O COVEIRO - Conto de Terror - Mauren Guedes Müller


O COVEIRO

Mauren Guedes Müller

 

Uma vez, disseram-me que só é herói quem não quer ser. A pessoa que enfrenta o perigo com gosto jamais será um herói de verdade, pois falta-lhe o principal requisito do heroísmo: a superação do medo. Concordo em parte: por mais atração que se sinta pela aventura, pelo desconhecido, pelo arriscado, em algum momento o coração dispara, o suor empapa nossas roupas e temos de decidir se lutamos ou fugimos. Mas o fato é que o homem a quem ocorreu o fato singular que ora lhes apresento não tinha qualquer vontade de se tornar herói — e, se houvesse se apercebido do perigo que corria, com certeza não teria se tornado...

O homem de que se trata, Lourenço Gomes, tinha recebido a complicada missão de levar flores ao túmulo de uma desconhecida, a mãe de um amigo. Tal amigo prometera à sua progenitora, no leito de morte desta, que todos os anos, no aniversário de sua morte, levar-lhe-ia flores à tumba. Mas, naquele ano, encontrava-se gravemente enfermo, e incumbira a Lourenço a missão de cumprir sua promessa.

Lourenço tinha horror a cemitérios. Não chegava nem perto de uma necrópole, mesmo que, para isso, acrescentasse quilômetros a seu itinerário. A velórios, então, não iria nem mesmo arrastado. Quando sua própria mãe falecera, deixara as últimas homenagens a cargo dos agentes funerários, e o corpo da pobre senhora passara a noite na capela mortuária envolto na mais absoluta solidão.

Porém, diante da grande amizade que tinha pelo colega enfermo, que instara com ele de forma tão suplicante que o comovera, Lourenço resolvera enfrentar seu medo, pela primeira e última vez.

A mãe de seu amigo estava enterrada numa cidade do interior. Lourenço comprou um buquê de rosas brancas ainda na capital, pegou seu automóvel e tomou a estrada. O cemitério, segundo lhe dissera seu amigo, ficava pouco antes da entrada principal da cidade. Quando localizou a estrada certa, não lhe foi difícil encontrá-lo. Todavia, perdera muito tempo confundindo-se com as estradas do interior, e cruzou os portões do lugar perto da hora do pôr do sol. A todo instante consultava o relógio de pulso. Sentia sua cabeça latejar, uma náusea lhe embrulhava o estômago, e o que mais desejava neste mundo era cumprir rapidamente sua missão e sair depressa daquele local que tanto o apavorava.

Não conseguia, porém, encontrar o túmulo da mãe de seu amigo. Perdeu-se pelo meio das tumbas, cada vez mais assustado. À medida que o sol mergulhava no horizonte, sua tensão aumentava. Teve a impressão de ouvir gemidos fúnebres, de ver sombras rastejando por entre os mausoléus, e consequentemente teve ímpetos de largar as flores por ali mesmo e de sair correndo, tão rápido quanto suas pernas lhe permitissem. Mas a fidelidade ao amigo e o tom de desespero com que este o fizera prometer que cumpriria seu voto o mantiveram no cemitério, apesar de sua angústia crescente. Todavia, o que mais o aterrorizava era justamente sentir-se só, o único vivo diante das moradias dos cadáveres, diante dos esconderijos das temidas almas do outro mundo.

Enfim, ouviu o barulho de uma pá batendo no chão. Olhou em volta e enxergou, à luz dos últimos raios solares, a figura de um coveiro, cavando uma sepultura. Respirou fundo, sentindo como se o calor lhe voltasse, e aproximou-se do funcionário do cemitério, extremamente aliviado por haver-se deparado com outra viva alma por ali.

— Boa tarde, amigo — disse, com voz ainda trêmula —, estou procurando um túmulo onde devo depositar estas flores. O senhor poderia me ajudar?

O coveiro interrompeu o seu serviço e o olhou. Perguntou-lhe o nome da morta e lhe indicou com precisão o lugar onde ela jazia. Lourenço agradeceu, o homem respondeu “não tem de quê” e continuou a cavar.

