O AMBICIOSO - Conto Clássico Sobrenatural - Coelho Neto
O
AMBICIOSO
Coelho
Neto
(1864
– 1934)
De
volta ao cemitério, onde, sem uma lágrima, deixara o corpo do pai, Felício
recolheu-se à casa deserta e, como havia luar, nem acendeu a candeia, para
poupar o azeite.
Sentando
sob o alpendre, pôs-se a olhar o arvoredo frondoso, cuja folhagem reluzia à
claridade, e, mais longe, ondulando, o canavial e o milho.
O
velho aproveitara toda a terra lavradia, respeitando apenas o pequeno bosque,
em que se abrigava a fonte, e onde ele e os camaradas iam recolher os galhos
secos com que alimentavam o lume.
Seis
homens robustos trabalhavam como jornaleiros[1],
ajudando-os no áspero labor agrícola — uns ao arado, outros na carpa, ou
colhendo, ou plantando.
As
mulheres cuidavam do serviço doméstico, e ainda raspavam a mandioca, debulhavam
o milho, batiam o feijão, retiravam o mel dos favos, e reuniam, à tarde, as
aves.
As
próprias crianças eram aproveitadas — umas guiando o gado aos pastos, outras
levando a comida aos trabalhadores, à roça; e como havia fartura, era um
encanto a vida no sítio que prosperava a olhos vistos.
Sabia-se
que o velho tinha haveres; nem ele fazia mistério disso; antes afirmava com
garbo, para estimular os homens ao trabalho: “O pouco que tenho, deu-me a
terra, assim o ganhareis, se trabalhardes com perseverança. Eu não vos engano —
tendes de mim o que mereceis. O bem que fizerdes vos será contado e pago.”
E
assim era.
Felício,
porém, não se continha aos sábados; mal sopitava[2] a
raiva quando o pai pagava as férias aos camaradas.
Aquele
dinheiro, passando a mãos alheias, doía-lhe, como se fosse a sua própria carne
tirada aos tassalhos[3];
e, sempre que se recolhia ao leito, murmurava com avareza:
—Hei
de acabar com isto! Para que tanta gente? Um só homem basta, e esse serei eu!
Assim
pensou, e assim fez.
No
dia seguinte ao enterro do velho, Felício chamou os camaradas, fez-lhes as
contas, e despediu-os.
*
* *
Quando
se viu só, Felício esfregou as mãos contente, dizendo:
—Agora,
sim! Tudo quanto fizer será meu. Não tenho mais quem coma o que eu planto, nem
quem leve os meus lucros!
Os
mesmos cães, que guardavam a roça, dando caça aos animais daninhos, foram
enxotados à pedrada; e o ambicioso ficou solitário, olhando a lavoura
exuberante que se desenvolvia ao sol.
Vieram,
porém, as chuvas, e a terra entrou a produzir doidamente. O mato apontou,
cresceu, invadindo as culturas, cobrindo os caminhos que desapareciam; e
Felício, levantando-se muito cedo, ainda com as estrelas a luzirem no céu,
saía, e lá se punha a capinar com ânsia.
Por
não ouvir as vozes dos animais que alegravam o sítio — um boi a mugir, uma
ovelha a balar, aqui uma galinha cacarejando aos pintos, adiante a pata, com a
pequenina frota penugenta dos patinhos — ficou preocupado.
Por
onde andariam? Talvez no pasto. Era melhor assim: não só lhe poupavam o
trabalho de os tratar, como ainda, alimentando-se com o que buscavam — e avia
tanta erva e eram tantos os bichinhos! — livravam-no de despesas.
E
voltava à terra com desespero.
Para
não perder tempo em fazer lume, almoçava uma fruta, e continuava a trabalhar,
casmurro.
Todo
seu esforço, porém, não conseguia conter a invasão. As ervas más apareciam em
toda a parte; e, apenas a enxada deixava um talhão, logo os rebentos
abrolhavam.
Às
vezes, ele sentava-se à borda das rampas alagado de suor, os braços doloridos,
e ficava ali inerte, com a alma cheia de desânimo, revoltado contra aquela
vegetação perniciosa que lhe comprometia a lavoura. Logo, porém, excitado pela
ambição, retomava a enxada e prosseguia o trabalho.
Em
pouco tempo, a linda, viçosa lavoura de outrora desapareceu, suplantada pelo
ervaçal bravio; e, onde o milho lourejava com a sua espiga de ouro desnastrada
ao sol, cresceram arbustos agrestes e palhegal farfalhante, por entre os quais
as cobras venenosas ratejavam chocalhando.
Os
animais, mal a noite baixava, saíam das tocas, devorando e destruindo a
plantação. Todas as manhãs, Felício parava, pesaroso, diante das covas que eles
abriram à noite, e ainda achava restos de mandioca, batatas, raízes de aipim
abandonadas à flor da terra.
Já
começava a desesperar; mas sempre ambicioso, não se resolvia a recorrer aos
jornaleiros.
Se
chamasse alguns homens, tudo voltaria ao antigo viço; mas teria de lhes pagar.
