A MÃO MISTERIOSA - Conto Clássico de Terror - Guy de Maupassant
A
MÃO MISTERIOSA
Guy
de Maupassant
(1840
– 1893)
Fazia-se um círculo em volta do Sr. Bermutier, juiz de
instrução, que dava a sua opinião acerca do crime misterioso de Saint-Cloud.
Havia um mês que aquele inexplicável crime alvoroçava Paris. Ninguém podia
compreender o caso.
O Sr. Bermutier, de pé, costas para a chaminé, falava,
amontoava provas, discutia as diversas opiniões, mas não chegava a uma
conclusão.
Muitas mulheres haviam-se levantado para se aproximarem dele
e ficaram de pé, o olhar fixo na boca rapada do magistrado, de onde saíam
palavras graves. As senhoras estremeciam, vibravam, crispadas por um medo
curioso, pela ávida e insaciável necessidade de pavor que é inseparável da sua
alma e que as torturava como uma fome.
Uma delas, mais pálida que as outras, pronunciou durante o
silencio:
— É pavoroso! Toca as raias do sobrenatural. Nunca saberemos
de nada.
O magistrado voltou-se para ela:
— Sim, minha senhora, é provável que nunca saibamos de nada.
Quanto à palavra sobrenatural, que acaba de empregar, não tem nada a
fazer aqui. Estamos diante de um crime habilissimamente concebido,
habilissimamente executado, tão bem envolvido no mistério que não podemos
separá-lo das circunstâncias impenetráveis que o rodeiam. Mas eu mesmo já tive,
outrora, de seguir um processo onde em verdade parecia haver qualquer coisa de
fantástico. Foi preciso abandoná-lo por falta de meios para esclarecê-lo.
Várias mulheres pronunciaram ao mesmo tempo e tão depressa
que as suas vozes pareciam uma só voz:
— Oh, conte, conte!
O Sr. Bermutier sorriu gravemente, como deve sorrir um juiz
de instrução. Continuou:
— Pelo menos não julguem que eu poderia admitir, sequer por
um momento, na aventura que vou contar, qualquer coisa de sobre-humano. Eu só
creio nas coisas normais. Mas se, em vez de empregarmos a palavra
“sobrenatural” para exprimirmos aquilo que não compreendemos, nós nos
servíssemos simplesmente da palavra “inexplicável”, seria muito melhor. Em todo
caso, no processo a que vou referir-me, foram sobretudo as circunstâncias — as
circunstâncias preparatórias — que me abalaram. Enfim, vejamos os fatos:
Eu era então juiz de instrução em Ajaccio, uma cidadezinha
branca, deitada na margem de um admirável golfo rodeado por todos os lados por
altas montanhas.
O que eu tinha particularmente a fazer ali era tratar de um
processo por vingança. Há alguns desses processos que são soberbos,
extremamente dramáticos, ferozes e heroicos. Encontram-se neles os mais belos
assuntos de vingança que se possa sonhar: ódios seculares, apaziguados num
momento, mas nunca extintos; os estratagemas abomináveis; assassinatos se
tornando massacres e ações quase gloriosas. Havia dez anos que eu só ouvia
falar do preço do sangue, desse terrível preconceito corso, que força a vingar
toda a injúria feita a qualquer pessoa, seus descendentes e parentes.
Eu vira processos em que estrangularam velhos, crianças,
primos, e tinha a cabeça cheia dessas histórias trágicas.
Ora, certo dia, soube que um inglês acabava de alugar por
alguns anos uma pequena quinta no fundo do golfo. Levava consigo um criado
francês, que tomara em Marselha ao passar por lá. Não tardou que toda a gente
se ocupasse daquele personagem singular, que vivia só no seu domicílio, apenas
saindo para caçar ou para pescar. Não se dava com pessoa alguma e com ninguém
falava; nunca vinha à cidade e todas as manhãs se exercitava durante uma ou
duas horas no tiro de pistola e de carabina.
Cercaram-se logo lendas em torno dele. Pretendia-se que era
um alto personagem que emigrara da sua pátria por causa de certos casos
políticos; outras vezes afirmava-se que se ocultava por ter cometido um crime
horrível. Chegavam mesmo a citar circunstâncias particularmente terríveis.
Na minha qualidade de juiz de instrução, quis tomar algumas
informações a respeito daquele homem; mas foi-me impossível saber o que quer o
que fosse. Dizia chamar-se Sir John Rowell.
Contentei-me, pois, em vigiá-lo de perto; mas, na verdade,
nada consegui apurar de suspeito sobre aquele personagem.
Todavia, como os rumores sobre a sua história continuavam,
engrossavam, generalizavam-se, resolvi tentar ver pessoalmente aquele
estrangeiro, e pus-me a caçar regularmente nas cercanias das propriedades em
que ele morava.
