A HORA DO DIABO - Conto Clássico Fantástico - Fernando Pessoa
A
HORA DO DIABO
Fernando
Pessoa
(1888
– 1935)
Saíram
da estação, e, ao chegar à rua, ela viu com pasmo que estava na própria rua
onde morava, a poucos passos de casa. Estacou. Depois voltou-se para trás, para
exprimir esse pasmo ao companheiro; mas atrás dela não vinha ninguém. Estava a
rua, lunar e deserta, nem havia nela edifício que pudesse ser ou parecer ser
uma estação de comboios.
Tonta,
sonolenta, mas interiormente desperta e alarmada, foi até casa.
Entrou,
subiu; no andar de cima encontrou, ainda desperto, o marido. Lia, no
escritório, e, quando ela entrou, depôs o livro.
—
Então? — perguntou ele.
E
ela:
—
Correu tudo muito bem. O baile foi muito interessante. — E acrescentou, antes
que ele perguntasse — Umas pessoas que estavam lá no baile trouxeram-me de
automóvel até ao princípio da rua. Não quis que eles viessem até à porta. Saí
ali mesmo; insisti. Ah, que cansada que estou!
E,
num gesto de grande cansaço e esquecendo-se de um beijo, foi-se deitar.
Os
seus sonhos adquiriram uma feição estranha, pontuados com coisas inexplicáveis
por qualquer experiência que se conheça. Pairou nela o desejo de grandes
coisas, como de alguém que um dia foi separado, numa vida antes desta, por
sobre todas as idades da terra. E viu-se a deslocar por uma ponte de uma grande
altura, de onde se vê todo o mundo. Embaixo, a uma distância mais que
impossível, estavam, como astros espalhados, grandes manchas de luz: cidades,
sem dúvida, da terra. Uma figura de vermelho apareceu-lhe e apontou-lhas, dizendo:
—
São as grandes cidades do mundo. Aquela é Londres — e apontou uma na distância
descida — Aquela é Berlim — e apontou para outra. — E aquela, ali, é Paris. São
manchas de luz na treva, e nós, nesta ponte, passamos alto sobre elas,
incrédulos do mistério e do conhecimento.
—
Que coisa tão pavorosa e tão bonita! Mas o que é aquilo tudo ali embaixo?
—
Aquilo, minha senhora, é o mundo. Foi daqui que, por incumbência de Deus,
tentei o seu Filho, Jesus. Mas não deu resultado, como eu já esperava, porque o
Filho era mais iniciado que o Pai, e estava em contacto direto com os
Superiores Incógnitos da Ordem. Foi uma provação, como se diz em linguagem
iniciática, e o Candidato portou-se admiravelmente.
—
Não percebo. Foi daqui, realmente, que tentou Cristo?
—
Foi. Está claro que, onde agora está um vale imenso, estava então uma montanha.
No abismo também há geologias. Aqui, onde estamos agora, era o cume. Que bem
que me lembro! O Filho do Homem repudiou-me desde além de Deus. Segui, porque
era o meu dever, o conselho e a ordem de Deus: tentei-o com tudo quanto havia.
Se tivesse seguido o meu próprio conselho, tê-lo-ia tentado com o que não pode
haver. Talvez a história do mundo em geral, e a da religião cristã em
particular, tivessem sido diferentes. Mas que podem contra a força do Destino,
supremo arquiteto de todos os mundos, o Deus que criou este, e eu que, porque o
nega, o sustenta?
—
Mas como é que se pode sustentar uma coisa por a negar?
—
É a lei da vida, minha senhora. O corpo vive porque se desintegra, sem se
desintegrar demais. Se não se desintegrasse segundo a segundo, seria um mineral.
A alma vive porque é perpetuamente tentada, ainda que resista. Tudo vive porque
se opõe a qualquer coisa. Eu sou aquilo a que tudo se opõe. Mas, se eu não existisse,
nada existiria, porque não havia a que opor-se, como a pomba do meu discípulo
Kant que, voando bem no ar leve, julga que poderia voar melhor no vácuo.