Não quis, insistiu no labor inútil que só o alquebrava, e, quando caía
prostrado, arquejando, logo ouvia os bem-te-vis, que, das árvores, pareciam
vaiá-lo e rir da sua pretensão ridícula.
Levantava-se,
enfurecido, indignado, blasfemando, atribuindo a sua desgraça aos invejosos que
haviam lançado maus olhos ao sítio.
Um
dia, sentiu na água um sabor estranho e logo suspeitou que o andavam
envenenando.
Subiu
ao bosque para examinar a fonte. Dificilmente deu com ela, tão cheia estava de
folhas e ramos podres; até cadáveres de animais boiavam em suas águas antes tão
límpidas, porque o velho, de quando em quando, mandava um dos camaradas limpar
a fonte para evitar que se formassem balseiros.
Então,
lá em cima, lançando os olhos à planície, viu toda a grandeza de sua desgraça:—
a roça era um mato intenso, e já em torno da casa os espinheiros cresciam e os
juás davam os seus venenosos frutos de ouro.
As
lágrimas saltaram-lhe dos olhos; e, compreendendo a sua impotência, deixou-se
cair em terra humilhado, certo que, sozinho, jamais conseguiria por cobro
àquele mal que era uma vingança da terra.
Lembrou-se,
então, dos homens, os leais trabalhadores que haviam ajudado o velho a ganhar o
dinheiro que lá estava, em boas moedas, no fundo da arca.
Ah!
Se todos ali estivessem... as árvores estariam cobertas de flores, as canas
estariam crescidas em touceiras, os milhos ostentariam as gordas espigas, e o
gado reluziria nédio.
O
gado... onde andariam os seus bois, as suas ovelhas, as suas cabras, os seus
cevados e bacorinhos e as aves? Fosse ele procurá-los!
Com
um arrancado suspiro desceu vagarosamente à planície.
À
noite, preocupado e sem sono, pôs-se a andar pela casa deserta.
Saindo
no alpendre, pareceu-lhe ver o velho pai sentado no banco, em que costumava
ficar à noite, fumando o seu cachimbo, a olhar distraidamente as estrelas
luminosas.
Atentou
a visão, e reconheceu o defunto. Felício pôs-se a tremer, agarrado a um dos
esteios, e ouviu o pai que, em voz triste, lhe disse:
—
É a ambição que te vai levando à miséria, meu filho! Quiseste, por avareza,
fazer o impossível e com ânsia de tudo aproveitar, tudo perdeste. Se não
houvesses despedido os auxiliares que aqui deixei, não estarias agora a
lamentar o prejuízo: onde há mato haveria flor, a água correria livremente e
pura, as roças estariam viçosas, e sentirias a companhia do teu semelhante, e
ouvirias, no teu repouso, as vozes dos animais. Fazendo felizes serias
venturoso. O muito querer é sempre prejudicial. Quem dá trabalho enriquece
sorrindo; quem, do seu pão, dá uma migalha ao pobre, farta-se e faz ventura.
Que conseguiste com a ambição?
“Antes
de lavrar, terão os homens que desbastar; e assim vais a pagar o teu pecado com
as moedas do cofre e ainda com a humilhação. Ficaste isolado, e a urze da terra
saiu a acompanhar-te. Se não quiseres que o mal entre no teu coração, enche-o
de bondade: a alma virtuosa não aceita o pecado, é como a leira bem plantada e
cuidada, onde não cresce o espinhal. Nos espíritos vazios, como nas terras sem
cultura, nascem os maus pensamentos como rebentam os cardos. Quiseste, só com
teus braços, fazer a tarefa de seis homens, e nem a tua levaste a termo:
porque, mal acabavas a carpa, logo as ervas renasciam. Chama os que despediste,
dá-lhes trabalho, e não penses que eles te furtam o pão, acrescentam-no e
abençoam-no. O egoísta é como o areal solitário, que, por não dar vida à
planta, sofre todos os rigores do sol sem o fresco dos arroios e o gozo da mais
pequenina sombra. O mundo é de todos, e só é verdadeiramente feliz quando se é
bom. Chama os que partiram, recebe-os na tua casa, paga-lhes o trabalho que
fizerem, e eles o renovarão o que a avareza destruiu e tornarás a ver os
frutos, a ouvir os gados, e outras moedas se irão juntar às que deixei na arca!”
Felício
ficou um momento amparado ao esteio, mas o silêncio não foi mais interrompido:
o velho desaparecera.
O
velho!... Teria sido ele, ou a própria consciência do avarento que assim se
manifestara?... Mistério!...
*
* *
Na
manhã seguinte, começavam a cantar os passarinhos quando Felício desceu à vila
para contratar jornaleiros.
Hoje,
o sítio é o mais belo do lugar. A casa é nova e, em torno dela, outras avultam;
e, entre as árvores frondosas, é, da
manhã à tarde, um alegre cantar de lavradores.
E
os milhos crescem, cresce o canavial, o pomar é todo fruto, e Felício prospera,
contente, vendo à volta da sua felicidade tanta gente feliz bendizê-lo.
Imagem: “O homem com a
enxada”, Jean-François Millet (1814 – 1875).
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