A MÃO DO DIABO - Conto Clássico de Horror - Jean-Baptiste Alphonse Karr
A MÃO DO DIABO
Jean-Baptiste Alphonse Karr
(1808 – 1890)
Tradução de autor desconhecido do séc. XX
Era uma noite pesada e cálida do mês de julho. O céu estava coberto de nuvens pardacentas tão baixas, tão baixas que, ao acercar-se lentamente, pareciam tocar a copa das árvores, cujas folhas moviam-se sem que corresse o menor sopro de ar. De vez em quando, brilhava um relâmpago longínquo, seguido do ruído surdo do trovão.
Submetidos involuntariamente a esse respeito e a esse ar de expectativa que a tempestade, próxima a estalar, empresta a toda a natureza, três homens, encerrados num quarto, conversavam em voz baixa. Nas convulsões da natureza, o homem procura tornar-se pequeno e despercebido como o menino que, fugindo da cólera do mestre, quer ocultar-se debaixo de um banco.
— Meus senhores — disse um dos três, cujas feições fatigadas e voz débil pareciam indicar uma profunda pena e prolongadas vigílias —, agora vós sois minha última esperança. Apesar de tudo o que os outros médicos têm feito até aqui por meu irmão, nenhum acertou com a causa de sua enfermidade e, contudo, não poupei nem trabalho nem dinheiro: vendi tudo o que possuía para pagar o médico e os remédios e o fiz de todo coração, porque, se o meu pobre irmão morrer, como parece provável, meu maior pesar será o ter que lhe sobreviver para sustentar sua mulher e o filho que vai dar à luz. Senhores, deixo-os sós com uma garrafa excelente de kirschwasser. Volto para junto de meu irmão para ver se tem necessidade de alguma coisa. Procurai entre os dois o modo de aliviá-lo e tudo o que me resta será vosso e vossos nomes unir-se-ão nas minhas orações enquanto os meus lábios puderem orar, minhas mãos juntarem-se e meus olhos dirigirem-se ao céu.
Quando os dois médicos ficaram sós, puseram-se a conversar e a beber a garrafa de kirschwasser.
Passava-se isto há uns cinquenta anos, em casa de um pescador, nas margens do Reno, próximo das ruínas do castelo de Ehrenfles, no sítio em que o Rhwno, rodeado e oprimido pelas rochas amontoadas, precipita suas águas com uma violência que as faz saltar, formando espuma enquanto que, ao longe, reaparece calmo, azul, límpido, deslizando suas águas entre duas margens verdes e floridas. Junto ao castelo de Ehrenfles, os escolhos, produzidos pelos pedaços de rochas que a correnteza move sem poder arrastar, formam um torvelinho por onde os barqueiros não passam jamais sem se encomendarem a Deus e à Virgem.
—Quer acreditar — disse um dos médicos — que me custa cobrar o dinheiro dos meus enfermos e que me pagam tão somente em produções de seu campo?
—Isso pode ter, às vezes, o lado bom.
— Sim. Infelizmente, porém, para mim, todos possuem vinhedos. E, para o cúmulo da desventura, a colheita do último ano foi muito abundante, de sorte que recebi mais vinho do que o poderei beber em toda a minha vida.
—E eu já o tenho visto, caro colega, beber algumas garrafas com resignação.
— Não tenho a pretensão de ser inimigo do vinho, como não deve sê-lo um bom alemão. Mas, como a colheita do ano passado foi tão abundante, ninguém quer comprar.
—É uma feliz casualidade que se tenha lembrado de me falar nisso. Eu preciso de vinho e poderíamos facilmente arranjar-nos para fazer uma troca. O senhor falou há tempos da vontade que tinha de encontrar um cavalo manso e forte ao mesmo tempo. Eu desejo desfazer-me do meu cavalo baio. Decididamente, é um luxo ter dois cavalos em minha cavalariça, coisa que não permitem as minhas posses.
— Esse negócio me conviria muito. Que idade tem seu cavalo?
—Sete anos.
— Garantes que é manso? Bem sabes que sou mau cavaleiro e não desejaria valer-me desse meio para adquirir minha clientela.
—Consinto que o montem minha mulher e meus filhos. Por isso, podes estar completamente tranquilo.
— Darei pelo cavalo dois tonéis de vinho.
—Combinado, desde que o vinho seja bom.
—É do melhor que se possa beber, se é que o cavalo é de boa marcha e, além disso, manso.
—Fechamos o trato bebendo um copo deste delicioso Kirschwasser.
— Esqueci dizer-lhe que tu me entregarás o cavalo arreado.