Esperei muito tempo uma ocasião. Esta se apresentou a mim,
um dia, sob a forma de uma perdiz, na qual atirei e matei na presença do
inglês. O meu cão a trouxe para mim; mas, mal agarrei na caça, apressei-me logo
a apresentar as minhas desculpas pela minha inconveniência a Sir John Rowell,
pedindo-lhe, ao mesmo tempo, que quisesse dar-me a honra de aceitar a ave
abatida.
Ele era um homem de estatura alta e cabelos rubros, barba
rubra, muito alto, muito espadaúdo, uma espécie de Hércules pacato e cheio de
polidez. Não tinha nada da rigidez inglesa e agradeceu-me, solícito, a minha
delicadeza, num francês acentuado do Além-Mancha.
Ao fim de um mês, havíamos conversado umas cinco ou seis
vezes.
Uma noite, afinal, quando eu passava diante de sua porta, vi
que ele fumava o seu cachimbo, escarranchando uma cadeira, no seu jardim.
Saudei-o. Ele convidou-me a entrar para beber um copo de cerveja.
Não me fiz de rogado.
Recebeu-me com toda meticulosa cortesia inglesa, falou
elogiosamente da França, da Córsega, declarou que gostava muito daquela região,
daquela costa.
Então lhe fiz, com grandes precauções, e sob a forma de um
vivo interesse, algumas perguntas acerca de sua vida, dos seus projetos.
Respondeu-me que tinha viajado muito, na África, nas Índias, na América. E
acrescentou sorrindo:
— Tenho corrido muitas aventuras. Oh, yes!
Depois, pus-me a falar de caçadas, e ele deu-me minúcias
curiosas sobre a caça ao hipopótamo, ao tigre, ao elefante e até ao gorila. Eu
disse:
— Todos esses animais são terríveis.
Ele sorriu:
— Oh, no! O pior de todos ser o homem.
Pôs-se a rir com boa vontade, com um bom riso de inglês
rotundo e satisfeito:
— Eu também ter caçado muito o homem.
Depois me falou de armas, e ofereceu-me a sua casa para
mostrar-me espingardas de diversos sistemas.
O seu salão era atapetado de negro, em seda preta bordada a
ouro. Grandes flores amarelas, como que correndo sobre aquele estofo sombrio,
brilhavam nele como fogo.
Anunciou:
— Era um pano japonês.
Mas, no meio da mais larga tapeçaria, uma coisa estranha me
atraiu o olhar. Sobre um quadrado de veludo vermelho, um objeto negro
destacava-se. Aproximei-me: era uma mão, uma mão de homem. Não era uma mão de
esqueleto, branca e limpa, mas uma mão negra, dissecada, com unhas amarelas, os
músculos a nu e vestígios de sangue antigos, sangue que parecia uma imundície
sobre os ossos cortados rente, como por um golpe de machado, pelo meio do
antebraço.
Ao redor do punho havia uma enorme corrente de ferro, fixa,
soldada àquele membro sórdido, ligada a uma parede por um anel tão forte que
seria capaz de segurar um elefante.
— O que é isto?
O inglês respondeu tranquilamente:
— Isto ser o meu melhor inimigo. Ter vindo da
América. Ter sido cortado com o sabre, e a pele arrancada com um seixo
cortante, e seco ao sol durante oito dias. Aoh, ser muito bom para
mim isto.
Toquei naquele destroço humano que devia ter pertencido a um
colosso. Os dedos, desmesuradamente longos, eram ligados por tendões enormes,
em parte retidos por correias. Aquela mão era horrorosa de se ver, assim
esfolada, e fazia pensar muito naturalmente em alguma vingança selvagem.
Eu disse:
— Este homem devia ser muito forte.
O Inglês respondeu, com brandura:
— Aoh, yes! Mas eu ser mais forte do que ele.
Eu ter posto esta corrente para prender ele.
Julguei que ele gracejava e disse:
— Mas agora este grilhão parece bastante inútil. A mão não
irá fugir.
Sir John Rowell tornou com toda a seriedade:
— Ela quer sempre fugir. Esta corrente ser preciso.
Num rápido olhar interroguei o rosto do inglês, perguntando
a mim próprio: “será um louco ou um farsante?”
Mas o rosto de sir
John Rowell continuava tranquilo e benévolo. Mudei de conversa e pus-me a
apreciar as espingardas.
Notei, todavia, que havia três revólveres carregados sobre
os móveis, como se aquele homem vivesse no constante temor de um ataque.
Voltei muitas vezes à sua casa. Por fim, toda a gente se
acostumara à sua presença; e Sir John tornava-se indiferente a todos.
*
Um ano inteiro se passou. Ora, uma certa manhã, lá por fins
de novembro, o meu criado despertou-me, anunciando-me que Sir John Rowell fora
assassinado durante a noite.
Meia hora mais tarde, penetrei na casa do inglês, com o
comissário-geral e o capitão dos gendarmes. O seu criado, perplexo e
desesperado, chorava diante da porta. Eu, a princípio, suspeitei daquele homem;
mas ele era inocente.
