LONGA NOITE - Conto Fantástico - Eudes de Pádua Colodino
LONGA
NOITE
Eudes
de Pádua Colodino
O rei observava, satisfeito, o Sol
que se punha por detrás dos altos montes, lançando seus últimos raios frios e
alaranjados sobre as matas distantes, os campos incultos e rios congelados, que
pareciam serpentes negras imobilizadas sob o duro gelo. Encolhendo-se em seu
manto real de pele de raposa, do alto do terraço do palácio tinha uma visão
privilegiada de sua grande cidade: as inúmeras casinhas de telhados pontiagudos
com suas chaminés de pedra lançando fumaça, as ruas e travessas quase vazias,
os guardas de plantão nas muralhas e torres de vigilância, as bandeiras e
estandartes agitados pelo cortante vento que trazia apressadas nuvens cinzentas
pelo céu, deslizando como cortinas plúmbeas, ocultando o palco em que o Astro
Rei brilhara durante o dia e anunciando o fim de seu espetáculo para dar lugar
a mais uma noite fria invernal.
Faltavam poucas semanas para o
inverno encerrar-se e, mais uma vez, seu próspero reino resistiu tenazmente às
severas investidas do frio. As despensas e armazéns foram suficientes para
suprir as necessidades do povo durante os meses sem produção agrícola, e as
perdas de animais e rebanhos foram irrelevantes. As crianças e idosos estavam
bem, em sua maioria, e o povo aclamava seu soberano por tantas benesses. Se não
fosse por ele e seu competente governo, nada disso seria possível.
Riu-se em baforadas de vapor no ar
gelado. Lembrou-se de quando assumiu o trono, e quantas foram as dificuldades
apenas para estabilizar a administração; quanto mais para suprir o necessário
ao povo. Agora, passados alguns anos, seus domínios cresciam saudáveis e
fortes, numa estabilidade inédita ao reino.
Sua única tristeza era a falta de
um herdeiro. Mas isso era o de menos. Seria providenciado.
– Tudo a seu tempo – dizia,
levemente resignado.
Sentiu uma repentina pontada de
angústia, e pôs-se para dentro. Já ficava escuro e muito frio, e a noite só
aumentaria tais reflexões inconvenientes. Precisava cuidar de alguns últimos
assuntos de pouca monta, e logo partiria para a cama.
*
* *
Insistentes batidas na grande porta
de carvalho dos seus aposentos o acordaram. Abriu os olhos, assustado. Olhou ao
redor pelo quarto escuro e concluiu que ainda era alta madrugada, mas teve uma
estranha sensação de que dormira o suficiente. “Já devia ser manhã… Que estranho.
Bom, quem nunca sentiu o tempo de uma forma diferente?”, pensou.
Levantou-se cautelosamente para não
acordar a rainha, vestiu o robe e encaminhou-se ligeiro à porta, onde alguém
batia incessantemente. Abriu-a e viu o seu camareiro, apavorado, rosto pálido.
– Que aconteceu? Por que me chama a esta hora?
– sussurrou o rei, com a porta entreaberta.
– Sua majestade… Algo muito estranho está
acontecendo – retorquiu, trêmulo, o camareiro. O rei observou que, por detrás
dele, no longo corredor, havia uma movimentação incomum dos servidores do
palácio. Reparou no jovem e viu que devia se tratar de algo sério. Saiu do
quarto e fechou a porta silenciosamente.
– O quê? Diga-me logo!
– Majestade… Não percebeu nada
diferente nesta manhã?
– Não! Eu estava dormindo! Ora
bolas, isso são horas de um homem se aperceber de algo diferente?
– Majestade…
– Deixe de rodeios, rapaz, diga-me
do que se trata?
– Não amanheceu, majestade… Não
amanheceu!
– Deixe de sandices, você está
muito apavorado. Se acalme e me diga o que…
– Majestade! Este é o problema. O
Sol não apareceu! O dia não raiou!
Espantado, o rei logo imaginou que
aquele homem devia estar maluco. Desvencilhou-se dele e seguiu até o grande
relógio de pêndulo no fim do corredor. Pasmo, viu o marcador: seis horas, em ponto.
Olhou a janela mais próxima e viu que, lá fora, tudo estava em breu.
