nos passos que dei ali dentro. Não preciso
dizer que tinha verdadeiros horror e asco a sapos.
Passei um momento eterno
terrificado e inseguro sobre o que deveria fazer. Eram sapos escuros, devido à
escuridão e à umidade ambiente. Todos com os papos enchendo e secando num
compasso medonho de quem transparecia calma. Os seus olhos mudos, se não me
eram indiferentes, pareciam olhar para mim. Olhei para a porta e torci para que
não se fechasse novamente, pois entraria em pânico.
Repentinamente tive clara
impressão de que um deles piscou para mim. Precisava fugir dali. Eram só alguns
passos até a porta. Quando me dispunha a correr, um gato pardo pulou entre mim
e a porta. Não tinha medo de gatos, mas, ao ver aquele, uma onda de pavor me
invadiu: a sua cara parecia absurdamente com a de Joseph Largeprawn! Os mesmos
olhos vivos, agateados, agudos, estarrecedores olhavam para mim como a indagar
o motivo de me encontrar ali.
Meu nervosismo e meu medo,
àquela altura, já eram muito maiores. Os sapos continuavam impassíveis, como
guardiães que não precisam agir. O gato, todavia, elevou o dorso, formando uma
corcova e, olhando para mim, miou com um som roufenho igual à voz de Joseph
Largeprawn. Eu conhecia bem a voz do velho Joseph. Vi-o diversas vezes falando
com algumas pessoas e sua voz, somada ao semblante, sempre me meteram medo. Não
consegui traduzir o miado, mas entendi, pela expressão, que ele não aprovava a
minha presença ali. Os sapos entoaram um coro uníssono que me deixou trêmulo.
Agora não havia saída. O
gato continuava entre mim e a porta. Amaldiçoei a revista pornográfica e a
lembrança da arca que me trouxe a vontade de enriquecimento fácil.
Tive a impressão de ouvir vozes
na casa da vizinha. Estava totalmente perdido: não sabia se gritava por socorro
ou se calava e tentava me safar sozinho daquele horror para não ser pego na
casa alheia sem uma explicação convincente.
Queria correr, queria
gritar, mas não conseguia. O gato eriçou o pelo e fez um ruído, uma espécie de
“fsss!”, e aumentou a corcova do dorso.
O que passava em mim era a
certeza de que não havia saída. Não conseguia me mover. Não chorava: o
desespero era o único sentimento que sobrevivia
De repente, um gato preto
caiu em pé defronte ao gato pardo. Miou para este como a desafiá-lo. Reconheci,
imediatamente, no seu miado, a voz de Antony Largeprawn, o irmão de Joseph. O
gato preto volveu os olhos para mim e pude ver nos seus traços o rosto de Antony
Largeprawn: a mesma barba negra, o mesmo ar taciturno e pacífico.
Com um miado estarrecedor
o gato pardo pulou sobre ele e se engalfinharam numa luta monstruosa de patadas
de garras à mostra e dentes abertos com mordidas descomunais, rolando pelo chão
e fazendo pular os sapos mais próximos, abrindo caminho para mim.
Não perdi tempo: enquanto
eles lutavam, corri e pulei o muro, voltando à casa da vizinha. Não havia
ninguém lá. Saí, fechei a porta e fugi para minha casa.
Nunca falei daquilo com
ninguém, mas alguns anos depois alguém me contou que foi encontrado, na casa da
família Largeprawn, um cenário esquisito: alguns esqueletos de sapos e os
esqueletos de dois gatos numa posição curiosa: parecia que um estava com os
dentes cravados no lugar em que supostamente estaria a garganta do outro.
Indaguei sobre a possível
arca cheia de dinheiro, a qual, segundo alguns, ensejara o assassinato
fratricida. A pessoa me olhou com ar de zombaria e me disse que nunca existiu a
tal arca. José Largeprawn, muito brincalhão, boatara na cidade que o irmão
estava meio amalucado e que a arca cheia de dinheiro que ele insistia tanto em
dizer possuir não passava de fantasia do seu cérebro gasto. Por conta dessa
zombaria os dois se desentenderam, mas Antônio morreu mesmo foi de uma queda de
um barranco lá pelas terras deles.
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