A CABEÇA CORTADA - Conto Clássico de Terror - H. G. Wells
A
CABEÇA CORTADA
H.
G. Wells
(1866
– 1946)
Foi
em uma aldeia pantanosa, sobre a laguna, por detrás da península Turner, que ocorreu
o primeiro encontro entre Pollock e o feiticeiro porroh[1].
As mulheres desse país são célebres por sua beleza: elas são gallinas[2]
e têm nas veias uma gota de sangue europeu que data do tempo de Vasco da Gama e
dos ingleses negociantes de escravos. O porroh também tinha em si
vestígios de descendência caucásica.
Não
é bem curioso pensar que alguns dentre nós podem ter primos afastados, que
andam a cavalo com os sofas, ou comem carne humana lá na ilha Sherboro[3]?
Em
todo o caso, o porroh feriu a mulher no coração — absolutamente como se
ele fosse um vulgar italiano —, e por pouco atingia também Pollock. Este,
servindo-se do revólver para aparar a investida que era dirigida contra o seu
peito, fez voar o punhal do adversário e meteu-lhe uma bala na mão.
Atirou
de novo, mas sem resultado, conseguindo apenas produzir um rombo imprevisto na
parede da cabana. O porroh abaixou-se no limiar e lançou por sob o braço
um olhar a Pollock. Pollock nada mais conseguiu senão ver à luz do Sol aquele rosto
invertido. Depois, ficou sozinho, doente e transtornado pela emoção do fato, na
semiescuridão da choça. Tudo isto se havia passado em menos tempo do que o que
seria necessário para contá-lo.
A
mulher estava bem morta. Depois de se inteirar disso, Pollock se dirigiu para a
porta e olhou para fora. O Sol iluminava tudo com um brilho deslumbrante. Uns
seis carregadores da expedição conservavam-se agrupados perto das cabanas
verdes que ocupavam, todos com os olhos fixos nele, imaginando o que poderiam
significar aqueles tiros. Por detrás daquele pequeno grupo de homens havia uma
vasta extensão de lama negra e fétida e, ao longo do rio, um tapete verde de
folhas de plantas aquáticas; depois, extensões de água estagnada. Para além do
rio, apresentavam-se os arbustos, indistintos, através da névoa azulada. Não
havia o menor indício de agitação na aldeia, nas casas achatadas, cujo recinto
era apenas visível por cima dos caniços.
Pollock
saiu da cabana cautelosamente e dirigiu-se para o rio, olhando frequentemente
para trás e aportando o revólver com mão nervosa; mas o porroh tinha-se
posto a salvo.
Um
dos seus homens veio a seu encontro e, aproximando-se, mostrou-lhe com o dedo a
moita que havia atrás da cabana, e no meio da qual o porroh tinha
desaparecido. Pollock teve a impressão desagradável de que se havia
comprometido como um tolo. Ele experimentava uma raiva invencível ao ver a
feição que as coisas tinham tomado. Ao mesmo tempo, desejava falar com
Waterhouse — com o moral, o exemplar, o prudente Waterhouse —, que, com toda a
certeza, tomaria as coisas a sério.
Ele
maldizia amargamente o seu destino, Waterhouse, e, principalmente, a costa ocidental
da África. Estava farto da expedição até a ponta dos cabelos. E, no fundo do
seu espírito, só havia uma inquietação, um cuidado: naquele amplo horizonte
visível, onde poderia estar o porroh?
Talvez
isto possa parecer chocante, mas Pollock não se sentia de modo algum
transtornado pelo atentado que acabava de ser cometido. Tinha visto tantas
brutalidades no decurso daqueles três últimos meses, tantas mulheres mortas
violentamente, tantas choças incendiadas, tantos cadáveres ressecados, ao subir
o rio Kittam na passagem dos cavaleiros sofas, que já tinha os
sentimentos embotados. O que o perturbava era a certeza de que aquele
aborrecimento estava ainda apenas no princípio.
Recebeu
com uma praga furiosa o nativo que se dirigia para ele a fim de lhe fazer uma
pergunta e entrou na tenda onde, debaixo das laranjeiras, se achava deitado
Waterhouse. Estava naquele momento no estado de irritação de uma criança que
vai enfrentar uma severa repreensão.
Waterhouse
estava ainda dormindo sob a ação da última dose de Clorodina[4].
Pollock sentou-se perto dele sobre uma mala e, acendendo um cachimbo, esperou o
seu despertar. Ao redor deles viam-se esparsas as vasilhas de barro e as armas
que Waterhouse havia coletado do povo mendi[5], e
que já havia principiado a empacotar para a viagem que ia fazer de canoa até Sulima[6].
Dentro
em pouco, Waterhouse despertou e, depois de espreguiçar-se, declarou que se
sentia completamente restabelecido. Pollock deu-lhe um pouco de chá. Depois do
chá, contou-lhe os incidentes da tarde, não sem ter recorrido a vários
preliminares, a fim de não entrar direto no assunto. Waterhouse tomou aquilo
muito mais a sério do que Pollock havia previsto: não se limitou a desaprovar,
fez várias censuras, tornou-se descortês.
—
Você é um desses idiotas infernais — exclamou — que não consideram um nativo
africano como um ente humano! Não posso ficar doente um dia sem que se meta em
algum acontecimento funesto. É esta a terceira vez, no espaço de um mês, que
lhe acontece desavir-se com um nativo, e, desta vez, muito seriamente. E, ainda
por cima, com um porroh! E, no entanto, eles bem se mostraram revoltados
contra aquela sua grande parvoíce de escrever o seu nome sobre aquele ídolo!
