A TENTAÇÃO - Conto Clássico Fantástico - Anatole France
A TENTAÇÃO
Anatole
France
(1844
– 1924)
Então,
sentou-se Satã no alto de uma colina e contemplou a casa dos Irmãos. Ele era
negro e belo, semelhante a um jovem egípcio. E, em seu coração, pensou:
—
Porque sou o Adversário e porque sou o Outro, tentarei esses monges, e direi
tudo quanto calo. Aquele que é o amigo deles. Afligirei esses religiosos
dizendo-lhes a verdade e hei de entristecê-los com os meus razoáveis discursos.
Farei penetrar o pensamento qual uma espada em seus rins. E quando souberem a
verdade, serão infelizes.
“Porque
só há alegria na ilusão e só na ignorância encontra-se a paz. E porque sou o
mestre daqueles que estudam a natureza das plantas e dos animais, a virtude das
pedras, os segredos do fogo, o curso dos astros e a influência dos planetas, os
homens chamam-me o Príncipe das Trevas. E o meu reino é deste mundo. Ora, eu
tentarei esses monges, e farei que eles reconheçam que as suas obras são más e
que a árvore da caridade dá amargos frutos. E eu os tentarei sem ódio e sem
amor.”
Assim
pensou Satã em seu coração. No entanto, como as sombras da noite se alongavam
ao pé das colinas, e como se evolasse a fumaça dos telhados das choupanas,
Giovanni, o santo homem, saiu do bosque, onde costumava orar, e tomou o caminho
de Santa Maria dos Anjos, dizendo:
—A
minha casa é a casa das delícias, porque ela é a casa da pobreza.
E
vendo frei Giovani, que caminhava, pensou Satã:
—Aquele
é um dos que eu tentarei.
Cobriu
a cabeça com o seu manto negro e foi ao encontro do santo monge. Tomara o
aspecto de uma viúva. E, ao encontrar-se com frei Giovanni, disse:
—Dai-me
uma esmola por amor daquele que é vosso amigo e cujo nome eu não sou digno de
pronunciar.
E
o monge respondeu:
—Tenho
comigo uma taça de prata que um senhor do país me deu para ser derretida e empregada
na ornamentação do altar de Santa Maria dos Anjos. Tomai-a, senhora. Amanhã,
irei pedir ao bom senhor que me dê uma outra para a Virgem Santa. Assim serão
cumpridos os seus desejos, e vós tereis também recebido a esmola pelo amor de
Deus.
Satã
tomou a taça e disse:
—Permiti,
bom irmão, que uma pobre viúva vos beije a mão. A mão que dá é doce e
perfumada.
Frei
Giovanni respondeu:
—
Em vez de beijar-me a mão, afastai-vos, senhora. Pareceis formosa de rosto e
escura como o rei mago que levou a mirra. E não convém que eu vos olhe mais.
Porque ao solitário tudo é motivo de perigo. Assim pois, eu vos deixo,
recomendando-vos a Deus E perdoai-me se faltei com a polidez. Porque São
Francisco dizia: "A cortesia é o ornamento de meus filhos, assim como as
flores ornam as colinas".
Mas
Satã disse ainda:
—
Meu bom padre, indicai-me ao menos uma hospedaria onde eu possa passar
honestamente a noite.
Respondeu
o monge:
—Ide,
senhora, à casa de São Damiano, dos pobres de Nosso Senhor. Aquela que vos
receberá é Clara, e é um claro espelho de pureza; ela é a duquesa da Pobreza.
Disse
ainda Satã:
—Meu
padre, sou uma mulher adúltera e entreguei-me a muitos homens.
E
frei Giovanni retorquiu:
—
Senhora, mesmo que vos acreditasse carregada dos pecados que dizeis, eu vos
pediria como uma grande honra a permissão de vos beijar os pés, porque eu valho
bem menos do que vós, e os vossos crimes são pequenos em comparação aos meus.
No entanto, recebi graças bem maiores do que aquelas que vos foram concedidas.
Porque quando São Francisco e seus doze discípulos estavam ainda na terra, eu
vivi com aqueles anjos.
E
Satã replicou:
—Meu
padre, quando vos pedi uma esmola por amor daquele a quem amais, eu tinha no
coração um mau desejo que vos quero contar. Ando mendigando pelos caminhos sob
um véu de viúva, a fim de angariar a quantia necessária que destino a um homem
de Perusa, que goza do meu corpo, e que prometeu, se recebesse essa soma, matar
de surpresa um cavalheiro a quem odeio, porque, havendo-me oferecido a ele,
desprezou-me. Ora, a quantia estava incompleta. Mas o peso da vossa taça de
prata completou-a. E a esmola que me haveis dado será o preço do sangue.
Vendeste o justo. Porque o cavalheiro é casto, sóbrio e piedoso, e por isto eu
o odeio. E sereis o causador da sua morte. Colocaste um peso de prata na
balança do crime.
Ouvindo
tais palavras, o bom frei Giovanni chorou. E, afastando-se um pouco, pôs-se a
orar num bosque de espinheiros, dizendo ao Senhor:
—Fazei,
ó Senhor, que esse crime não recaia nem sobre esta mulher, nem sobre a minha
pessoa, nem sobre nenhuma das vossas criaturas, mas que ele seja levado sob os
vossos pés trespassados de cravos e que seja ele lavado em vosso precioso
sangue. Deixai cair sobre mim e sobre minha irmã da estrada uma gota de hissopo,
e ficaremos purificados, e brancos passa- remos sobre a neve.
No
entanto, o Adversário afastou-se pensando:
—Não pude tentar esse
homem por causa da sua extrema simplicidade.
Tradução
de autor desconhecido.
Fonte:
Carioca, edição de 16 de junho de 1942.
Comentários
Postar um comentário