“A
música, o luar e os sonhos são as minhas armas mágicas. Mas por música não deve
entender-se só aquela que se toca, se não também aquela que fica eternamente
por tocar. Por luar, ainda, não se deve supor que se fala só do que vem da lua
e faz as árvores grandes perfis; há outro luar, que o mesmo sol não exclui, e
obscurece em pleno dia o que as coisas fingem ser. Só os sonhos são sempre o
que são. É o lado de nós em que nascemos e em que somos sempre naturais e
nossos.
—
Mas, se o mundo é ação, como é que o sonho faz parte do mundo?
—
É que o sonho, minha senhora, é uma ação que se tornou ideia; e que por isso
conserva a força do mundo e lhe repudia a matéria, que é o estar no espaço. Não
é verdade que somos livres no sonho?
—
Sim, mas é triste o acordar...
—
O bom sonhador não acorda. Eu nunca acordei. Deus mesmo duvida que não durma.
Já uma vez ele mo disse...
Ela
olhou-o de sobressalto e teve subitamente medo, uma expressão do fundo de toda
a alma que nunca sentira.
—
Mas afinal quem é o senhor? Porque está assim mascarado?
—
Respondo, numa só resposta, às suas duas perguntas: não estou mascarado.
—
Como?
—
Minha senhora, eu sou o Diabo. Sim, sou o Diabo. Mas não me tema nem se
sobressalte.
E
num relance de terror extremo, onde boiava um prazer novo, ela reconheceu, de
repente, que era verdade.
—
Eu sou de fato o Diabo. Não se assuste, porém, porque eu sou realmente o Diabo,
e por isso não faço mal. Certos imitadores meus, na terra e acima da terra, são
perigosos, como todos os plagiários, porque não conhecem o segredo da minha
maneira de ser. Shakespeare, que inspirei muitas vezes, fez-me justiça: disse
que eu era um cavalheiro. Por isso esteja descansada. Na minha companhia está
bem. Sou incapaz de uma palavra, de um gesto, que ofenda uma senhora. Quando
assim não fosse da minha própria natureza, obrigava-me o Shakespeare a sê-lo.
Mas, realmente, não era preciso.
“Dato
do princípio do mundo, e desde então tenho sido sempre um ironista. Ora, como
deve saber, todos os ironistas são inofensivos, exceto se querem usar da ironia
para insinuar qualquer verdade. Ora eu nunca pretendi dizer a verdade a ninguém
em parte porque de nada serve, e em parte porque a não conheço. O meu irmão
mais velho, Deus todo poderoso, creio que também a não sabe. Isso, porém, são
questões de família.
“Talvez
não saiba por que é que a trouxe aqui, nesta viagem sem termo real nem
propósito útil. Não foi, como parecia que ia julgar, para a violar ou atrair.
Essas
coisas sucedem na terra, entre os animais, que incluem os homens, e parece que
dão prazer, creio, segundo me dizem de lá de baixo, até às vítimas.
“De
resto, não poderia. Essas coisas acontecem na terra, porque os homens são
animais. Na minha posição social no universo são impossíveis não bem porque a
moral seja melhor, mas porque nós, os anjos, não temos sexo, e essa é, neste
caso pelo menos, a principal garantia. Pode pois estar tranquila porque a não
desrespeitarei. Bem sei que há desrespeitos acessórios e inúteis, como os dos
romancistas modernos e os da velhice; mas até esses me são negados, porque a
minha falta de sexo data desde o princípio das coisas e nunca tive que pensar
nisso. Dizem que muitas feiticeiras tiveram pactos comigo, mas é falso; ainda
que o não seja, porque o com que tiveram pacto foi com a própria imaginação,
que, em certo modo, sou eu.
“Esteja,
pois, tranquila. Corrompo, é certo, porque faço imaginar. Mas
Deus
é pior num sentido, pelo menos, porque criou o corpo corruptível, que é muito
menos estético. Os sonhos, ao menos, não apodrecem. Passam. Antes assim, não é
verdade?
“É
o que está significado no Arcano 18. Confesso que não conheço bem o Tarot,
porque ainda não consegui aprender os seus segredos com as muitas pessoas que
há no mundo que o compreendem perfeitamente.”
—
Dezoito? O meu marido tem o grau 18 da Maçonaria.