Eles são os homens mais vingativos que existem! Por sua causa, Pollock, a
civilização é obrigada a corar de vergonha. E dizer que você é oriundo de uma
família honesta! Se algum dia me acontecer encontrar embaraços provocados por
criatura viciosa e estúpida como você novamente...
—
Vamos, acalme-se — rosnou Pollock, com aquele tom que sempre tinha exasperado
Waterhouse. —Acalme-se.
Ao
ouvir isto, Waterhouse emudeceu e levantou-se bruscamente.
—
Olhe aqui, Pollock! — disse ele, depois de ter feito um violento esforço para
recobrar o fôlego. — Você deve voltar para a Inglaterra. Seria impossível mantê-lo
aqui por mais tempo. Por sua causa, estou doente desta maneira.
—
Não se inquiete por isso — respondeu-lhe Pollock, fixando-o bem de frente. —
Estou pronto a ir-me embora.
Waterhouse
recuperou a calma e tornou a sentar-se.
—
Muito bem — acrescentou ele. — Não quero discussão, bem o compreende, Pollock.
Mas é sobremodo desagradável a uma pessoa ver os seus planos destruídos por uma
história semelhante. Irei a Sulima providenciar o seu embarque.
—
Não vale a pena. Posso partir sem isso. Daqui até lá não é longe.
—
Não é longe? Você não conhece os porrohs.
—
Como poderia eu saber que aquela mulher pertencia a um feiticeiro porroh?
— respondeu com amargura Pollock.
—
Mas pertencia. E justamente a um bruxo! E, quanto a isso, nada se pode fazer...
Partir sozinho, coitado! Penso com horror no que eles poderiam fazer com você!
Parece que não compreende que aqueles abomináveis feiticeiros têm nas palmas
das mãos todo o país. Eles representam, conglobadas, a lei, a religião,
política, a medicina, a magia etc. Eles designam os chefes: a tirania da
Inquisição nada é comparada com o despotismo deles. Provavelmente, o homem porá
no seu encalço Awajale, chefe da tribo. É realmente uma felicidade que os
nossos carregadores sejam mendis. Vamos ter que transportar para outro
local nosso escritório. Diabos, Pollock! Evidentemente, é necessário que você
parta, e sem demora.
Waterhouse
pareceu absorver-se em reflexões desagradáveis. Daí a pouco, levantando-se,
tomou a carabina.
—
No seu lugar, eu ficaria escondido, durante algum tempo — acrescentou, olhando
para trás, enquanto saía. — Vou ver o que se diz pela vizinhança.
Pollock
ficou na barraca, sentado e imerso em profunda meditação.
—
Não fui feito para esta vida — disse ele de si para consigo, com expressão saudosa,
ao mesmo tempo que enchia o cachimbo. — Daqui a pouco, estarei em Londres ou em
Paris, o que é preferível.
O
seu olhar caiu sobre a caixa lacrada, dentro da qual Waterhouse tinha posto as
flechas envenenadas e sem penas, que eles haviam comprado no país dos mendis.
—
Eu bem quisera ter metido uma bala fatal naquele bruxo infeliz — disse Pollock
com malevolência.
Waterhouse
voltou, após uma ausência bastante longa. Não vinha disposto a confidências, embora
Pollock lhe fizesse não poucas perguntas. Segundo parecia, o porroh era
um membro importante daquela sociedade secreta. A aldeia interessava-se pela
aventura, mas não estava em atitude ameaçadora. Não havia dúvida nenhuma de que
o feiticeiro se tinha retirado para a caça. Era um grande feiticeiro.
—
É fora de toda a dúvida que ele está tramando algo — disse Waterhouse.
Depois
tornou a cair em silêncio.
—
Mas, o que ele pode fazer? — perguntou Pollock, absorto.
—
É preciso tirá-lo disto, Pollock. Estão mesmo tramando alguma coisa; de outro
modo, não estaria tudo tão tranquilo — retorquiu Waterhouse, depois de uma
pausa.
Pollock
desejava saber qual podia ser o perigo.
—
Estão dançando, dando voltas no interior de um círculo formado de crânios humanos
— respondeu Waterhouse. — Estão mexendo qualquer coisa malcheirosa dentro de
uma caçarola de cobre.
Pollock
pedia detalhes. Waterhouse mantinha-se lacônico, e o seu interlocutor insistia.
Waterhouse perdeu a paciência.
—
Com que cargas d’água posso saber? — respondeu ele a uma nova pergunta, a
vigésima, talvez, que Pollock lhe dirigia sobre o que podia estar fazendo o feiticeiro
porroh.
—
Ele tentou matá-lo logo, ali mesmo, dentro da choça. Agora, imagino que deve
ter recorrido a alguma tentativa mais calculada. Mas você há de vê-lo mais
depressa do que deseja. Não tenho necessidade de auxiliá-lo a ficar nervoso. É
possível que tudo isto, afinal, não tenha fundamento nenhum.
Depois
do anoitecer, estando ambos sentados perto do fogo, Pollock tentou novamente
interrogar Waterhouse sobre os costumes dos porrohs.
—
É melhor que nos deitemos — replicou Waterhouse, quando compreendeu aonde
Pollock desejava chegar. — Temos que partir cedo amanhã. Pode ser que você
necessite de todo o seu sangue-frio.
—
Mas como acha que ele agirá?
—
Posso acaso sabê-lo? Esta gente é multo caprichosa. Tem uma quantidade de
subterfúgios impossíveis de se prever. Será melhor informar-se com Shakespeare,
aquele enorme diabo cor de cobre...
Viu-se
então um clarão, acompanhado de um estampido, na escuridão que envolvia as
choças. E uma bala veio, sibilando, passar bom rente à cabeça de Pollock. Isto,
pelo menos, era sobremodo eloquente.