– Alguém deve ter mexido neste
relógio…
Encaminhou-se até os aposentos do
secretário real, que era homem de confiança e de sensatez conhecidas no reino,
portanto ele devia saber o que realmente estava ocorrendo por ali. Enquanto
dava ligeiros passos pelos agitados corredores do palácio, sentia-se como se
realmente fossem seis horas da manhã, pela disposição que tomava conta de seu
corpo nesta usual hora em que acordava. Será que o camareiro havia
enlouquecido? Ou a natureza era quem estava fora de si? Seja como for, o rei
devia saber o que estava se passando ali.
Ao dobrar o último corredor,
trombou de frente com o secretário, que também corria, como todos os demais
servidores. Ambos recuaram escusando-se do acidente, e o rei não perdeu tempo
em questionar se o secretário sabia de algo:
– Você sabe o que está acontecendo?
Parece-me que todos perderam o juízo!
– Me perdoe corrigi-lo, majestade,
mas se há alguém sem juízo é a natureza. Todos estão certos: o Sol não
despertou para a manhã.
– C… como isso é possível?
–
Não faço a mínima ideia, majestade. Em minha vida, nunca fiquei sabendo de nada
igual. Neste exato momento, eu estava me encaminhando para o real observatório
para saber de algo mais.
– Pois então eu vou com você.
Os dois homens saíram em desatinada
marcha pelos corredores do palácio até a saída, onde o rei se recordou que
estava ainda em trajes de repouso, tamanho o frio que se abatera sobre ele. Não
se importou com isso e ordenou a um guarda que providenciasse a carruagem real,
e puseram-se a caminho do observatório, encrustado no topo das montanhas, a
alguns minutos de viagem.
*
* *
Chegando lá, adentraram rapidamente
o edifício, onde os astrônomos já estavam de olhos fixos e preocupados no céu,
através das lentes do potente telescópio. Ao notarem a incomum presença do rei,
fizeram longas reverências. O rei dirigiu-se ao chefe do instituto e pediu-lhe
explicações:
– Bom dia, meu bom homem. Já têm
alguma explicação para tal fenômeno?
– Majestade… Aparentemente… A Terra
parou de girar.
– E como isso é possível?
– Isso não é possível, majestade.
Mas é o que de fato está acontecendo.
– Meu Deus! E agora? O que seremos
de nós?
– É um mistério, majestade. Estive observando
as estrelas, e não há nenhum movimento. Realmente, a Terra está estática. Não
há atividade de rotação.
Sem maiores delongas, o estupefato
rei voltou-se ao secretário e os dois seguiram novamente à carruagem, agora se
destinando mais longe, à caverna do ermitão profeta. Se havia algum homem no
reino que devia entender tal evento, era ele, que constantemente recebia
oráculos e fazia previsões, quase sempre certeiras.
Após mais algum tempo de viagem
pelas estradas escuras e geladas das montanhas uivantes, já sendo fustigadas
pelos primeiros flocos de uma possível nevasca, chegaram à caverna. Saltaram da
carruagem e chamaram pelo ermitão, cuja silhueta encurvada e envelhecida não
tardou a aparecer na entrada da caverna, apoiado em seu gasto cajado, com uma
pele de lobo jogada aos ombros. No escuro não era possível vê-lo muito bem, mas
dava para se sentir fitado pelo seu par de flamejantes olhos. O rei sentia
algum desconforto sempre que encontrava o velho, a quem nutria grande respeito,
mas também profundo temor. Fez-lhe uma reverência respeitosa e perguntou se por
acaso ele sabia o que estava acontecendo. O ermitão respondeu, serenamente:
– Meu filho, não sei de nada.
– Como assim? – questionou,
espantado, o rei. Aquele homem sabia de tudo! Como, desta vez, não sabia?
– Já faz alguns dias que não ouço
mais nada dos Céus. Eles se fecharam. Alguma coisa grande está acontecendo por
lá. Chamo, chamo… E nada. Não me ouvem, não me respondem. Suponho que isto que
está acontecendo tem alguma relação com o silêncio de Deus. Até o Reino dos
Céus tem seus problemas, meu jovem.
– E o que faremos? Nossas provisões
têm poucos excedentes para além do inverno, que não tarda a acabar!
– Você é o rei, meu filho. Você é
quem deve saber.
Aquelas palavras soaram como um
soco no soberano, que estacou, pasmo. Mais uma vez, aquele velho o deixava sem
palavras.