Nunca foi possível encontrar o culpado.
Estando no salão de Sir John, vi logo, ao primeiro e rápido
olhar, o cadáver estendido de costas, no meio da casa.
O colete achava-se rasgado, uma manga do casaco pendia
arrancada: tudo anunciava que se travara ali uma luta terrível.
O inglês morrera estrangulado! O seu rosto, negro e inchado,
apavorante, parecia exprimir um assombro abominável; tinha alguma coisa entre
os dentes cerrados; e o pescoço – atravessado por cinco buracos, que pareciam
feitos com pontas de ferro – achava-se coberto de sangue.
Dali a pouco chegava um médico. Examinou por longo tempo os
sinais dos dedos na carne e pronunciou estas estranhas palavras:
— Parece que foi estrangulado por um esqueleto.
Um arrepio percorreu-me as costas, e preguei os olhos na
parede, no lugar onde há tempos vira a horrível mão mutilada. Não estava mais
ali. A corrente, que antes a prendia, estava quebrada, pendendo ao abandono.
Então me baixei para o morto e encontrei em sua boca
crispada um dos dedos daquela mão desaparecida. Estava cortado — ou antes
serrado — pelos dentes, justamente na segunda falange.
Depois, passamos às investigações. Nada se descobriu. Porta
nenhuma fora forçada, nem janela, nem móvel. Os dois cães de guarda não haviam
acordado.
Eis, em poucas palavras, o depoimento do criado: havia um
mês que seu amo parecia agitado. Recebera algumas cartas, que logo queimava.
Muitas vezes, pegando um açoite, com uma cólera que parecia
loucura, batera com furor naquela mão dissecada, colada ao muro; a mão
finalmente levada, não se sabia como, na própria hora do crime.
Ele deitava-se sempre muito tarde, fechando-se com todas as
cautelas. Conservava sempre armas ao alcance da mão. Muitas vezes, de noite,
falava alto como se fosse questionado por alguém.
Naquela noite, por acaso, não fizera ruído algum, e, somente
quando viera abrir as janelas, o criado encontrou Sir John assassinado. O
criado não suspeitava de ninguém. Comuniquei o que sabia sobre o morto aos
magistrados e aos oficiais da praça pública, e foi feita em toda ilha uma rigorosa
sindicância. Nada se descobriu.
Ora, uma noite, três meses depois do crime, tive um horrível
pesadelo. Parecia-me que via a mão, a horrível mão, correr, como se fosse um
escorpião ou uma aranha, ao longo das minhas cortinas e das minhas paredes. Três
vezes acordei, três vezes adormeci e três vezes vi o horrível destroço galopar
ao redor do meu quarto, remexendo os dedos como se fossem patas.
No dia seguinte, trouxeram-me aquela mão, achada no
cemitério, em cima do túmulo de Sir John Rowell, que ali fora enterrado por não
se saber do paradeiro de sua família. Faltava o dedo indicador.
Aqui está, minhas senhoras, a minha história, nada mais que
isto que acabo de contar.
*
As mulheres, como loucas, olhavam-se pálidas e tremiam. Uma
delas exclamou:
— Mas isso não é um desenlace nem uma explicação! Nós não
seremos capazes de dormir enquanto não nos disser o que aconteceu, conforme a
sua opinião.
O magistrado sorriu com severidade:
— Oh! Eu, minhas senhoras, vou estragar certamente todos os
seus terríveis sonhos. Penso muito simplesmente que o legitimo proprietário da
mão não morrera, que veio à procura dela com aquela que lhe restava. Mas não
sei como ele conseguiu. Foi uma espécie de vingança.
Uma das mulheres respondeu:
— Não, isso não pode ser assim.
E o juiz de instrução, sempre sorridente, concluiu:
— Bem que eu disse que a minha explicação não deixaria as
senhoras satisfeitas.
Narrativa originalmente
publicada, sem indicação do autor da tradução, na revista carioca “Careta”,
edição de 18 de novembro de 1911.
existe uma adaptação deste conto na Calafrio número 3, eu tenho esse scan de HQ
ResponderExcluirsaiu na Calafrio numero 3, mas os roteiristas mudaram muita coisa, pra adaptar pros quadrinhos, roteiristas anônimos pois não aparece nem créditos do desenhista e dos roteiristas.
ResponderExcluirBarão que coisa maravilhosa essa revista Careta, fui pesquisar e achei pra ler. A internet realmente é uma verdadeira biblioteca de Alexandria rss rss acreditoque no futuro, os sites de hoje serão guardados pra uma eventual consulta dos homens do futuro, quando algo mais tecnologicamente avançado surgir e substituir a internet, creio que talvez o Metaverso ou algo melhor, acredito que esse Metaverso acho que não vai "pegar". O Homem realmente é um ser criativo, loucamente criativo...o sol voltou a raiar aqui, mas daqui a pouco chove de novo...mas dizem essas chuvas é em todo o Brasil...
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