Homens
negros e mestiços, sentados a conversar em volta da fogueira, puseram-se em pé
e alguns deles atiraram no meio do escuro.
—
É melhor entrar em uma das choças — disse tranquilamente Waterhouse, ainda sentado
e nem um pouco comovido.
Pollock
ficou em pé ao lado do fogo e puxou o revólver. Não tinha medo de entrar em
combate. Mas um homem tem na noite a melhor proteção possível.
Conformando-se
com o prudente aviso de Waterhouse, penetrou na tenda e deitou-se.
Por
muito leve que fosse o sou sono, ele foi perturbado
por sonhos, pesadelos variados, nos quais lhe aparecia sobretudo o feiticeiro porroh,
tal qual ele o tinha visto no limiar da cabana, olhando por baixo do braço e
com o rosto invertido. Era esquisito que aquela impressão de um instante o
tivesse afetado tão profundamente. Além disso, umas dores singulares torturavam-no
em todos os membros.
No
meio da névoa alvacenta do alvorecer, quando cuidavam do transporte das bagagens
para os barcos, uma flecha veio inopinadamente cravar-se no chão, perto do pé
de Pollock. Os ajudantes simularam sondar o maciço, mas não capturaram ninguém.
Em
consequência desses dois incidentes, alguns membros da expedição quiseram
abandonar Pollock aos seus próprios recursos, e este, pela primeira vez na sua
vida, pensou em se aproximar dos nativos. Waterhouse entrou num barco. A
despeito do seu desejo amistoso de conversar com ele, Pollock teve que embarcar
em outro. Deixaram-no sozinho, à proa da embarcação, e ele passou pelo grande
dissabor de obrigar homens que o detestavam a ocupar o meio exato do rio, a cem
metros pelo menos de cada uma das margens. Entretanto, mandou chamar à proa
Shakespeare, o mestiço de Freetown, e ordenou-lhe que falasse sobre os porrohs.
Shakespeare, que não tinha conseguido deixar Pollock sozinho, prestou-se à sua
curiosidade com muita tranquilidade e boa vontade.
O
dia passou-se assim. O barco deslizava mansamente sobre o espelho da corrente,
por entre figueiras aquáticas, troncos de arvores, papiros, ramos do
couve-palmista, correndo à esquerda do mangue escuro, através do qual se podia
ouvir de vez em quando os bramidos das vagas do oceano. Shakespeare falou, no
seu inglês cheio de asperezas amortecidas, de todos os recursos que os perrohs
podiam empregar. Disse a maneira como, em consequência dos seus malefícios, os
homens ficavam secos; como eles podiam provocar sonhos e aparições diabólicas;
como eles torturaram e fizeram perecer os filhos de Ijibu; como raptaram de Sulima
um negociante branco acusado de ter maltratado um dos da sua seita, e qual o
aspecto que apresentava o cadáver quando o encontraram. Após cada uma daquelas
narrativas, Pollock maldizia consigo mesmo aquela ausência de um representante
das missões, que autorizava semelhantes atrocidades, e a inércia do governo
britânico que se fazia sentir em toda aquela barbárie de Serra Leoa.
Chegaram
ao lago de Kasé ao anoitecer e, antes de levantarem acampamento para a noite em
uma ilhota, foi preciso expulsar uns vinte crocodilos que a infestavam.
No
dia seguinte, a expedição chegou a Sulima: sentiram a brisa do mar. Pollock,
porém, teve que se demorar ali durante cinco dias antes de poder continuar a
viagem para Freetown[7].
Waterhouse, considerando que ele estava em relativa segurança na zona de
influência dos brancos de Freetown, deixou-o e voltou com a sua escolta,
tomando o rumo de Gbemma.
Pollock
travou com um certo Pereira, único negociante branco residente em Sulima, as
mais amistosas relações — tão amistosas, na verdade, que não eles se separavam
mais. Pereira era um judeu português que tinha vivido na Inglaterra, e
considerava como um grande favor a amizade dos ingleses.
Durante
dois dias nada de extraordinário aconteceu. Quase sem interrupção, Pollock e
Pereira jogaram uma partida de imperial, único jogo que ambos conheciam.
Pollock endividou-se. Na tarde do segundo dia, ele teve a desagradável surpresa
de saber da chegada do porroh a Sulima por uma ferida que uma ponta de
ferro muito afiada lhe fez no ombro.
Era
um projétil arremessado de longe, o qual, antes de ferir, havia perdido muito de
sua força. Nem por isso ele deixava de representar um aviso muito
significativo. Pollock passou toda a noite sentado na rede, com o revolver em
punho e, no dia seguinte, de manhã, fez, com as devidas restrições, algumas
confidencias ao seu amigo anglo-português.
Pereira
tomou o caso a sério, já que conhecia a fundo os costumes dos nativos.
—
É uma questão pessoal, compreenda isto bem. Trata-se de uma desforra.
Evidentemente, ele sente-se urgido pela sua próxima ausência do país. Nenhum
dos naturais ou dos mestiços vai querer meter-se no caso, a menos que o senhor
não os associe aos seus interesses. Se o senhor chegasse a surpreendê-lo de
imprevisto, poderia matá-lo. Verdade é que ele também poderia alvejá-lo. Mas
deve-se contar com aquela magia diabólica — acrescentou Pereira. — Sem dúvida,
eu não creio nela. Tudo isto não é mais que superstição. O pior é pensar que,
esteja o senhor onde estiver, há um aborígine que passa a noite ao relento,
dançando em torno de uma fogueira para lhe enviar sonhos maus. Não tem tido
alguns sonhos maus?
