UM LINGUISTA NOTÁVEL - Conto de Ficção Científica - Paulo Soriano
UM LINGUISTA NOTÁVEL
Paulo
Soriano
Abrigar
um casal de bastets em casa, por
determinação do governo federal, foi para muitos uma honra e um sinal de
distinção. Para mim, porém, foi um estorvo.
Eu
não fui o único oficial graduado da reserva remunerada a acolher em casa um
casal de alienígenas. Muitos de meus ex-companheiros de farda, alguns deles
ex-astronautas como eu, receberam o mesmo encargo, sobretudo os solteiros, viúvos
ou divorciados sem filhos menores. A razão é evidente: teríamos bastante tempo
e disponibilidade para cuidar adequadamente dos ilustres visitantes.
Devo
dizer que os bastets não davam o
mínimo trabalho. Eram polidos, corteses e muito discretos. A princípio, não
encontrei quaisquer dificuldades por conta de sua companhia. Estas vieram
depois, quando o meu velho pai, acometido de uma forte depressão, veio morar
comigo. Meu pai precisava de meus cuidados e de minha atenção. Os bastets, também. Eu tinha que me
desdobrar em atenções nem sempre conciliáveis e isto me exasperava.
Meu
pai sofre de uma doença renal crônica, e uma artrose nos joelhos o condenou a
uma cadeira de rodas. Tem 86 anos e é um linguista respeitado. Poderia ter sido
um profissional de imensa fama, mas as suas incríveis descobertas, publicadas
em algumas revistas de pequena capilaridade, despertaram pouca atenção dos
especialistas. Meu pai é um homem muito discreto, esquivo, e nunca batalhou
seriamente por uma divulgação à altura de seus trabalhos. Está aposentado da
universidade há 16 anos, mas nunca deixou de pesquisar profundamente as antigas
línguas do Crescente Fértil, como o proto-hebraico e o hitita. Mas a sua
especialidade é o sumério, uma língua isolada, sem parentesco com as demais de
sua época. Certa feita, disse-me ele que não morreria enquanto não desvendasse
a origem daquela língua enigmática.
Logo
que chegou, o meu pai não demonstrou interesse pelos bastets. Estes formavam um casal, embora, de início, não houvesse
qualquer evidência de que fossem casados. Dormiam em quartos separados e não
demonstravam vínculo afetivo especial. O macho chamava-se Paulus e a fêmea
Alba. Os alienígenas adotaram nomes greco-romanos entre nós. E creio que os
nomes tinham alguma relação com as suas características físicas ou morais. Paulus
era um bastet de apenas um metro e
quarenta de altura; Alba, de minha altura, tinha uma bela e sedosa pelugem
cinza-claro, que contrastava com o negro profundo de seu companheiro. Como meu
pai me esclareceu, Paulus significa pequeno em latim; Alba, alva.
O
interesse de meu pai pelos alienígenas veio subitamente, quando os viu
conversando na língua de origem. Apesar de parecerem gatos, os bastets possuem lábios. Um aparelho
fonador semelhante ao nosso permite-lhes falar como se fossem humanos. Era
natural que o curioso linguista inclinasse atentamente os ouvidos aos nossos
hóspedes, tentando captar algum sentido naquilo que eles diziam. Mas o fazia
discretamente.
Certa
feita, Paulus indagou:
—
Qual a profissão do seu pai?
Antes
que eu abrisse os lábios, o meu pai, que fingia ler o seu jornal, respondeu num
rompante:
—
Sou professor aposentado da Faculdade Nestoriana de Letras.
—
Na verdade... — comecei uma explicação mais detalhada das atividades de meu
pai, mas este me interrompeu abruptamente:
—
Na verdade, esta é a única verdade! Sou um professor aposentado da Faculdade
Nestoriana de Letras, nada mais.
E
olhou, zangado, para mim. Os seus olhos negros exigiam o meu silêncio imediato.
Como coronel da Aeronáutica, sei dar ordens, quando necessário. Mas também sei
obedecer.
Alba
dirigiu um olhar significativo para o companheiro, que anuiu. Depois falou,
dirigindo-se a mim:
—
Vejo que seu pai é um homem modesto.
—
É verdade — respondi.
Naquele
mesmo dia, à noite, quando o casal de alienígenas saiu para um passeio no shopping, meu pai me disse:
—
Na verdade ele se chama Adad; ela, Innana. Isto lhe diz alguma coisa?
—
Não, pai. Não me diz nada.
—
O que estes felinos estão fazendo aqui, filho? Estão mesmo querendo interagir
com a humanidade? São mesmo tão altruístas quanto nos fazem crer?
—
Juro que não sei, pai. Mas é certo que eles estão, realmente, compartilhando os
seus conhecimentos científicos conosco — respondi. — Ensinaram-nos a fazer um
uso excelente das energias solar e escura. E a fusão nuclear deixou de ser um
mistério. Doravante, não dependeremos mais de combustíveis fósseis. Na
medicina...
—
Quantos eles são? — atalhou o meu pai, pensativo.
—
São 1.120. Como missionários mórmons, andam sempre aos pares. Mas sempre um
macho e uma fêmea. Em cada uma das principais cidades do mundo há, pelo menos,
dois casais. A maioria é de cientistas. Paulus, por exemplo, é físico nuclear. Mas
Alba não é cientista; é técnica em telecomunicações. Ela descobriu-se grávida. Está
feliz da vida.
A
partir desse dia, o meu pai não mais se recolheu à biblioteca, como de costume.
Passava o dia inteiro na sala, assistindo à televisão ou lendo novelas de
faroeste. Embora dissimulasse muito bem, eu percebia que ele estava sempre
atento à conversa dos alienígenas. Não duvido nada que, em pouco tempo, o meu
pai dominasse a linguagem coloquial de nossos visitantes.
