A MORTA - Conto Clássico de Terror - Guy de Maupassant (Nova Tradução)
A MORTA
Guy de
Maupassant
Tradução de
Paulo Soriano
Guy de Maupassant (1850 — 1893)
é geralmente considerado um mestre inexcedível da curta narrativa. No conto “A
Morta”, a aguda crítica social — na qual a hipocrisia humana é o alvo — está
inscrita nas lápides de um cemitério secular, para onde acorreu um amante
desesperado, em visita ao túmulo de uma jovem mulher. Lá, numa noite de
delírio, os mortos se erguem de suas tumbas e alteram, com a força pestilenta e
cruel da verdade restabelecida, as inscrições lisonjeiras de seus epitáfios.
Embora o conto já houvesse sido publicado neste blog, numa tradução de um autor
desconhecido do século XIX, julgamos por bem republicá-lo em tradução nossa,
inédita.
Eu
a amava loucamente! E por que amamos? É estranho ver no mundo somente um ser,
ter na mente apenas um pensamento, no coração apenas um desejo e na boca um só
nome: um nome que se eleva incessantemente, que ascende, como a água de uma
nascente, das profundezas da alma aos lábios, que se pronuncia, que se repete,
que se murmura incessantemente, por toda parte, como uma oração.
Eu
não contarei nossa história. O amor tem apenas uma, que é sempre a mesma. Eu a
conheci e a amei. Eis tudo. E, durante um ano, vivi de sua ternura, em seus
braços, em seu olhar, em seus vestidos, envolvido, aprisionado por tudo que
vinha dela, e de tal forma que não sabia quando era dia ou noite, se estava
vivo ou morto, sobre esta antiga terra ou alhures.
Mas ela morreu! Como? Não sei mais!
Ela
retornou encharcada numa noite chuvosa; e, no dia seguinte, estava tossindo.
Tossiu por cerca de uma semana, de cama.
O
que aconteceu? Não sei mais.
Os
médicos vieram, receitavam, partiam... Trouxemos remédios, que uma mulher lhe
ministrava. Suas mãos ardiam, a sua fronte estava quente e úmida, seus olhos
brilhantes estavam tristes. Eu falava com ela, ela me respondia. O que dizíamos
um ao outro? Não sei mais! Esqueci tudo, tudo, tudo! E ela morreu. Lembro-me
muito bem de seu último suspiro, débil e curto. A enfermeira disse: “Ah!”. E eu
entendi, entendi tudo!
Não
soube de mais nada. Nada! Ouvi um padre dizer: “sua amante”. Parecia-me que ele
a insultava. Pois, morta que ela estava, ninguém mais tinha o direito de saber
disto. Eu o afugentei. Veio um outro, muito bom, muito doce. Chorei quando ele
me falou sobre ela.
Consultaram-me
sobre milhares de coisas para o enterro. Não sei mais de nada. Entretanto,
recordo-me muito bem do caixão, do ruído das marteladas quando o pregamos. Ah,
meu Deus!
E
ela foi sepultada! Sepultada! Ela, numa cova! Algumas pessoas vieram, amigos
nossos. Eu fugi. Eu corri. Caminhei por um longo tempo pelas ruas. Então,
voltei para casa. No dia seguinte, parti para uma viagem.
*
Ontem
voltei a Paris.
Quando
vi o meu quarto — o nosso quarto, o nosso leito, os nossos móveis, toda essa
casa onde ficara tudo o que resta de um ser após a morte — , reexperimentei um
sofrimento tão violento que quase abri as janelas e joguei-me à rua. Não era
mais capaz de viver em meio a essas coisas, essas paredes que um dia a
cercaram, e que deviam conservar, ainda, em suas rachaduras, imperceptíveis miríades
de átomos dela, da sua carne, do seu hálito. Peguei o chapéu para sair. De
repente, quando me dirigia à porta, passei pelo grande espelho do corredor, que
ela colocara ali para se ver, todos os dias, de alto a baixo, e constatar se
estava bem vestida, correta e bela, das botinas ao penteado.
Detive-me
diante daquele espelho que tantas vezes a tinha refletido. Tantas vezes, tantas
vezes que ainda devia reter a sua imagem.
E
lá eu estava, trêmulo, com os meus olhos fixos no vidro liso, profundo, vazio,
que a contivera inteiramente, que a possuíra tanto quanto eu, tanto quanto o
meu olhar apaixonado. Senti-me como se amasse aquele espelho. Eu o toquei:
estava frio! Oh, recordações! Recordações! Espelho doloroso, espelho ardente,
espelho horrível, que me faz sofrer todas as torturas! Bem-aventurados os
homens cujo coração, como um espelho em que reflexos deslizam e desvanecem,
esquece tudo o que contiveram, tudo o que se passou diante dele, tudo o que
contemplou em sua afeição e no amor! Ah, como sofro!
Apesar
de tudo, saí e, sem saber, sem querer, segui em direção ao cemitério. Encontrei
o seu muito singelo túmulo, em cuja cruz de mármore inscreviam-se estas poucas
palavras:
“Amou,
foi amada e morreu”.
Ela
estava ali, sob a terra, putrefeita! Que horror! Eu soluçava, a testa apoiada
ao chão.
E
assim permaneci por muito tempo, muito tempo. Então percebi que a noite descia.
Um desejo bizarro, louco, um desejo de amante desesperado me dominou. Eu queria
passar a noite junto dela, a última noite, pranteando em seu túmulo. Mas me
veriam e me expulsariam dali. O que fazer, então? Eu não era um tolo: ergui-me
e comecei a vagar naquela cidade de desaparecidos.