—
Tenho, respondeu Pollock. — Continuo a ver a cabeça do bandido em posição
invertida, fazendo-me caretas e mostrando-me os dentes — como fazia na cabana —,
aproximando-se de mim, afastando-se e tornando a voltar. Não é motivo para
temer, mas, nem por isso, deixo de ficar gelado de horror durante o sono. Que
coisa esquisita são os sonhos! Reconheço perfeitamente que é um sonho, mas não
posso despertar para livrar-me dele.
—
Simples questão de imaginação — disse Pereira. — Os meus nativos, porém,
pretendem que os porrohs podem enviar serpentes às suas vítimas. Não viu
há pouco tempo algumas serpentes?
—
Uma só. Matei-a esta manhã, no chão, perto da minha rede. Quase lhe pus o pé em
cima, ao levantar-me.
—
Ah! — exclamou Pereira.
Depois,
em tom tranquilizador:
—
É claro que isso não passa de uma simples coincidência. Não obstante, é mister
acautelar-se. Ainda sente dores nos ossos?
—
Eu julgava que elas eram causadas pela febre.
—
Sim, provavelmente. Quando principiaram?
Então
Pollock lembrou-se de que as havia sentido pela primeira vez na noite que se
seguiu à luta dentro da cabana.
—
Sou de opinião — disse Pereira — que ele não deseja matá-lo, pelo menos por
enquanto. Ouvi dizer que o fim deles é afligir e sobressaltar um homem, com os
seus malefícios, seus falsos alarmes, com várias dores, sonhos maus etc., até
que ele se canse da vida... Isto são meras lendas, o senhor bem compreende. Não
se inquiete com essas coisas; mas eu queria saber o que ele há inventar agora.
—
Terei que fazer alguma coisa antes que ele — disse Pollock, olhando com ar
melancólico para as cartas que Pereira estava colocando sobre a mesa. — A minha
dignidade não me permite ser provocado por toda parte, ser constantemente o
alvo de um inimigo. É uma existência odiosa, esta minha. Desejaria saber se
essa magia dos porrohs seria capaz de mudar a sorte de um jogador.
E
olhava para o parceiro com ar desconfiado.
—
Sim, sem dúvida — respondeu vivamente Pereira, batendo nas cartas com afetação.
— Esta gente é admirável.
Naquele
dia, Pollock matou duas serpentes na sua rede. Houve também um extraordinário
acréscimo de formigas vermelhas, de que o lugar estava repleto. Todos esses
contratempos decidiram-no a conversar sobre a sua história com um certo mendi,
pronto para tudo, a quem ele havia sondado em outros tempos. Esse fiel mendi,
tirando do bolso um pequeno punhal de aço, indicou-lhe no pescoço o lugar onde haveria
de ferir o inimigo: era de dar calafrios. Como recompensa, em razão de umas
certas considerações, Pollock prometeu-lhe uma carabina de dois tiros com
platina de luxo.
Depois
de anoitecer, enquanto Pollock e Pereira jogavam cartas, o rude mendi entrou,
trazendo qualquer coisa dentro de um pedaço de pano ensopado de sangue.
—
Aqui não! — bradou o inglês precipitadamente. — Aqui não!
Mas
não pôde chegar a tempo de impedir o homem, que tinha pressa de exigir de
Pollock a execução do seu contrato, de abrir o pano e atirar sobre a mesa a
cabeça do porroh. Aquela cabeça saltou e caiu ao chão, deixando sobre as
cartas um rastro vermelho; depois, rolou para um canto, invertida, e com os
olhos ferozes voltados para Pollock.
Pereira
fez um movimento rápido quando o objeto caiu entre as cartas de baralho. Tomado
de emoção, ele principiou a falar em português. Quanto ao mendi, esse
estava inclinado, tendo na mão o pedaço de pano ensanguentado.
—
A carabina! — disse ele.
Pollock
voltou-se para a cabeça, que estava num canto. Tinha exatamente a mesma
expressão que ele vira em seus sonhos. Ao olhar para ela, parecia-lhe que
qualquer coisa rebentava no interior de seu próprio cérebro. Nesse momento,
Pereira tornou a achar o seu inglês:
—
O senhor mandou matá-lo? O senhor mesmo não o matou?
—
E por que eu deveria? — disse Pollock.
—
Jamais poderá livrar-se dela!
—
Não poderei livrar-me de quê? — disse Pollock.
—
E todas estas cartas do baralho estão manchadas!
—
Que quer dizer com isso? — disse Pollock.
—
É preciso mandar-me um outro baralho de Freetown. O senhor há de encontrá-lo lá
à venda.
—
Mas o que você quis dizer com "livrar-se dela"?
—
Oh! É apenas uma superstição, não sei mais... Os nativos dizem que, se o feiticeiro...
pois ele era feiticeiro... Mas, é inútil... O senhor devia entender-se com o porroh,
ou então matá-lo por suas próprias mãos. Isto é uma coisa estúpida.
Pollock
praguejou consigo mesmo, ao mesmo tempo que deitava os olhos para a cabeça
decepada, que estava a um canto.
—
Não suporto esse olhar — disse ele.
Depois,
repentinamente, precipitando-se sobre a cabeça, empurrou-a com o pé. Ela rolou
alguns metros e parou novamente, na mesma posição, invertida, sempre olhando
para Pollock.
—
Ele está hediondo! — declarou o anglo-português. — Extraordinariamente hediondo!
Eles fazem esses cortes no rosto das vítimas com umas faquinhas.
Pollock
teria chutado a cabeça novamente se o mendi não o tocasse no braço.
—
E a carabina? — disse este, olhando de frente para ele, com expressão feroz.