—
Da Maçonaria, não: de um rito da Maçonaria. Mas, apesar do que se tem dito, não
tenho nada com a Maçonaria, e muito menos com esse grau. Referia-me ao Arcano
18 do Tarot, isto é, da chave de todo o Universo, da qual, aliás, o meu
entendimento é imperfeito, como o é da Cabala, da qual os doutores da Doutrina
Secreta sabem mais do que eu.
“Mas
deixemos isso, que é puramente jornalístico. Lembremo-nos de que sou o Diabo.
Sejamos, pois, diabólicos. Quantas vezes tem sonhado comigo?”
—
Que eu saiba, nunca — respondeu, sorrindo, Maria, fitando-o com olhos muito abertos.
—
Nunca pensou no Príncipe Encantado, no Homem Perfeito, no amante interminável?
Nunca sentiu ao pé de si, em sonho, o que acariciasse como ninguém acaricia, o
que fosse seu como se a incluísse em ele, o que fosse, no mesmo tempo, o pai, o
marido, o filho, numa tripla sensação que é só uma?
—
Embora não compreenda bem, sim, creio que pensei assim e que senti assim. Custa
um pouco a confessá-lo, sabe?
—
Era eu, sempre eu, que sou a Serpente, foi o papel que me distribuíram desde o
princípio do mundo. Tenho que andar a tentar, mas, bem entendido, num sentido
figurado e frustrante, porque não vale tentar utilmente.
“Foram
os gregos que, pela interposição da Balança, fizeram onze os dez signos
primitivos do Zodíaco. Foi a Serpente que, pela interposição da crítica, tornou
realmente doze a década primitiva.
—
Realmente, não percebo nada.
—
Não percebe: ouça. Outros perceberão. As minhas melhores criações o luar e a
ironia.
—
Não são coisas muito parecidas...
—
Não, porque eu não sou parecido comigo mesmo. Esse vício é a minha virtude. É
por isso que sou o Diabo.
—
E como se sente?
—
Cansado, principalmente cansado. Cansado de astros e de leis, e um pouco com a
vontade de ficar para fora do universo e recrear-me a sério com coisa nenhuma.
Agora não há vácuo nem sem razão; e eu lembro coisas antigas sim, muito antigas
nos reinos de Adão que eram antes de Israel. Desses estive eu para ser rei, e
hoje estou no exílio do que não tive.
“Nunca
tive infância, nem adolescência, nem portanto idade viril a que chegasse. Sou o
negativo absoluto, a encarnação do nada. O que se deseja e se não pode obter, o
que se sonha porque não pode existir nisso está meu reino nulo e aí está
assente o trono que me não foi dado. O que poderia ter sido, o que deveria ter
havido, o que a Lei ou a Sorte não deram atirei-os às mãos cheias para a alma
do homem e ela perturbou-se de sentir a vida viva do que não existe. Sou o
esquecimento de todos os deveres, a hesitação de todas as intenções. Os tristes
e os cansados da vida, depois de levantados da ilusão erguem para mim os olhos,
porque eu também, e a meu modo, sou a Estrela Brilhante da Manhã[1]. E
há tanto tempo que o sou!
“A
humanidade é pagã. Nunca qualquer religião a penetrou. Nem está na alma do
homem vulgar o poder crer na sobrevivência dessa mesma alma. O homem é um
animal que desperta, sem que saiba onde nem para quê. Quando adora os Deuses,
adora-os como feitiços. A sua religião é uma bruxaria. Assim foi, assim é, e
assim será. As religiões são somente o que extravasa dos mistérios para a
profanidade e dela não é entendido, pois, por natureza, o não pode ser.
“As
religiões são símbolos, e os homens tomam os símbolos, não como vidas (que
são), mas como coisas (que não podem ser). Propiciam a Júpiter como se ele
existisse, nunca como se ele vivesse. Quando se entorna sal, deita-se uma
pitada, com a mão direita, por cima do ombro esquerdo. Quando se ofende a Deus,
rezam-se uns tantos Padre-Nossos. A alma contínua pagã e Deus por exumar. Só os
raros lhe puseram a acácia (a planta imortal) no topo do túmulo, para que o
levantassem dele quando a hora viesse. Mas esses são os que, por bem buscarem,
foram eleitos para achá-lo.
“O
homem não difere do animal senão em saber que o não é. É a primeira luz, que
não é mais que treva visível. É o começo, porque ver a treva é ter a luz dela.
