JUDAS - Conto Clássico de Horror - Miguel Sawa


JUDAS

Miguel Sawa

(1866-1910)

Tradução: Paulo Soriano

Revisão: Rogério Silvério de Farias

 

Eu estava no museu, a contemplar, extasiado, o belo quadro de Van Dyck, “O Beijo de Judas”.

De repente, ouvi uma voz atrás de mim, uma voz calma e lúgubre, que me fez estremecer de espanto.

— É verdade, cavalheiro, que eu tenho alguma semelhança física com o discípulo traidor do Filho de Deus?

Voltei-me para ele, assustado.

Quem me falava era um homem de alta estatura, vestido completamente de negro, o cabelo e a barba de cor de açafrão, os olhos saltados, a pele flácida, amarelada pela icterícia...

— E veja o senhor o que são as coincidências — acrescentou o desconhecido. — Eu também me chamo Judas, assim como aquele que vendeu Cristo.

E, sorrindo tristemente, disse:

— Mas não desconfie o senhor de mim.... Acredite que, no fundo, eu sou um bom homem.

E, segurando o meu braço, como se fôssemos amigos de toda a vida, convidou-me a tomar uma tulipa de cerveja.

Eu o segui maquinalmente, entre assustado e curioso.

No café, o estranho personagem me contou a sua história ente uma tulipa e outra de cerveja, falando sempre com aquela voz calma e lúgubre, que me dava arrepios.  Não tinha nacionalidade conhecida; era judeu e havia nascido de qualquer mãe e de qualquer pai, não sabia onde. Vivia sozinho no mundo, sem mulher, sem filhos, sem amigos. Praticava a medicina, embora não fosse médico.

— Isto me tem proporcionado o prazer — disse sorrindo — de matar muita gente com toda impunidade.

Havia viajado muito. Viajava constantemente. Tinha quase tantos anos quanto a Humanidade. A vida o entediava, e certa vez tentara suicidar-se, enforcando-se numa árvore.

— Já lhe disse — concluiu — que não tenho amigos. Os homens me inspiram um profundo desprezo. Ou melhor, ódio. Mas o senhor, não sei por quê, me parece simpático. Tem a cara de homem bom e inteligente. Assim como eu me pareço com o discípulo traidor, você se parece com o Mestre sublime.  E preciso, para salvar-me, sentir alguma nobre afeição, amar alguém, ter pelo menos um amigo...

E, tomando-me as mãos, que estreitava nervosamente entre as suas, geladas como as de um morto, acrescentou:

— Sim... ainda que você não queira, eu serei seu amigo, seu irmão... A regeneração do mundo está no amor! Passei a vida inteira odiando o Homem... Se chegasse a amar, seria salvo!

E disse, em voz baixa, como se falasse consigo mesmo:

— Dezenove séculos de luta já é suficiente castigo!... Oh, Pai de todos nós, tende piedade de mim!

Dezenove séculos! Pensei que aquele homem estava louco, e para pôr fim àquela conversa estranha, ofereci-lhe, em termos vulgares, minha amizade, e dele me despedi, prometendo-lhe voltar, passados quatro ou cinco dias, àquele café onde havíamos celebrado a nossa primeira entrevista.

Dom Judas estreitou, comovido, as minhas mãos, procurou abraçar-me e me rogou, com frases da maior cortesia, que pagasse a cerveja que havíamos bebido, “porque — acresceu tristemente — meu dinheiro é amaldiçoado e não é aceito em parte alguma”.

 

* * *

Desde aquele funesto dia, dom Judas foi meu amigo, meu camarada, meu companheiro de todas as horas, meu irmão...

E desde então começaram as minhas desgraças. Dom Judas devia possuir um dom sinistro, aquilo que os italianos chamam de jettatura[1], e viver com ele era viver em trágica companhia do infortúnio e da dor.

O quão padeci nos três meses em que esse ser maldito foi meu amigo!

Eu sou muito fraco de caráter, e Dom Judas havia se apoderado de tal modo de minha vontade que eu não me atrevia a fazer nada sem o seu consentimento ou conselho.

Por imperativo comando seu, coloquei meu modesto capital em ações da empresa “A Honradez”, mas a tal companhia faliu logo depois, deixando-me na miséria.

Sob os seus cuidados morreram, no entretempo de sete dias, minha mãe, minha mulher, meus quatro filhos, atacados por uma estranha enfermidade, para a qual os médicos não encontravam remédio.

Dom Judas — que, como já disse antes, praticava a medicina — assistiu, solícito, os meus enfermos, cuidando deles com carinho de mãe, atuando à guisa de médico e de enfermeiro. À morte de meu último filho, Dom Judas, completamente desesperado — mais desesperado em aparência do que eu —, arrojou-se em meus braços, declarando-se responsável por todas as desgraças que me aconteciam.

— Eu sou um ser funesto... eu sou o gênio do mal... Sou maldito de Deus e dos homens... Queria regenerar-me pelo amor e tenho sido seu amigo leal, seu irmão... Mas eu lhe trouxe a desgraça, trouxe a desgraça a esta casa. Deus não me perdoa! Por minha causa, você perdeu a sua mãe, sua mulher, seus filhos. Por minha causa, está arruinado. Ninguém pode ser feliz em meu amor. A cólera de Jeová persegue implacavelmente todos aqueles a quem amo.

E chorava, e rugia e arrancava furiosamente sólidas mechas de sua barba ruiva.

Louco de angústia, perguntei-lhe:

— Mas, então, quem é você?

Ele pôs-se a rir. Que risada, a sua! Assim devem rir os diabos, se é que riem.

— Imbecil! Não me reconheceu? Eu sou a traição, o engano, a perfídia, a maldade... Eu sou Judas, aquele que vendeu Cristo por trinta moedas.

E, agitando em suas mãos uma bolsa, disse:

— Aqui está o preço de minha traição! Por isso lhe dizia que meu dinheiro era amaldiçoado, recusado em toda parte.

Voltou a rir com a sua risada infernal de desesperado.

— Olhe o meu pescoço... Ele ainda conserva a marca da corda com que tentei me enforcar, arrependido de minha traição.  Mas — desgraçado que sou! — estou condenado a viver para sempre!

— Não! — gritei, louco. — Finalmente chegou sua última hora. Você morrerá pelas minhas mãos, assassino de minha mãe, assassino de minha mulher, assassino de meus filhos!

— Sim! — uivou Judas. — Mate-me, por caridade!

Furioso, atirei-me contra ele, apertando-lhe o pescoço com ambas as mãos.

E apertei demoradamente.

Por fim, deixei-o cair ao chão, sem vida, morto...

E por haver livrado a humanidade desse homem maldito, por haver matado Judas, o traidor, trouxeram-me para cá, para este manicômio...


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[1] Mau-olhado.




 

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