—
Eu lhe darei duas, se você levar daqui aquele horror! — vociferou Pollock.
O
mendi fez um sinal negativo, e declarou que reclamava uma só carabina,
que lhe era devida então, e que ficaria muito agradecido por ela. Nem por pedido,
nem por ameaça, pôde Pollock obter dele outra coisa. Pereira tinha justamente
uma carabina para vender com um lucro de 300 por cento. Depois de recebê-la, o
homem foi embora imediatamente. Mas, malgrado contra a sua vontade, os olhos de
Pollock voltaram-se para o objeto sinistro que se achava no canto do aposento.
—
É esquisito que aquela cabeça se conserve sempre em posição invertida — disse
Pereira, com um riso forçado. — É preciso que ela tenha um cérebro muito pesado.
Parece uma dessas garrafinhas que ficam sempre em pé por causa do chumbo que
têm no fundo. Leve-a consigo, quando for embora. Podia até levá-la desde já...
As cartas estão completamente sujas. Há um homem que vende cartas em
Freetown... O cômodo está imundo, num estado lastimável... O senhor devia tê-lo
morto com as suas próprias mãos.
Nesse
momento, Pollock fez um esforço sobre si mesmo e apanhou
a cabeça. Suspendeu-a ao gancho da lanterna que havia no meio do teto e
abriu-lhe uma cova imediatamente. Durante o trabalho, ele tinha ideia de que a
havia pendurado pelos cabelos, mas certamente era um engano. Quando voltou para
buscá-la, achou-a invertida, isto é, pendurada pelo pescoço.
Pollock
enterrou-a antes do pôr do Sol, ao norte da cabana que ocupava, de modo a não
ser obrigado a passar perto da cova, quando, à noite, voltasse da casa de
Pereira. Antes de ir deitar-se, ele matou mais duas serpentes.
Durante
a noite, despertou em sobressalto: ouvia pequenas pancadas reiteradas, como que
algo arranhando o chão. Levantou-se sem ruído e procurou o revólver embaixo do
travesseiro. Seguiu-se um grunhido indistinto. Pollock disparou a arma a esmo
no melo da escuridão. Ouviu-se um rumor, depois uma coisa preta atravessou
rapidamente por diante da porta...
—
É um cão — disse consigo Pollock e tornou a deitar-se.
Logo
ao romper do dia, tornou a despertar, sentindo uma impressão inexplicável de inquietação.
Voltara-lhe nas costas uma dor vaga. Durante algum tempo, ele ficou deitado,
seguindo com os olhos as formigas vermelhas que circulavam no teto. Depois,
tendo clareado o dia, olhou por cima da rede e viu no chão um objeto escuro:
teve um sobressalto tão violento que a rede virou e ele caiu no chão.
Quando
deu por si, estava deitado a cerca de um metro da cabeça cortada do feiticeiro porroh:
ela havia sido desenterrada pelo cão e apresentava o nariz cruelmente
retalhado. As formigas e as moscas disputavam-na encarniçadamente. Coisa
singular: a cabeça estava com o pescoço voltado para cima, e os olhos
invertidos tinham a mesma expressão diabólica.
Pollock
sentou-se no chão. Paralisado, contemplou por alguns segundos aquele espetáculo
horrível. Depois, levantou-se. Deu uma volta ao redor do objeto, evitando
aproximar-se dele e saiu da cabana. A luz deslumbrante do Sol nascente, a viva
agitação das plantas antes do sopro da brisa terral, a cova vazia com os sinais
das patas do cão, tudo isto aliviou o peso que ele tinha sobre o estômago.
Contou o caso a Pereira, como uma boa história, uma boa história que se conta
com um calafrio.
—
O senhor fez mal em espantar o cão — respondeu o outro, com um bom humor mal
disfarçado.
Os
dois dias que se seguiram à espera da embarcação foram empregados por Pollock a
tomar disposições mais sérias em relação ao que lhe pertencia. Dominando a
repugnância que experimentava em tocar naquela cabeça, ele desceu à embocadura
do rio e atirou-a ao mar. Mas, por uma espécie de milagre, ela escapou aos
crocodilos e foi impelida pela maré para junto do lodo, perto da entrada do rio.
Um inteligente mestiço árabe apanhou-a e foi oferecê-la, como objeto de curiosidade,
a Pollock e a Pereira exatamente ao cair da noite. O indígena mostrava-lhe a
cabeça aos últimos lampejos do crepúsculo, e fazia-lhe preços cada vez mais
baixos. Finalmente, desanimado pelo horror evidente que àqueles dois brancos
tão prudentes causava o seu achado, retirou-se. Mas, ao passar por diante da
cabana de Pollock, atirou ao chão o seu fardo para que Pollock o encontrasse
ali na manhã do dia seguinte.
O
efeito não falhou: Pollock foi tomado de uma espécie de furor. Resolveu queimar
aquele objeto de horror. Saiu logo ao romper do dia e, antes do calor do Sol,
fez uma grande fogueira de espinheiros. Foi interrompido naquela ocupação pelo
apito da pequena barca, que fazia o serviço entre Monróvia[8] e
Bathurts[9],
e que vinha chegando pelo canal.
—
Ah, graças a Deus! — exclamou Pollock, com profundo fervor, ocorrendo-lhe à ideia
o significado daquele chamado.
Com
as mãos trêmulas, acendeu apressadamente o monte de lenha, atirou em cima dele
a maldita cabeça e afastou-se para preparar a mala e despedir-se de Pereira.