É o fim, porque é o saber, pela vista, que se nasceu cego. Assim o animal se
torna homem pela ignorância que nele nasce.
“São
eras sobre eras, e tempos atrás de tempos, e não há mais que andar na circunferência
de um círculo que tem a verdade no ponto que está no centro.
“O
princípio da ciência é sabermos que ignoramos. O Mundo, que é onde estamos; a
Carne, que é o que somos; o Diabo, que é o que desejamos. Esses três, na Hora
Alta, mataram-no o Mestre que estivemos para ser. E aquele segredo que ele
tinha, para que nos convertêssemos nele, esse segredo foi perdido.”
“Também
eu, minha senhora, sou a Estrela Brilhante da Manhã. Era-o antes que João
falasse, porque há átomos antes de átomos, e mistérios anteriores a todos os
mistérios. Sorrio quando pensam (penso) que sou Vênus em outro esquema de
símbolos. Mas que importa? Todo este universo, com seu Deus e seu Diabo, com o
que há nele de homens e de coisas que eles veem, é um hieróglifo eternamente
por decifrar. Sou, por mister, Mestre da Magia: não sei contudo o que ela é.
“A
mais alta iniciação acaba pela pergunta encarnada de se há qualquer coisa que
exista. O mais alto amor é um grande sono, como aquele em que nos amamos de
dormir. Às vezes eu mesmo, que devera ser um alto iniciado, pergunto ao que em
mim é de além de Deus se estes deuses todos e todos estes astros não serão mais
que sonos de si mesmos, grandes esquecimentos do abismo.
“Não
pasme de que eu assim fale. Sou naturalmente poeta, porque sou a verdade
falando por engano, e toda a minha vida, afinal, é um sistema especial de moral
velado em alegoria e ilustrado por símbolos.
—
Não (disse ela rindo) sempre há de haver uma religião verdadeira... Sim (rindo
mais) ou então são todas falsas.
—
Minha senhora, todas as religiões são verdadeiras, por mais opostas que pareçam
entre si. São símbolos diferentes da mesma realidade, são como a mesma frase
dita em várias línguas; de sorte que se não entendem uns aos outros os que
estão dizendo a mesma coisa. Quando um pagão diz Júpiter e um cristão diz Deus
estão a pôr a mesma emoção em termos diversos da inteligência: estão a pensar
diferentemente a mesma intuição.
“O
repouso de um gato ao sol é a mesma coisa que a leitura de um livro. Um
selvagem olha para a tormenta do mesmo modo que um judeu para Jeová, um
selvagem olha para o sol do mesmo modo que um cristão para o Cristo. E por quê,
minha senhora? Porque “trovão” e “Jeová”, “sol” e “cristão”, são símbolos
diversos da mesma coisa.
“Vivemos
neste mundo dos símbolos, no mesmo templo claro e obscura treva visível, por
assim dizer; e cada símbolo é uma verdade substituível à verdade até que o
tempo e as circunstâncias restituam a verdadeira.
“Corrompo
mas ilumino. Sou a Estrela Brilhante da manhã — frase, por sinal, que já foi
duas vezes aplicada, não sem critério ou entendimento, a outro que não parece
eu.”
—
O meu marido disse-me uma vez que Cristo era o símbolo do sol...
—
Sim, minha senhora. E por que não será verdade o contrário que o sol é o símbolo
de Cristo?
—
Mas o Senhor vira tudo do avesso...
—
É o meu dever, minha senhora. Não sou, como disse Goethe, o espírito que nega,
mas o espírito que contraria?
—
Contrariar é feio...
—
Contrariar atos, sim... Contrariar ideias, não.
—
E por quê?
—
Porque contrariar atos, por maus que sejam, é estorvar o giro do mundo, que é
ação. Mas contrariar ideias é fazer com que nos abandonem, e se caia no
desalento e de aí no sonho e portanto se pertença ao mundo.
“Há,
minha senhora, com respeito ao que sucede neste mundo, três teorias distintas
que tudo é obra do Acaso, que tudo é obra de Deus, e que tudo é obra de várias
coisas, combinadas ou entrecruzadas. Pensamos, em geral, em termos da nossa
sensibilidade, e por isso tudo se nos volve num problema do bem e do mal; há
muito que eu mesmo sofro grandes calúnias por causa dessa interpretação. Parece
não ter ainda ocorrido a ninguém que as relações entre as coisas supondo que
haja coisas e relações são complicadas demais para que algum deus ou diabo as
explique, ou ambos as expliquem.