E
eu andei, andei. O quão é pequena essa cidade, se comparada à outra, aquela em
que vivemos. E, no entanto, como os mortos são mais numerosos que os vivos!
Precisamos de casas altas, ruas, muito espaço para abrigar as quatro gerações
que, ao mesmo tempo, contemplam a luz do dia, bebem a água da nascente, o vinho
das videiras e comem o pão das planícies.
E
para todas as gerações de mortos, para toda a escala da humanidade que nos
precedeu, quase nada, um punhado de chão, quase nada! A terra os encobre e
esquecimento os apaga. Adeus!
Nos
confins da necrópole habitada, vi, de repente, o cemitério abandonado, onde os
defuntos revelhos terminam por se confundir com o solo, onde as próprias cruzes
apodrecem e onde serão amanhã sepultados os últimos que chegarem. Lá proliferam
as rosas silvestres e os negros e vigorosos ciprestes: é um jardim triste e
soberbo, nutrido pela carne humana.
Estava
só, completamente só. Aninhei-me sob uma árvore verde. Escondi-me naqueles
ramos espessos e sombrios.
E
esperei, agarrado ao tronco, como um náufrago se agarra a um destroço.
*
Quando
a noite já era escura, muito escura, deixei meu refúgio e comecei a caminhar de
mansinho, a passos lentos e surdos, sobre essa terra repleta de mortos.
Andei
a esmo por muito, muito tempo. Não conseguia encontrá-la De braços estendidos e
olhos abertos, chocando-me contra as sepulturas com as mãos, com os pés, com os
joelhos, com o peito e mesmo com a cabeça, errava sem conseguir encontrá-la.
Andei às tontas como um cego à procura de seu caminho. Apalpava lápides,
cruzes, grades de ferro, coroas de vidro, coroas de flores murchas. Li nomes
com meus dedos, correndo-os sobre as letras. Que noite! Que noite! Eu não
conseguia encontrá-la.
Não
havia Lua! Que noite! Sentia medo, um medo terrível naquelas alamedas
estreitas, entre as fileiras de túmulos! Túmulos! Túmulos! Túmulos! Sempre
túmulos! À esquerda, à direita, à minha frente, ao meu redor, em todos os
lugares, túmulos! Sentei-me num deles. Eu não podia mais andar, pois os meus
joelhos vergavam. Podia ouvir as batidas de meu coração. Mas ouvia outro
barulho. O que seria? Era um ruído indizível, confuso. Estava aquele ruído em
minha cabeça ensandecida, na noite impenetrável ou sob a terra misteriosa,
semeada de cadáveres humanos? Olhei ao redor.
Quanto
tempo permaneci ali? Não sei. Estava paralisado pelo terror, embriagado de
terror, prestes a gritar, prestes a morrer.
E,
de repente, pareceu-me que a laje de mármore, sob a qual eu me sentara, estava
se mexendo. Movia-se, de fato, como se alguém a levantasse. Com um salto,
joguei-me a uma tumba vizinha, e vi — sim, eu vi! — a pedra erguer-se e
assomar, do fundo do sepulcro, um esqueleto nu, que empurrava a lápide com os
ombros curvados. Vi, vi tudo muito bem, embora fosse noite cerrada. Pude ler
sobre a cruz:
“Aqui
jaz Jacques Olivant, morto aos cinquenta e um anos. Amou os seus, era honesto e
gentil, e morreu na paz do Senhor”.
Agora
o morto também lia as coisas gravadas em sua tumba. Então pegou uma pedra da
alameda — uma pedra pequena e pontiaguda — e cuidadosamente começou a raspar
aquela inscrição. Apagou-a lenta e completamente, mirando com as órbitas vazias
o lugar em que insculpida. E com a ponta do osso que fora o seu dedo indicador,
escreveu em letras luminescentes, como as linhas que as crianças traçam nas
paredes com a ponta de um fósforo:
“Aqui
jaz Jacques Olivant, morto aos cinquenta e um anos. Antecipou com sua dureza a
morte de seu pai, de quem desejava herdar, torturou a sua esposa, atormentou os
seus filhos, enganou os seus vizinhos, roubou quando pôde e morreu miserável”.
Quando
terminou de escrever, o morto, imóvel, contemplou a sua obra. Olhando ao redor,
vi que todos os túmulos estavam abertos, que todos os cadáveres haviam saído de
suas covas, que todos eles haviam apagado os falsos elogios, escritos pelos
parentes na pedra funerária, para ali restaurar a verdade.
E
vi que todos foram carrascos de seus entes queridos. Todos tinham sido odiosos,
desonestos, hipócritas, embusteiros, caluniadores, invejosos. Todos estes bons
pais, estas esposas fiéis, estes filhos devotados, estas jovens castas, estes
honestos comerciantes, estes homens e mulheres ditos irrepreensíveis haviam
roubado, trapaceado e praticado os mais abomináveis atos.
Escreviam
todos ao mesmo tempo, no limiar de sua morada eterna, a cruel, a terrível, a
santa verdade que todos os vivos sobre a terra ignoravam ou fingiam ignorar.
Pensei
que ela também havia escrito algo em seu túmulo. E agora, correndo
destemidamente em meio aos ataúdes entreabertos, ente os cadáveres e
esqueletos, corri para ela, certo de que a encontraria imediatamente.
Eu
a reconheci de longe, mesmo sem vislumbrar-lhe o rosto envolto na mortalha.
E,
na cruz de mármore, onde se lia anteriormente: “Amou, foi amada e morreu”,
agora eu via:
“Tendo
saído para trair o seu amante num dia de chuva, adoeceu e morreu”.
Parece
que me encontraram, ao amanhecer, inconsciente, junto a um túmulo.
31
de maio de 1887
clássico.
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