Naquela
tarde, foi com uma sensação de infinito alívio que Pollock olhou para a praia
de Sulima, lisa e pantanosa, que ia diminuindo progressivamente ao longe. O
corte na longa linha branca, onde rebentavam as vagas, tornava-se mais e mais
estreito. Parecia-lhe estar ao abrigo de tudo e separado do seu tormento. Pouco
a pouco, o sentimento de susto e de inquietação principiava a desvanecer-se. Em
Sulima, a sua fé na malevolência do porroh, no seu poder misterioso,
tinha-se dissipado no ar, por assim dizer; a sua apreensão havia sido profunda,
empolgante, ameaçadora, terrível, ao passo que agora o domínio do porroh
não era manifestamente mais que uma pequena lista de terra, um pequeno ponto
entre o oceano e os planaltos dos mendis, coroados de nuvens azuladas.
—
Adeus, porroh! — exclamou Pollock. — Adeus, e certamente não "até a
vista".
O
capitão do navio veio encostar-se junto dele ao corrimão, cumprimentou-o,
cuspiu na escuma da esteira, na atitude mais familiar do mundo.
—
Apanhei na praia uma curiosidade bem singular — disse o capitão. — É uma coisa
cujo exemplo nunca vi por estas paragens.
—
Que vem a ser ela? — perguntou Pollcok.
—
Uma cabeça em posição invertida.
—
Hein?
—
Sim, uma cabeça chamuscada. A cabeça de um desses porrohs, crivada de
talhes feitos à faca. O que foi? Que é que o senhor tem? Nada? Eu não julguei
que o senhor fosse um rapaz tão nervoso. Está ficando verde! Diabos! Então, o que
é isto? Meu Deus, como o senhor ficou esquisito!... Pois bem. A cabeça, de que
eu lhe estava falando, é um objeto curioso em um sentido. Eu a conservo com
algumas serpentes, dentro de um recipiente com álcool que tenho no meu
camarote, reservado para coisas desse gênero, e quero que me enforquem se ela
não flutua em posição invertida! Que diz disto?
Pollock
deu um grito selvagem, depois levou as mãos à cabeça e correu na direção do
tambor da roda com o intuito confuso de saltar ao mar; mas, caindo em si,
voltou para junto do capitão.
—
Aqui! — bradou este. — Jack, Philips, agarrem este homem. Afaste-se! Fique onde
está! Qual é o seu problema? Você está louco?
Pollock
levou novamente a mão à cabeça. Não havia uma boa explicação a fornecer.
—
Sim, creio — disse ele — que, de vez era quando, fico bem perto de me tornar
louco. É uma dor que sinto e que me aparece de repente. Espero que me desculpe.
Lívido,
alagado em suor, ele compreendeu subitamente que se havia exposto a que
duvidassem de sua sanidade. Forçou-se a restabelecer a confiança do capitão,
respondendo às suas perguntas benévolas, tomando nota dos seus conselhos,
tentando mesmo guardar algum tempo dentro da boca um gole de aguardente e — o
assunto veio a propósito — multiplicando as interrogações sobre o comércio das
curiosidades que o capitão exercia por sua conta própria. Este fez
detalhadamente a descrição da famosa cabeça. Pollock lutava constantemente por escapar
a esta ideia ridícula — que a embarcação era transparente como vidro e que via
distintamente a cabeça em posição invertida, olhando para ele do camarote situado
sob os seus próprios pés.
Pollock
passou naquele navio umas horas ainda piores talvez do que ele tinha conhecido
em Sulima. Passava todo o dia em sobressaltos, a lutar contra a sensação
intensa que experimentava com a presença próxima da horrível cabeça, que lhe
povoava o cérebro de ideias sinistras. À noite, voltava-lhe o antigo pesadelo,
até que, à custa de um violento esforço, ele conseguiu despertar, gelado pelo
terror, com um grito sufocado a comprimir-lhe a garganta.
Ele
deixou a verdadeira cabeça para trás, tomando outro navio para Tenerife[10],
mas não conseguiu desembaraçar-se das suas visões, nem das dores surdas que
sentia nos ossos. Em Tenerife, passou para um navio da linha do Cabo. Mas a
cabeça decepada continuava a persegui-lo. Ele jogou, tentou algumas partidas de
xadrez, leu vários livros; conheceu mesmo os perigos da embriaguez. Cada vez
que uma sombra escura, que um objeto preto e redondo lhe aparecia à vista, ele
buscava distinguir nele a forma da cabeça, e a via efetivamente. Ele
principiava a perceber claramente que a sua situação o traía; não obstante, o
navio em que ele navegava, os companheiros de viagem, os marinheiros, o mar sem
limites, tudo lhe parecia, às vezes, fazer parte de uma fantasmagoria que se interpunha
entre ele e um mundo de verdadeiros horrores, sem o ocultar por completo: o porroh,
passando o seu semblante diabólico através daquela cortina, era a única
realidade incontestável. Pollock erguia-se então, sentia o contato de uma coisa
qualquer, mordia essa qualquer coisa e sentia-lhe o gosto, queimava a mão com
um fósforo ou enterrava uma agulha na carne.
Assim,
sempre em luta feroz e silenciosa contra a sua imaginação delirante,
Pollock acabou por chegar à Inglaterra. Tendo desembarcado em Southampton, foi
de carro, diretamente, da estação de Warteloo ao escritório do seu banqueiro em
Cornhill. Ali chegado, tratou de alguns negócios com o diretor, em uma sala
particular e, durante todo aquele tempo, uma cabeça ficou suspensa diante dele,
como um ornamento, por cima da pedra de mármore preta da chaminé; ela gotejava
sobre o guarda-fogo, e Pollock ouvia caírem as gotas e via o líquido vermelho
sobre a chapa.
—
Aquilo é um lindo arbusto, disse o diretor, que lhe seguia o olhar. Mas está
enferrujando o guarda-fogo.