“Sou
o mestre lunar de todos os sonhos, o músico solene de todos os silêncios.
Lembra-se do que tem pensado quando, sozinha, está ante uma grande paisagem de
arvoredos e de luar? Não se lembra, porque pensou em mim, e, devo dizer-lho,
verdadeiramente não existo. Se existe qualquer coisa, não sei.
“As
aspirações vagas, os desejos fúteis, os tédios do vulgar, ainda quando o amamos,
os aborrecimentos do que não aborrece tudo isso é obra minha, nascida de
quando, deitado à margem de grandes rios do abismo, penso que também não sei
nada. Então o meu pensamento desce, eflúvio vago, às almas dos homens e eles
sentem-se diferentes de si mesmos.
“Sou
o eterno Diferente, o eterno Adiado, o Supérfluo do Abismo. Fiquei fora da
Criação. Sou o Deus dos mundos que foram antes do Mundo os reis de adão que
reinaram mal antes de Israel. A minha presença neste universo é a de quem não
foi convidado. Trago comigo memórias de coisas que não chegaram a ser mas que
estiveram para ser. (Então face não via face, e não havia equilíbrio.)
“A
verdade, porém, é que não existo nem eu, nem outra coisa qualquer. Todo este
universo, e todos os outros universos, com seus diversos criadores e seus
diversos Satãs mais ou menos perfeitos e adestrados são vácuos dentro do vácuo,
nadas que giram, satélites, na órbita inútil de coisa nenhuma.
“Tudo
isto, não estou falando consigo mas com o seu filho...
—
Não tenho filho... Isto é, vou tê-lo daqui a seis meses, se Deus quiser...
—
É com ele que estou falando... Daqui a seis meses? Seis meses de quê?
—
De quê?! Seis meses...
—
Seis meses solares? Ah, sim. Mas a gravidez vai por meses lunares, e eu mesmo
não posso contar senão por meses de Lua, que é minha filha, isto é, a minha
cara vista nas águas do caos. Com a gravidez e todas as porcarias da terra não
tenho nada a ver, nem sei por que graça me foram medir essas coisas pelas leis
da lua que forneci. Por que não arranjaram outra bitola? Para que é que o
omnipotente precisava do meu trabalho?
“Desde
o princípio do mundo que me insultam e me caluniam. Os mesmos poetas por
natureza meus amigos que me defendem, me não têm defendido bem. Um inglês
chamado Milton fez-me perder, com parceiros meus, uma batalha indefinida que
nunca se travou. O outro, o alemão Goethe deu-me um papel de alcoviteiro numa
tragédia de aldeia. Mas eu não sou o que pensam.
As
Igrejas abominam-me. Os crentes tremem do meu nome. Mas tenho, quer queiram
quer não, um papel no mundo. Nem sou o revoltado contra Deus, nem o espírito
que nega. Sou o Deus da Imaginação, perdido porque não crio.
É
por mim que, quando criança, sonhaste aqueles sonhos que são brinquedos; é por
mim que, quando mulher já, tiveste a abraçar-te de noite os príncipes e os
dominadores que dormem no fundo desses sonhos. Sou o Espírito que cria sem
criar, cuja voz é um fumo, e cuja alma é um erro. Deus criou-me para que eu o
imitasse de noite. Ele é o Sol, eu sou a Lua. A minha luz paira sobre tudo quanto
é fútil ou findo, fogo-fátuo, margens de rio, pântanos e sombras.
“Que
homem pousou sobre os teus seios aquela mão que foi minha? Que beijo te deram
que fosse igual ao meu? Quando, nas grandes tardes quentes, sonhavas tanto que
sonhavas de sonhar, não viste passar, no fundo dos teus sonhos, uma figura
velada e rápida, a que te daria toda a felicidade, a que te beijaria
indefinidamente? Era eu! Sou eu! Sou aquele que sempre procuraste e nunca
poderás achar. Talvez, no fundo imenso do abismo, Deus mesmo me busque, para
que eu o complete, mas a maldição do Deus Mais Velho o Saturno de Jeová paira
sobre ele e sobre mim, separa-nos, quando nos devera unir, para que a vida e o
que desejamos dela fossem uma só coisa.