O ermitão, sabendo que não havia
mais nada a ser perguntado, tampouco respondido, virou-se e retornou para o
interior da caverna escura e solitária. Sem perceber o frio e a neve que
aumentavam, o rei ficou imóvel por algum tempo, sem saber o que fazer. Sentia
medo e solidão, e um incomum peso parecia alojar-se em suas costas. Pensou em
seu belo reino, do qual se orgulhava sem igual, e nos problemas que tomavam
forma num horizonte não tão longínquo.
Retornou de seus pensamentos com um
tapinha no ombro dado pelo secretário. Deviam retornar à cidade, a neve estava
aumentando muito e poderiam ficar isolados caso se demorassem mais. Assentiu e
voltaram à carruagem, que desceu veloz pelos caminhos sinuosos e perigosamente
escorregadios das montanhas íngremes, temerosos de que fosse tarde demais.
*
* *
Passadas algumas semanas de
ausência do Sol sobre a Terra, a temperatura registrava recordes de
negatividade. Nevascas intensas e ventos furiosos fustigavam o reino, que
desaparecia rapidamente debaixo da grossa camada de neve que se formava sobre
ele. Mensageiros foram enviados às pressas às vizinhanças para saber se os
demais Estados fronteiriços passavam por semelhante apuro, mas nenhum retornou.
O reino estava isolado e sem notícias do mundo ao redor.
As reservas de alimentos estavam
perigosamente baixas, e o racionamento de víveres tornou-se necessário. Lenha,
carvão, água, ração aos animais, tudo também faltava. Alguns habitantes já
morriam, sobretudo os mais frágeis, e o clima de luto e desespero tomou conta
dos lares dos homens dali. Acorriam ao rei, acorriam aos Céus; ninguém lhes
dava uma solução. Nem mais as estrelas conseguiam ver, pois o céu estava quase
sempre tomado por uma camada de nuvens de tamanha espessura que parecia sólida
de tanta neve e gelo em seu interior.
O rei tentava fazer o que lhe era
possível em conjunto com seus ministros e conselheiros, mas apenas conseguiam
administrar a morte lenta de seu reino. Os sacerdotes rezavam sem cessar, e a
catedral e as demais igrejas estavam sempre lotadas de fiéis desesperados ou
refugiados em seus interiores.
– Majestade, temo que nossa
situação seja insustentável. Se ficarmos aqui, morreremos. A neve acumulada já
tomou a maior parte do reino, e muitos já morreram. Nossos animais e criações
já estão praticamente esgotados, e nossas reservas não devem durar mais que
duas semanas, mesmo racionando.
– O que você me sugere, secretário?
- Perguntou o rei, desiludido e desalentado, em seu trono.
– Que organizemos um plano de fuga.
Logo mais, esta cidade será um cemitério, e todos estaremos nele.
– Fuga? Para onde? - Retrucou, em
tom de ironia.
– Um de nossos mensageiros retornou
hoje. Pouco antes de morrer por hipotermia, ele deu notícia de que no leste as
coisas estão melhores, e que há sol e calor por lá. Reunamos todos os
habitantes que ainda restam, e nossas provisões, e marchemos ao leste, seguindo
a rota do Grande Rio. Dentro de algumas semanas, deveremos estar melhor.
O rei pensou por um momento, e uma
luz distante pareceu acender-se no fim do túnel de sua alma arrasada. Havia uma
chance de salvação ao seu reino. Não importa o custo dessa viagem, ela lhe
parecia melhor do que ficar e morrer. Loucura por loucura, era mais sensato
escapar dali.
– Convoque o Conselho. Vamos
organizar a marcha!
*
* *
Em tempo recorde os preparativos
foram feitos. Todos os habitantes que ainda tinham coisas para salvar acorreram
aos seus lares para resgatá-las. Receberam instruções do Conselho para trajarem
suas roupas mais quentes e organizarem-se para a fuga ao leste. As autoridades
locais trabalharam incansavelmente até que tudo estivesse pronto, e o êxodo
teve início na primeira oportunidade.
O rei em pessoa e todo o seu
séquito se empenharam para que os cidadãos principiassem o caminho até o último
homem, mulher e criança. Quando o que restou da cidade estava completamente
evacuado, os servidores reais, ministros e conselheiros foram liberados para
fugirem também. Restaram, para trás, somente o soberano e seu fiel secretário.