—
Ah! — respondeu Pollock. — Sim, um arbusto muito lindo. Mas isto me faz
pensar... Pode recomendar-me um médico especialista de doenças mentais? Eu
trouxe da minha viagem — como hei de dizer? — uma pequena alucinação.
A
cabeça principiou a escarnecer dele, com uma expressão de ferocidade selvagem.
Pollock ficou surpreendido de que o agente não a percebesse. Este, porém,
olhava para ele de frente.
Tendo
obtido o endereço de um médico, Pollock despediu-se e achou-se novamente em
Cornhill. Nem um coche à vista! Teve que se dirigir a pé até ao extremo oeste
da rua, onde tentou atravessar em frente à Mansion House. A passagem ali só é
praticável para os londrinos mais experimentados: coches, carruagem, carrinhos
de correios e ônibus de tração a cavalo formam uma fila ininterrupta; para qualquer
pessoa recém-chegada das solidões insalubres da Serra-Leoa, aquilo é uma
barafunda de enlouquecer. Mas quando, além disso, uma cabeça cortada vem
bater-nos nas pernas, saltando como uma bola de borracha, e deixando atrás de
si, a cada vez que bate no chão, um
rastro de sangue, não há quem possa escapar a um acidente. Pollock deu, convulsivamente,
um passo para evitá-la e bateu nela com toda a força; foi então que sentiu nas
costas uma pancada violenta e uma sensação de calor lhe percorrer todo o braço.
Ele tinha sido alcançado pelo mastro de um ônibus, e três dedos da sua mão
esquerda tinham sido esmagados pela pata de um dos cavalos, exatamente os três
dedos de que ele se servira para dar o tiro sobre o porroh. Várias
pessoas acudiram e livraram-no da situação em que se achava, debaixo das patas
dos cavalos, e descobriram na sua mão esmagada o endereço do médico.
Durante
dois dias, as sensações de Pollock foram sempre misturadas com o com o cheiro
adocicado e acre do clorofórmio e com as operações penosas que não lhe causaram
dor: foi necessário permanecer deitado e deixar que lhe dessem de beber e de
comer. Depois, ele teve um pouco de febre, sentiu muita sede e voltou-lhe o seu
antigo pesadelo. Só depois de se ver de novo perseguido pelos maus sonhos foi
que percebeu que tinha estado livre deles durante um dia.
—
Se, em vez da mão, fosse a minha cabeça que tivesse sido esmagada, isto teria
acabado para sempre — disse consigo, olhando muito pensativo para uma das
almofadas que naquele momento havia tomado a forma da cabeça.
Oportunamente,
falou ao doutor da sua perturbação cerebral. Compreendia claramente que estava
fadado à loucura, salvo a intervenção de algum milagre.
Explicou
que tinha assistido, no Daomé[11],
a diversas execuções capitais e que, desde então, era perseguido pela visão das
cabeças decepadas. Naturalmente, não lhe passava a ideia contar os fatos com
toda a exatidão. O médico tomou um ar grave. Depois falou com hesitação:
—
O senhor recebeu, na sua infância, uma educação muito religiosa? — perguntou
ele.
—
Oh, muito pouco!
Uma
sombra passou pelos olhos do doutor.
—
Não sei se já ouviu falar das curas milagrosas — pode ser, é claro, que não
sejam milagrosas — de Lourdes?
—
Receio que a fé pouco me possa aproveitar.
E
tinha o olhar fixo na almofada negra.
Nesse
momento, a cabeça contraía numa careta abominável os seus traços ferozes. O
doutor entrou em uma nova ordem de ideias.
—
A causa de tudo isto é somente a imaginação — disse ele, falando com súbita
vivacidade. — Boa ocasião para se recorrer às virtudes da fé. O seu sistema
nervoso está deprimido, o senhor se acha nesse estado crepuscular de saúde em
que os espectros mais facilmente se produzem. A impressão intensa por que
passou era demasiadamente forte para o senhor. Vou compor uma pequena poção que
fortificará o seu sistema nervoso, especialmente o cérebro. E é preciso que o
senhor faça exercícios.
—
Não me presto à cura pela fé.
—
É por isso que devemos tonificá-lo. Procure, seja onde for, um ar estimulante: a
Escócia, a Noruega, os Alpes...
—
Oh! Jericó, se quiser — respondeu Pollock. — Jericó, para onde o profeta enviou
Naamã[12].
Seja
como for, logo que saiu das mãos do médico, Pollock fez uma tentativa conscienciosa
para lhe seguir os conselhos. Era novembro. Ele tentou o futebol; mas, coitado,
para ele isso consistia em empurrar com grandes pontapés, em um campo, uma
cabeça voltada ao contrário. Ele não era um jogador muito hábil. Chutava às
cegas, com uma espécie de horror e, quando o punham atrás, sob a trave, e se
acontecia de bola cair sobre ele, dava inesperadamente um grande grito e saía
da linha. As histórias vergonhosas, que o tinham forçado a tentar fortuna longe
da Inglaterra, sob os trópicos, lhe vedavam todas as relações que não fossem as
dos homens, e, agora, o seu comportamento, cada vez mais estranho, fazia com
que até os próprios amigos fugissem dele.
O
espectro não foi para ele, por multo tempo, apenas uma aparição visual:
chamava-o, falava com ele. Um terror formidável apoderou-se dele quando sentiu
o contato da aparição: em breve, aquela cabeça ficaria sendo um simples objeto
de mobiliário: era realmente uma verdadeira cabeça separada do tronco. Sozinho,
ele praguejava contra ela, afrontava-a e dirigia-lhe súplicas; uma ou duas
vezes, esquecendo a severa vigilância que exercia sobre si mesmo, pôs-se a falar
com ela em presença de outras pessoas. Sentia aumentar a desconfiança na
atitude das pessoas que o observavam, como a como a sua senhoria, a criada e o
criado.