“O
anel que usas e amas, a alegria de um pensamento vago, o sentires que estás bem
ao espelho em que te vês não te iludas: não és tu, sou eu. Sou eu que ato bem
todos os laços com que as coisas se decoram, que disponho certas as cores com
que as coisas se ornam. De tudo quanto não vale a pena ser, faço eu meu domínio
e o meu império, senhor absoluto do interstício e do intermédio, do que na vida
não é vida. Como a noite é o meu reino, o sonho é o meu domínio. O que não tem
peso nem medida, isso é meu.”
“Os
problemas que atormentam os homens são os mesmos problemas que atormentam os
deuses. O que está em baixo é como o que está em cima, disse Hermes três vezes
a Máximo, que, como todos os fundadores de religiões, se lembrou de tudo, menos
de existir. Quantas vezes Deus me disse, citando Antero de Quental, ”Ai de mim!
E quem sou eu?”
“Tudo
é símbolo e atraso, e nós, os que somos deuses, não temos mais que um grau mais
alto numa Ordem cujos Superiores Incógnitos não sabemos quem sejam. Deus é o
segundo na Ordem manifesta, e não me diz quem é o Chefe da Ordem, o único que
conhece se conhece os Chefes Secretos.
Quantas
vezes Deus me disse: ”Meu irmão, não sei quem sou.”
“Tendes
a vantagem de serdes homens, e creio às vezes, do fundo do meu cansaço de todos
os abismos, que mais vale a calma e a paz de uma noite da família à lareira que
toda esta metafísica dos mistérios a que nós, os deuses e os anjos, estamos
condenados por substância. Quando, às vezes, me debruço sobre o mundo, vejo ao
longe, indo do porto ou voltando a ele, as velas dos barcos dos pescadores, e o
meu coração tem saudades imaginárias da terra onde nunca esteve. Felizes os que
dormem, na sua vida animal, um sistema peculiar de alma, velado em poesia e
ilustrado por palavras.
—
Esta conversa tem sido interessantíssima...
—
Esta conversa, minha senhora? Mas esta conversa, embora talvez o fato mais
importante da sua vida, nunca verdadeiramente se deu. Em primeiro lugar, é bem
sabido que eu não existo. Em segundo lugar, como estão concordes os teólogos,
que me chamam Diabo, e os livres pensadores, que me chamam Reação, nenhuma
conversa minha pode ter interesse. Sou um pobre mito, minha senhora, e, o que é
pior, um mito inofensivo. Consola-me só o facto de que o universo sim, esta
coisa cheia de várias formas de luzes e de vidas é um mito também.
“Dizem-me
que todas estas coisas podem ser esclarecidas à luz da Cabala e da filosofia,
mas são esses assuntos de que nada sei; e Deus, a quem uma vez falei deles,
disse-me que também os não compreendia bem, pois que eram pertença exclusiva,
em seus arcanos, dos grandes iniciados da Terra que, pelo que tenho lido em
livros e jornais, são e têm sido abundantes.
“Aqui
nestas esferas superiores, de onde se criou e transformou o mundo, nós, para
lhe dizer a verdade, não percebemos nada. Debruço-me às vezes sobre a terra
vasta, deitado à margem do meu planalto sobretudo o planalto da Montanha de
Heredom, como já lhe ouvi chamar e cada vez que me debruço vejo religiões
novas, novas grandes iniciações, novas formas, todas contraditórias, da verdade
eterna, que nem Deus conhece.
“Confesso-lhe
que estou cansado de Universo. Tanto Deus como eu de bom grado dormiríamos um
sono que nos libertasse dos cargos transcendentes em que, não sabemos como,
fomos investidos. Tudo é muito mais misterioso do que se julga, e tudo isto
aqui Deus, o universo e eu é apenas um recanto mentiroso da verdade inatingível.”
—
Não imagina quanto apreciei a sua conversa. Nunca ouvi ninguém falar assim.
Tinham
saído para a rua, cheia de luar, na qual ela não reparara. Ela calou-se um
momento.
—
Mas, sabe é curioso sabe realmente, e no fim de tudo, o que sinto?
