OS OUTROS HÓSPEDES - Conto Clássico de Terror - Ambrose Bierce
OS
OUTROS HÓSPEDES
Ambrose
Bierce
(1842
– c. 1914)
Tradução
de Paulo Soriano
—
Para pegar o trem — disse o Coronel Levering, sentado no hotel Waldorf-Astoria —,
você terá que passar quase toda a noite em Atlanta. É uma boa cidade, mas
eu o aconselho a não se hospedar no Breathitt House, um dos principais hotéis
da cidade. É um antigo edifício de madeira, que necessita urgentemente de
reparos. Há rachaduras nas paredes pelas quais você poderia lançar um
gato. Os quartos, sem fechaduras nas portas, não têm móveis: somente única
cadeira em cada um, e uma armação de cama com um colchão desforrado. Mesmo nessas
acomodações tão modestas, não é certo que você consiga um quarto exclusivamente
seu e, certamente, terá de dividi-lo com outros hóspedes. Sim, amigo, é um
hotel abominável.
“Foi
uma noite desconfortável, aquela que passei no hotel. Cheguei tarde e fui
conduzido ao quarto, no térreo, pelo recepcionista da noite, que me pediu
desculpas. Levava uma vela de sebo que, atenciosamente, deixou comigo. Eu
estava exausto, depois dois dias e uma noite de dura viagem de trem, e não
havia me recuperado totalmente de um ferimento à bala na cabeça, recebido numa
briga. Em vez de procurar um quarto melhor para pernoitar, deitei-me no
colchão, ainda vestido, e adormeci.
“Acordei
pela madrugada. A Lua havia nascido e brilhava na janela sem cortina,
iluminando a sala com uma luz tênue e azulada, que me parecia, de alguma forma,
um tanto fantasmagórica, embora eu ouse dizer que ela nada tinha de incomum. Se
você observar, todo luar é assim. Imagine minha surpresa e indignação quando vi
o assoalho de meu quarto ocupado por pelo menos uma dúzia de outros hóspedes!
“Sentei-me,
amaldiçoando com veemência a administração daquele hotel impensável, e estava
prestes a pular da cama para reclamar apologeticamente com o recepcionista da
vela de sebo, quando algo, naquele lugar, indispôs-me, estranhamente, a
realizar qualquer movimento. Suponho que fiquei, como o diria um escritor de
histórias de ficção, congelado de terror, porque todos aqueles homens
estavam, obviamente, mortos!
“Permaneciam
deitados de costas, dispostos ordenadamente ao longo de três das quatro paredes
do quarto, em cujas bases os seus pés dos estavam encostados. Era na parede
mais distante da porta que ficavam minha cama e a cadeira. Todos os corpos
tinham os rostos cobertos. Todavia, sob os lençóis brancos, desenhavam-se,
nitidamente, nas feições de dois dos cadáveres — que jaziam na moldura
projetada pelo luar próxima à janela — o nariz e queixo.
“Supus
que aquilo era um pesadelo e tentei gritar, como se faz em tais circunstâncias,
mas não consegui emitir o mínimo ruído.
“Por
fim, com um esforço desesperado, lancei os pés no chão e, passando entre as
duas fileiras de rostos velados e os dois corpos que jaziam mais próximos da
porta, escapei daquele antro infernal e corri à portaria. O recepcionista
noturno estava lá, atrás do balcão, sentado à luz débil de outra vela de sebo.
Permanecia apenas sentado e olhando fixamente para o vazio. Não se
levantou: minha entrada abrupta não produziu nenhum efeito sobre ele, embora eu
mesmo devesse estar com a aparência de um verdadeiro cadáver. Somente
então me ocorreu que eu ainda não havia observado atentamente o porteiro. Era
ele um sujeito pequeno, de face lívida, com os olhos mais brancos e vazios que
eu já tinha visto. Seu semblante não tinha mais expressão do que as costas
da minha mão e as suas roupas eram de um cinza encardido.
"—
Maldição! — eu disse. — O que está acontecendo aqui?
“Apesar
da imprecação, eu tremia como uma folha ao vento e não reconhecia minha própria
voz.
“O
recepcionista levantou-se, fez uma mesura (à guisa de desculpas) e... bem, num
átimo, ele simplesmente já não estava mais lá. Naquele momento, senti uma mão
pousar em meu ombro, por trás. Imagine o sobressalto que tive, se puder! Indizivelmente
assustado, eu me virei e me deparei com um cavalheiro corpulento, de aparência
gentil, que me perguntou:
“—
Qual é o problema, meu amigo?
“Não
demorei a contar-lhe o sucedido, mas antes de concluir a narrativa, era ele que
estava pálido.
“—
Veja bem — disse ele —, você está me dizendo a verdade?
“Eu
já recobrara o autocontrole, mas, agora, o terror dava lugar à
indignação.
“—
Se você se atreve a duvidar' — eu disse —, juro que dou cabo de sua vida!
“—
Não — respondeu ele —, não faça isso. Sente-se, e eu explicarei tudo. Embora
isto aqui já tenha sido um hotel, não é mais. Transformaram-no um hospital, mas
agora o prédio está vazio, à espera de uma nova ocupação. O quarto que
você mencionou era o necrotério e permanecia sempre repleto de cadáveres. O
sujeito a que você aludiu já foi realmente o recepcionista da noite, mas,
depois, passou a realizar o registro dos pacientes que davam entrada no
hospital. Não entendo como ele poderia estar aqui: faleceu há algumas semanas.
“—
E quem é você?' — perguntei.
“—
Oh, eu tomo conta do prédio. Acontece que eu estava passando por aqui agora
mesmo e, vendo a luz na portaria, entrei para investigar. Vamos dar uma
olhada naquela sala — acrescentou ele, apanhando a vela crepitante do balcão.
“—
Prefiro encontrá-lo no inferno! — eu disse, saindo em disparada para a rua. Amigo,
a Breathitt House, em Atlanta, é um lugar terrível! Jamais entre lá. ”
—
Deus me livre! A considerar a sua narrativa, o lugar não parece nada
confortável. A propósito, Coronel, quando tudo isso aconteceu?
—
Em setembro de 1864, logo após o cerco.[1]”
[1] O autor
refere-se à Batalha de Atlanta, confronto ocorrido durante Guerra da Secessão norte-americana
(22 de julho de 1864).
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