Lourenço largou as flores junto ao túmulo e se retirou dali, caminhando a passos largos e rápidos. Pegou seu automóvel e se dirigiu à cidade. Por mais vontade que tivesse de voltar rapidamente à capital, tinha mais medo de dirigir durante a noite, e foi procurar uma pousada onde pudesse esperar que o dia seguinte amanhecesse.

Mais tarde, enquanto comia alguma coisa sentado junto ao balcão da lanchonete que funcionava anexa ao hotelzinho em que se instalara, o atendente, um rapaz simpático, perguntou-lhe o porquê de sua visível perturbação. Lourenço, aliviado por ter com quem desabafar sobre a angústia que o sufocava, contou-lhe acerca de sua incumbência e lhe narrou que, por pouco, não a deixara por cumprir, não fosse o coveiro ter-lhe indicado o jazigo da extinta mãe de seu amigo.

— Mas eu não sei por que o senhor demorou tanto a encontrar o túmulo — disse o jovem. — O cemitério é bem sinalizado. Seu amigo não lhe deu a letra da ala e o número do jazigo?

— Hem? Oh, não. Mas não é bem sinalizado coisa nenhuma! Desculpe-me, mas não tem alas nem números de túmulos, apenas as capelinhas e algumas lápides junto ao chão.

— Ora, mas é claro que tem! Espere aí, o senhor está falando do Cemitério Municipal, não está?

— Como?

— O Cemitério Municipal, aquele que fica ali, mais adiante, no fim daquela rua — e apontou para uma direção.

— Não, meu jovem. Refiro-me àquele cemitério fora da cidade, a uns cinco quilômetros da entrada principal, onde a mãe de meu amigo está enterrada já há muito tempo.

O jovem empalideceu, arregalou os olhos e fitou Lourenço, com visível perturbação.

— Então, o senhor viu “o coveiro” — murmurou.

Lourenço sentiu-se estremecer.

— Como?

O rapaz respirou fundo, tomou fôlego e lhe disse:

— Aquele cemitério foi abandonado há cerca de vinte anos, quando a Prefeitura construiu o cemitério novo. Pois bem, segundo dizem, o coveiro do cemitério antigo não aceitou a mudança. Primeiro, disse que precisava continuar por lá, cuidando de “seus mortos”. Depois, enlouqueceu, e continuou a abrir covas como se o cemitério continuasse funcionando, a receber cadáveres. Por fim, seu deplorável estado mental o levou também à doença física. Muitas pessoas caridosas tentaram demovê-lo de sua teimosia, levá-lo para o hospital, mas ele permaneceu irredutível, cavando sepulturas no cemitério abandonado. Até que, um dia, seu corpo inerte foi encontrado por um passante. Havia morrido com a pá nas mãos. Mas contam que até hoje seu espírito permanece naquele cemitério, limpando os túmulos e abrindo covas para mortos que nunca chegam. E dizem mesmo que, não raro, quando alguém desta cidade desaparece sem deixar vestígios, foi “o coveiro” que o enterrou, vivo, numa das covas que abre, para manter funcionando o que considera o “seu cemitério”...

Não preciso dizer que Lourenço necessitou de cuidados médicos quando soube que tinha visto um fantasma. Também não preciso dizer que ele muito se esforçou para encontrar uma explicação racional para o ocorrido. Finalmente, convenceu-se de que não fora “o coveiro” que vira, mas alguém por quem o havia tomado — talvez outra pessoa que estivesse no local de passagem, prestando homenagens a seus mortos, embora não conseguisse explicar o fato de esse alguém estar ali justamente abrindo uma cova. O fato é que Lourenço acabou por se recuperar do susto.

Mas jura que nunca mais tornará a entrar num campo-santo. E jura-o com tanta ênfase que temo que, nem mesmo depois de morto, o cimento que lhe feche a tumba será capaz de segurá-lo dentro dos portões de um cemitério...

 

Nota: esta é uma obra de ficção, que não relata necessariamente minhas crenças, ideias e opiniões; qualquer semelhança com nomes, pessoas ou fatos reais terá sido mera coincidência.




 

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