Um
dia, no princípio de dezembro, Arnold, seu primo e parente, foi visitá-lo e
convidou-o a sair. Este notou o seu semblante amarelo e encovado, os seus olhos
afogueados e abatidos. E parecia a Pollock que seu primo segurava na mão, em
vez de um chapéu, uma cabeça de górgona que, voltada ao contrário, olhava para
ele fixamente, procurando transtornar-lhe a razão com os seus olhos ferozes. No
entanto, ele continuava resolvido a acabar com aquilo. Comprou uma bicicleta.
Mas, quando pedalava pela estrada gélida que vai de Wandsworth a Kingston,
tornou a ver a cabeça fatal rolando ao seu lado e deixando no seu rastro uma
esteira escura. Pollock cerrou os dentes e redobrou de velocidade. Então, de
repente, quando ia descendo a colina em direção a Richmond Park, o espectro
principiou a rolar diante dele, pela estrada, e tão depressa que ele não teve
tempo de pensar. Dando uma volta ao guidão para se livrar, foi projetado
violentamente sobre um monte de pedras e fraturou o pulso esquerdo.
O
desfecho realizou-se na manhã do dia de Natal. Toda a noite ele ardera em
febre, e a ligadura, que lhe rodeava o pulso, dava-lhe a impressão de um
bracelete de ferro. Os pesadelos eram então mais absorventes e mais terríveis
que nunca. No meio da pouca luz fria, pálida e incerta que precede o nascer do
Sol, ele ergueu-se no leito e viu a cabeça em cima de um consolo, em vez da
taça de bronze que lá estava na véspera à noite.
—
Sei, todavia, perfeitamente que é uma taça de bronze — disse para si mesmo, sentindo
invadi-lo o frio da inquietação.
Agora
a dúvida não era mais possível. Saiu do leito lentamente, tremendo de pavor, e
avançou para a taça com a mão estendida. Viu com certeza que a imaginação o
enganara: reconheceu o brilho peculiar ao bronze. Depois, passado um século de
hesitação, os seus dedos sentiram o contato... da face da eterna cabeça.
Pollock retirou a mão com um gesto convulsivo. A última etapa fora alcançada:
como os outros sentidos, o tato o havia traído.
Trêmulo,
vacilante, ele ergueu-se do leito, tropeçando nas botinas com os pés descalços;
tudo girava como um redemoinho na escuridão em volta dele. Pollock dirigiu-se,
às apalpadelas, para o toucador, ali pegou a sua navalha e, com esta arma na
mão, tornou a sentar-se no leito. Viu no espelho o seu rosto lívido, assustado,
no qual estava impressa a suprema amargura do desespero.
Num
golpe de vista, repassou na mente as diversas épocas da sua existência: o lar
sem alegria, os dias menos alegres ainda passados no colégio, os anos de
dissipação vividos depois, uma ação má sucedendo-se a uma outra, tudo lhe
aparecia agora de modo claro, na fria luz da madrugada, como indecente e como
indigno de piedade. Ele se reviu diante da choça do selvagem, no combate com
aquele porroh, na descida do rio em direção a Sulima; lembrou-se do mendi
assassino, com o embrulho manchado de sangue, os esforços desesperados que
ele fez para se desembaraçar da cabeça, o progresso da sua alucinação. Era uma
alucinação! Ele sabia isso. Era uma alucinação, apenas. Durante
um momento, ele se apegou à esperança. Voltou os olhos, desviando-os do
espelho. Em cima do consolo, a cabeça, sempre em posição invertida,
mostrava-lhe os dentes e fazia-lhe caretas.
Então,
com os dedos rígidos da mão enfaixada, procurou no pescoço as pulsações da aorta.
A
manhã estava muito fria. A lâmina pareceu-lhe glacial.
Título original
“Pollock and the Porroh Man”.
Autor: H. G. Wells
(1866 – 1946).
Tradução: Autor anônimo
do séc. XX.
Fonte: “Revista da
Semana”, edição de 11 de outubro de 1947.
[1] Feiticeiro,
membro de uma sociedade secreta no sistema tribal de religião e tabus em Serra
Leoa.
[2] Gallino ou
Vai: grupo étnico da Libéria e Serra Leoa.
[3] Ilha situada no
litoral de Serra Leoa.
[4] Em inglês, Chlorodyne,
nome comercial de um medicamento à base de láudano, tintura de cannabis
e clorofórmio, empregado no tratamento de enfermidades como neuralgia,
enxaqueca e insônia, dentre outras. Em razão de seu alto conteúdo de opiáceos,
era muito viciante.
[5] Um dos mais
numerosos grupos étnicos de Serra Leoa.
[6] Cidade de Serra
Leoa, situa-se na foz do rio Moa.
[7] Capital e maior
cidade de Serra Leoa.
[8] Capital da
Libéria.
[9] Antigo nome de
Banjul, capital da Gâmbia.
[10] Maior ilha do
arquipélago das Canárias, pertencente à Espanha. Situa-se a pouco mais de 300
Km da costa africana.
[11] Antigo reino
africano, atualmente república do Benim.
[12] Referência a um
episódio da Bíblia (2Reis 5), em que o profeta Eliseu envia Naamã, capitão do
exército sírio, ao rio Jordão para ser curado de lepra.
Esse conto eu tinha lido em espanhol e numa história em quadrinhos. Esse conto é muito bom! Eu tenho um tablet grande, sempre leio antes de dormir. Ass. Lorde Roger
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