— Isto é separado. Todavia, jogarei nas cartas os arreios contra cinco garrafas de kirschwasse, se julgas que valem isso…
—Toque! Que aborrecimento não ter cartas aqui!
Nesse momento, entrou Wilhelm, mais abatido ainda do que saíra.
—Senhores — disse —, meu pobre irmão sofre cada vez mais. Por favor, digam o que pensam para aliviá-lo.
— Senhor Wilhelm — disse um dos médicos —, depois de o ter examinado minuciosamente com as luzes do que nos podem dar a ciência e a experiência de uma longa prática, decidimos dar ao seu irmão uma infusão de cocleária.
—Na qual deve ser pôr — disse o outro — três gotas de láudano.
— Isto é, láudano e cocleária.
— Julgais que isto o aliviaria?
— Sem dúvida.
Wilhelm pagou aos médicos ambulantes e apressou-se a preparar a receita. Isto não deu nenhum resultado e Richard soltava gritos agudos. Wilhelm, desesperado, batia com a cabeça contra a parede.
— Meu Deus — dizia —, tende piedade do meu pobre irmão! Tende piedade de mim! Não me arrebateis o melhor, o meu único amigo, que protegeu minha infância, me alimentou e me educou como se fosse uma mãe. Meu Deus, tende compaixão dele! Dai-me metade dos seus sofrimentos, que são maiores do que pode suportar um só. Se quiserdes sobrecarregar aquela infeliz criatura, dai-me todas as suas suas dores. Eu as sofrerei, contanto que ele tenha um momento de sono! Meu irmão! Meu Richard, que queres? Oh! Se meu sangue pudesse salvar-te!… Não te desesperes, Richard; é impossível que Deus não se compadeça de nós…
— Wilhelm — disse Richard —, onde está a minha mulher?
—Obriguei-a a descansar um pouco. A pobre tem os olhos queimados pela insônia.
—E tu também, pobre Wilhelm. Deves estar cansado.
— Como! — disse Wilhelm. — Deus não me ouve. Os gritos de dor desse desgraçado e os gritos do meu coração não chegam até ele. Não posso aturar mais. Não posso vê-lo sofrer. Que fazer, que inventar? Fiz acender velas na igreja; cada dia dizem uma missa. Todos os médicos de dez léguas em redor vieram visitá-lo nestas três semanas em que guarda o leito sem um instante de descanso. É Deus, pois, nosso pai?
E como Richard se encontrasse o mesmo, Wilhelm pareceu assaltado de uma ideia repentina.
— Espera, meu Richard — disse —, espera uma hora somente e, se eu não trouxer um remédio para as tuas dores, matarei a ti, a mim e a tua mulher; porque isto é sofrer demasiado. Espera-me.
Apertou entre as suas as mão de Richard e saiu para a rua, no meio do vento e dos relâmpagos que sulcavam o ar a curtos intervalos.
Foi procurar seu barco e lançou-se na corrente. Ao passar perto do remanso de Bingen, esse rodamoinho formidável, de que antes tínhamos falado, foi, como de costume, fazer uma curta prece, enquanto o vento agitava as ondas mais do que nos outros dias, e os seus silvos, à luz dos relâmpagos e o estampido dos raios que rasgam as nuvens, tudo infunde no ânimo um terror místico. Mas Wilhelm chegara a esse ponto de desesperação em que se ousa tudo, porque se crê ter esgotado a desgraça.
— Para que pedir a Deus — disse consigo —, se não quer aliviar meu irmão? Ele não me ouve, pois não é ele em que confio. O que não me quer dar, vou pedi-lo ao Diabo. Só a este invoco, pois que Deus me abandona.
Nesse momento, brilhou um relâmpago. O raio fez um ruído horrível sobre sua cabeça. A nuvem estava próxima. Por um momento, acreditou que Deus o iria castigar por suas blasfêmias. Mas o barco passou por entre os escolhos, apesar da escuridão e do vento.
— Por que Deus — disse — ouviria nossas blasfêmias e não ouve nossas preces? O Diabo é bom amigo; invocando-o, passei o Binger Loch, onde tantos outros pereceram invocando o socorro de Deus.
E continuava seguindo a corrente d’água.