—
O quê? — perguntou o Diabo.
Ela
voltou para ele os olhos subitamente marejados.
—
Uma grande pena de si!...
Uma
expressão de angústia, como ninguém julgaria que pudesse haver, passou pelo
rosto e pelos olhos do homem vermelho. Deixou cair súbito o braço que enlaçava
o dela. Parou. Ela deu uns passos, constrangida. Depois voltou-se para trás
para dizer qualquer coisa não sabia o quê porque nada percebera para se
desculpar da mágoa que viu que causara.
Ficou
atónita. Estava sozinha.
Sim,
era a rua dela, o topo da rua, mas além dela não estava ali ninguém. O luar
batia, claríssimo, não na saída do funicular, mas nas duas portas fechadas da
serralharia de sempre.
Não,
além dela, não estava ali ninguém. Era a rua de dia vista à noite. Em vez do
sol o luar mais nada; um luar normal muito claro que deixava naturais as casas
e as ruas. O luar de sempre, e ela avançou para casa.
*
* *
—
Vim com pessoas conhecidas. Como vinham para os mesmos lados...
—
E como vieste? A pé?!
—
Não. Vim de automóvel.
—
Essa é boa! Não ouvi.
—
Não até à porta — disse ela sem hesitação. — Passaram ali à esquina, e eu pedi
que me não trouxessem até aqui, porque queria andar este bocado de rua com este
luar tão lindo. E está lindo... Olha, vou-me deitar. Boa noite...
E
foi, sorrindo, mas sem lhe dar um beijo do costume, que ninguém ao dar sabe se
é costume se é beijo.
Nenhum
deles reparou que se não tinham beijado.
*
* *
A
criança, um rapaz, que nasceu seis meses depois, veio, no decurso do tempo
geral e do seu crescimento particular, a revelar-se, quando já homem, muito
inteligente: um talento, talvez um gênio, o que era talvez verdade, embora o
dissessem alguns críticos.
Um
astrólogo, que lhe fez o horóscopo, disse-lhe que tinha Câncer no Ascendente, e
Saturno como signo.
—
Diga-me uma coisa, mãe... Dizem que certas memórias maternas se podem
transmitir aos filhos. Há uma coisa que constantemente me aparece em sonhos e
que não posso relacionar com coisa alguma que me houvesse sucedido. É uma
memória de uma viagem estranha, em que aparece um homem de vermelho que fala
muito. É, primeiro, um automóvel, e depois um comboio, e nessa viagem em
comboio passa-se sobre uma ponte altíssima, que parece dominar toda a terra.
Depois há um abismo, e uma voz que diz muitas coisas, que, se eu as ouvisse,
talvez me dissessem a verdade. Depois sai-se à luz, isto é, ao luar, como se
saíssemos de um subterrâneo, e é exatamente aqui no fim da rua... Ah, é
verdade, no fundo ou princípio de tudo há uma espécie de baile, ou festa, em
que esse homem de vermelho aparece...
Maria
depôs no colo a sua costura. E, virando-se para a sua amiga Antónia, disse:
—
Ora isto tem graça. Está claro que aquilo dos comboios e automóveis e tudo mais
é sonho, mas, realmente, há uma parte de verdade... Foi aquele baile no Clube
Azul, no Carnaval, aqui há muitos anos sim, uns cinco uns seis meses antes de
este nascer. Lembras-te? Eu dancei com um rapaz qualquer vestido de
Mefistófeles, e depois vocês vieram trazer-me a casa no seu automóvel, e eu
fiquei, até, no fim da rua… olha, onde ele diz que saiu do abismo.
—
Oh, querida, lembro-me perfeitamente... Nós queríamos vir até à porta de casa,
aqui, e tu não quiseste. Disseste que gostavas de andar este bocadito ao luar.
—
Isso mesmo... Mas é engraçado, filho, que tu tenhas acertado com certas coisas
que estou certa que nunca te contei. É claro, não têm importância nenhuma...
Que coisas curiosas que são os sonhos! Como é que se pode arranjar assim uma
história, em que há coisas verdadeiras e que a própria pessoa não podia
adivinhar e tantos grandes disparates, como o comboio e a ponte?
Ingrata
humanidade! Assim se agradeceu ao Diabo
Comentários
Postar um comentário