Cerca
de um mês após sua chegada em minha vivenda, estando apenas nós dois em casa, o
meu pai me perguntou:
—
Quando haverá a assembleia geral dos alienígenas?
—
Muito em breve. Creio que na primeira semana de dezembro. Eles estarão todos
reunidos no auditório principal da sede das Nações Unidas.
—
Você tem acesso ao Comandante da Aeronáutica?
—
Claro que sim, pai. É Taketo Hori, lembra-se dele? Foi meu colega no curso
preparatório da Aeronáutica. Estudávamos juntos na nossa casa.
—
E faziam farras homéricas, também. Um rapaz negro e um nipônico, amigos
inseparáveis. Uma dupla singular. Bom rapaz, o simpático Hori. Agradeço a Deus
que ele seja o chefão. Com certeza ele lhe dará ouvidos. Procure-o com a máxima
urgência, filho.
—
Mas, por quê, pai?
—
A humanidade corre sérios riscos, meu garoto— disse-me ele.
—
Conte-me o que sabe, meu velhinho.
—
Desde a primeira vez que os vi conversando entre si, percebi que eles falavam
um idioma que me pareceu familiar. Como talvez você saiba, podemos conhecer um
idioma extinto a partir de sua escrita, mas somente podemos especular sobre a
sua fonética. De pronto, elaborei uma teoria e, quando descobri os nomes do
casal, confirmei as minhas suspeitas. Eles falam uma espécie de sumério antigo.
A fonética é bem diferente da que eu imaginava, mas não há dúvida quanto à
língua que falam. A estrutura da língua diz tudo.
—
Como pode ser, pai? — sorri amigavelmente, sem esconder a incredulidade. — O
senhor consegue entender o que eles dizem?
—
Pelos nossos antepassados cabindas e monjolos! É claro que sim, Val! Não tudo,
mas o suficiente para saber o que eles são e o que pretendem. Eles já estiveram
aqui antes. Impuseram a sua língua aos sumérios primevos, há uns cinco mil
anos. Agora voltaram. Você disse que eles formam sempre um casal e assim se
espalharam por todo o planeta.
—
Exatamente.
—
Morando com os humanos.
—
Isto mesmo.
—
Há uma expressão, que eles utilizam com frequência, que me intrigou
seriamente...
—
Qual?
—
“Ser quase vivo parado”. Depois de muito meditar, e associar a expressão ao
contexto em que é utilizada, percebi que eles se referem a vírus.
—
Vírus?
—
Por enquanto, esses seres são inócuos. Mas, daqui a pouco meses, quando as
fêmeas tiverem a primeira ninhada, as coisas vão mudar — disse-me meu pai. Vi
que seus membros tremiam, que seus olhos piscavam de excitação. Corri à
farmácia da despensa e voltei com um sedativo suave e um copo d’água. Depois de
medicado, e mais tranquilo, meu pai continuou a falar de suas descobertas:
—
Eles planejaram tudo. Querem a Terra somente para eles. São uns farsantes. Depois
de lograrem a nossa absoluta confiança — e creio que já o fizeram —, irão nos
destruir de uma forma terrível. Ao término da gestação, que dura cerca de 15
semanas, algumas centenas de distintos vírus, antes “parados”, hibernando no
útero das fêmeas, entrarão em atividade e ganharão o mundo. Eles são anódinos
para os bastets, mas letais para nós.
As múltiplas espécies de vírus nos matarão a todos quando as primeiras crias de
bastets — de sete a dez por fêmea
fecundada — nascerem. Prometa que irá procurar Hori para alertá-lo do imenso
risco que os bastets representam à
espécie humana. Prometa isto ao Dr. Sumidade.
—
Já está prometido, pai — respondi, ciente de que o meu pai sabia perfeitamente
o que estava falando. — Viajarei o quanto antes.
Procurei
o Comandante da Aeronáutica dois dias depois. Sabia que, por enquanto, o meu
pai estava em segurança, mesmo em companhia dos alienígenas.
Taketo
Hori sempre chamou o meu pai de Dr. Sumidade, mas pareceu não acreditar na mensagem
que eu lhe trazia. Eu insisti:
—
Aproveitemos a assembleia geral dos bastets
para detê-los e confinar as fêmeas. Induziremos uma delas ao parto, em ambiente
controlado, e analisaremos a ocorrência de agentes letais. Se não encontrarmos
nada, pediremos desculpas formais pelo “incidente”. Se eles forem realmente
bons, saberão nos perdoar. Mas, se os vírus forem detectados... Hori, não
podemos correr riscos.
Meu
pai tinha razão. Os bastets foram a
maior ameaça com a qual a humanidade já se defrontou. Mas não foram
exterminados. Ativistas humanitários conseguiram que eles fossem esterilizados
e confinados em uma área restrita, acessível apenas a militares e cientistas. Talvez,
concedendo-lhes uma liberdade vigiada, possamos obter deles algumas informações
científicas imprescindíveis ao nosso avanço tecnológico. Mas a barganha não
será fácil.
Fiquei
feliz por meu pai. Não apenas descobrira a origem da língua suméria — a sua
maior ambição —, como salvara a humanidade de uma iminente extinção. Ele está
muito contente, mas continua modesto. Recusa-se terminantemente a conceder
entrevistas a jornalistas. Ontem, eu disse a ele, enquanto jantávamos:
—
Quando eles vieram pela primeira vez, há cinco mil anos, não propagaram os
vírus que hospedavam. Certamente, somente vieram os machos.
—
Ah, é aí que você se engana, filho! — respondeu-me ele com ar de feliz
perspicácia. — Vieram apenas as fêmeas. Bastet era a deusa-gato do antigo
Egito...
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