— É bem sabido que no país que Reinrich, que se foi estabelecer em Mogúncia, fez-se rico tão somente entregando-se ao Diabo na encruzilhada do bosque. Sei que há muitos incrédulos que sustentam que se pode chamar o Diabo durante cem noites seguidas em todas as encruzilhadas de todos os bosques, sem que ele o ouça. Não obstante, não é uma razão o não crer nas coisas porque não se as compreendem. Cremos no Sol, e ninguém o compreende. É um crime horrível vender-se ao Diabo e estremeço à ideia de pertencê-lo se reflito em tudo o que dizem sobre as penas do inferno. Contudo, meu pobre irmão que, quando eu era pequeno, trabalhou para me sustentar, neste momento padece e grita: é preciso curá-lo custe o que custar e, demais, Deus terá compaixão de mim, vendo a causa que me faz agir assim.
— Que horrível tempestade — continuou. — Será um aviso do Céu? Ora, o Céu ocupa-se muito de nós quando deixa que padeça o melhor dos homens!
Nesse momento, chegou e saltou em terra, amarrando o barco às raízes de um velho salgueiro.
—Contanto que encontre o sítio!
Não obstante, mostraram-no muita vezes.
À luz dos relâmpagos, penetrou no bosque e, depois de alguns rochedos, chegou a um sítio de onde partiam três caminhos.
E encostou-se a uma árvore.
Seus cabelos estavam eriçados. A tensão de seus músculos era horrível.
O vento que sibilava entre as árvores, os relâmpagos que espargiam de tempos a tempos uma luz azulada, tudo aumentava o seu terror. Rebuscava em sua cabeça a fórmula que lhe tinham indicado e da qual, segundo diziam, se servira Heinrich, o rico.
Ao ir pronunciá-la, vacilou. Depois:
—Vamos! Cada momento que passa é mais um sofrimento para o meu irmão. Haja o que houver!
E, em voz alta, disse três vezes:
— Senhor Diabo! É vossa, de agora para sempre, a minha mão esquerda, se derdes a saúde ao meu irmão.
Depois, com abatimento:
— Está consumado!
E, caindo sobre a relva úmida, chorou.
Em seguida, sem dizer nada, nem dar conta de nada, de tão aniquilado se achava, voltou para o seu barco. Ao passar o remo, que tinha na mão esquerda, quebrou-se contra uma rocha. Não duvidava agora que o Diabo tivesse aceitado sua oferta. Estremeceu, mas, não obstante, apressou-se a chegar à casa.
Encontrou Richard adormecido.
Eis o que se passara:
Em sua perturbação, Wilhelm deixara, ao sair, a porta mal fechada. O vento abriu-a com violência e o ruído que fazia, unido ao ar que chegava até Richard, tornaram-se-lhe insuportáveis. Procurou levantar-se, porém era tanta a sua fraqueza que, ao chegar à porta, caiu pesadamente ao solo. Ao mesmo tempo, sobreveio-lhe um vômito de sangue: o abcesso, causa, de sua dor, acabava de rebentar. Não sentiu mais do que um veemente desejo de dormir. Arrastou-se até o leito e caiu num sono profundo.
Quando Wilhelm viu o irmão adormecido, disse:
— Vamos! Meu irmão está salvo e eu estou condenado!
O resto da noite passou sem dormir. De manhã, rendido pela fadiga, cedeu ao sono. Depois, acordou-se sobressaltado e gritando:
— Meu Deus, tende piedade de mim!
Sonhara que o Diabo o arrastara às entranhas da terra.
Uma semana depois, Richard voltava ao seu trabalho habitual. A ventura e a doce paz reapareceram na cabana do pescador. Wilhelm, mesmo que durante algum tempo esteve sombrio e taciturno, tornou a recobrar o seu bom humor. Somente o menor incidente que lhe pudesse recordar aquela noite funesta deixava-o triste e silencioso durante alguns dias, e sua imaginação preocupada achava, a cada instante, pretextos para sofrer invencíveis terrores.
Ainda que tivesse morto mil homens com a mão direita e incendiado toda a sua aldeia, teria considerado como um acidente vulgar; mas se lhe sucedia quebrar alguma vasilha que tivesse na mão esquerda, parecia-lhe que o Diabo se servia daquela mão que se tornara sua propriedade. Considere-se ainda que a falta de destreza na mão esquerda aumentara muito pela repugnância que tinha de servir-se dela. Assim é que não tocava coisa alguma com essa mão que não a quebrasse ou deixasse cair.
Aos domingos, na igreja, tinha a mão esquerda oculta sob as vestes e, muitas vezes, ajoelhado ao solo, chorava amargamente pedindo perdão a Deus.
Ninguém compreendia tal excesso de piedade e Wilhelm, por sua parte, não respondia a nenhuma pergunta. Uma noite de tempestade impedia-o de dormir e passava em oração. Não se atrevia a passar o poço de Binger, que duas vezes franqueara invocando o Diabo.