Totalmente coberto por camadas e
mais camadas de peles e mantas, o rei contemplou uma última vez o interior de
seu palácio, outrora tão vivo e agitado, agora deserto e sombrio. A escuridão
do mundo lá fora era ampliada pela altura da neve acumulada que já cobria a
maioria das janelas e portas, soterrando a pomposa estrutura da pujante cidade
que ela administrava. Os andares subterrâneos e térreos já estavam
inacessíveis, e só se podia deixar o palácio através das janelas das torres
mais altas.
Suspirou entristecido, mas
convencido de que o que podia ser feito, foi feito. Sentia, sob as toneladas de
dor e resignação que o cobriam, uma nesga de orgulho e sentimento de dever
cumprido, por toda a sua luta pelo reino contra a impiedosa natureza e a
indiferença dos Céus, e era isso o que ainda o mantinha de pé. Tratou de
esquecer logo tudo aquilo e foi encontrar-se com o secretário para que, juntos,
deixassem o local.
Com alguma dificuldade, por causa
do cansaço dos ciclos de sono alterados pela ausência do sol e pelo trabalho
árduo de tantas semanas, além dos quilos de roupa que lhe pesavam e limitavam seus
movimentos, o rei conseguiu arrastar-se através da janela para o exterior
congelado. Ajudado pelo secretário, colocou-se de pé, ajeitou sua formosa coroa
na cabeça e tratou de iniciar o caminho.
Após alguns passos, parou.
– Secretário! Não reparou em nada
diferente?
– Não, majestade. Sugiro que
discutamos sobre isso em marcha, para não nos distanciarmos muito dos demais.
– Espere! Veja que a neve parou de
cair!
O secretário parou, e realmente
percebeu que não havia nevasca. Nem vento. E o frio também estava menos severo.
Virou-se para o rei, e ambos olharam para o céu no mesmo momento: a camada de
nuvens parecia menor, e a escuridão por detrás delas já não era tão profunda.
– Secretário, você viu que horas
eram?
– Confesso que, mesmo após tanto
tempo sem diferir noite e dia, nunca deixei de olhar o relógio antes de sair
para algum lugar, majestade. Agora são cinco e quarenta da manhã, exatamente.
– Logo… Vai amanhecer!
– Majestade…?
Ao dizer isso, o secretário abriu
um grande sorriso. O rei virou-se para onde seu companheiro olhava e pôde ver
os primeiros raios de sol vencendo as nuvens, no leste. Mal acreditou na
alegria de sentir em sua face aquele calor, embora tímido, que quase já se esquecia
de que existe! Tratou de logo voltar para o palácio, sem dizer uma só palavra,
mas radiante de alegria.
– Majestade! Aonde vais?
– Me aguarde aqui, amigo! Volto em
pouco tempo!
Disse isso e lançou-se ao interior
do palácio pela mesma janela pela qual fugira. Passou alguns minutos lá dentro
e retornou com duas belas cadeiras do mobiliário da copa real, rindo como uma
criança. O secretário, ao ver o esforço do rei em carregar os móveis, logo
acorreu a ele para prestar-lhe auxílio.
– Aonde vai, majestade? O que quer
com isso?
Mas o rei não lhe disse mais nada,
e nem precisou. Com apenas um olhar, o secretário entendeu o que ele queria.
Sorriu, e acompanhou-o.
Deram mais alguns passos adiante e
colocaram suas cadeiras sobre a camada pétrea de neve. Sentaram-se ali e
dedicaram-se a contemplar aquela imensidão gelada e branca, silenciosa, imóvel.
Acima deles, o Sol levantava-se cada vez mais, aos poucos, no ritmo de sempre.
Ganhando força, já não era mais o Sol de inverno, mas um caloroso e familiar Sol
primaveril, que afagava os dois combalidos homens, que não precisavam de mais
nada para ficarem extremamente felizes.
– Secretário, me diga. Isso não é
uma coisa muito bela?
– Sim, majestade. Sem igual, eu
diria.
Um maravilhoso céu azul vencia as
nuvens, agora cada vez mais tímidas e translúcidas. À frente, apenas a
desolação alva que outrora fora o reino.
Imagem:
Paulo Soriano.
Conto muito interessante.. Gostaria de entender o que causou a escuridão.
ResponderExcluirEu também...
ExcluirE muito grato pelo comentário.