Com frequência, Richard e sua mulher, que já era mãe, inquietavam-se do estado de Wilhelm e o repreendiam suavemente.
Essas provas de afeto devolviam a calma ao seu espírito e considerava-se ditoso e tranquilo até que um novo acidente lhe tornava a recordar a noite fatal em que se entregou ao Diabo.
Um sentimento novo, que lhe encheu todo o coração, veio distraí-lo dos seus sombrios pensamentos. Enamorou-se de uma linda e bondosa jovem. Entregue ao seu amor, Wilhelm não pensou mais no Diabo, ocupando-se tão somente de sua bela Klara. Richard e sua mulher regozijavam-se de vê-lo ditoso, pois isto era apenas o que lhe faltava para serem felizes.
Na véspera do casamento, Wilhelm e Clara achavam-se sentados sob os galhos dos salgueiros à margem do Reno. O Sol recolhia-se por entre as nuvens escuras, formando com seus raios belas franjas de ouro e púrpura.
Naquela hora de silêncio e recolhimento, os dois amantes falavam do porvir, fitando-se mutuamente. O local e a hora davam aos pensamentos, às palavras, aos olhares algo de solene e sagrado.
— É preciso separar-nos, meu Wilhelm — disse Klara com sua doce voz. — Meu pai deve estar impaciente. Olha as nuvens no horizonte se desfazerem em negro vapor. A água se agita sem que haja vento. As folhas tremem e os pássaros fogem. Vai haver tormenta. Até amanhã.
Ao dizer estas palavras, tirou do dedo uma aliança de prata.
—Toma — disse. — É a aliança de minha mãe. Este será o meu anel de casamento. Amanhã mo darás. Até então, porém, guarda-o.
Wilhelm deu-lhe um beijo na fronte e, por costume, estendeu a mão direita para que a jovem pusesse o anel num dedo.
— Não, não, Wilhelm — disse ela. — A mão esquerda, a do coração. É nessa que se põe a aliança de casamento.
Wilhelm estremeceu e retirou a mão que ela atraía para si.
—Não — disse ele. — Não quero nesta mão. Em nome do céu, nesta mão é que não.
— Assusta-me, Wilhelm. Teus olhos parecem querer saltar das órbitas!
Wilhelm fugiu, correndo como um doido.
Passou perto de Richard.
—Onde vais? — perguntou-lhe o irmão. — Corres como uma alma que o Diabo vai carregando!
— Então. — disse Wilhelm. — Quem te diz que não seja o Diabo que me carrega?
Klara chegou, preocupada, à casa do pai. Depois, foi procurar Richard e sua mulher e, ao referir-lhes o que se havia passado, os três se perderam em conjecturas.
Wilhelm não apareceu para cear, apesar de que a ceia deveria ser alegre por ser o aniversário da cura de Richard.
Quando se achou fora das vistas de Klara e do irmão, Wilhelm deteve-se.
— Oh, não! — disse. — Não a farei partilhar da minha sorte. Não será mulher de um homem que se vendeu ao Diabo!
E pôs-se a chorar, pensando na ventura que perdera. Depois, ajoelhou-se na areia e rezou.
Aproximava-se a tormenta. Os relâmpagos brilhavam, recordando-lhe a noite fatal. Fazia um ano justo, dia por dia. Então, perdeu a cabeça. Pareceu-lhe sentir na mão um calor abrasador. Entrou em seu barco e lançou-se à corrente. Ao aproximar-se do Binger Loch, receou não poder chegar até o bosque. Não se atreveu a pedir a Deus nem ao Diabo.
Quando chegou, deu graças a Deus e, em seu andar, notava-se que era presa da febre ao percorrer as sinuosidades do bosque, até que encontrou a encruzilhada.
O vento quebrava as árvores e balouçava até as raízes dos corpulentos azinheiros.
Levantou até o cotovelo a manga da camisa e bradou três vezes:
—Senhor Diabo, dei-te a minha mão esquerda! Aqui a tem. Vem buscá-la!
À terceira vez, colocando a mão sobre o tronco partido, de um golpe decepou-a com a machada que levara. Depois, fugiu, sustentado pela violência da febre.
Entrou no barco. Era tal a febre que não tinha força para remar com a mão única que lhe restava.
No dia seguinte, ao sair Richard para pescar, encontrou o cadáver mutilado do irmão preso nos cimos de duas rochas aguçadas.
Fonte: “Gazeta de Notícias”/RJ, edições de 17 e 19 de janeiro de 1926.
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