O LEGADO - Conto Fantástico - Paulo Soriano
O
LEGADO
Paulo
Soriano
O
avô de Klein sempre dizia que, quando morresse, lhe legaria um tesouro.
Sinceramente, e porque gostava muito do avô, Klein não queria que o bom e
misterioso velho morresse. Mas, muitas vezes, surpreendia-se a divagar,
imaginando em que consistiria o tesouro e, mais ainda, especulando sobre quando
o receberia. Vinha, então, uma censura íntima que, embora lassa, tomava as
rédeas de seu pensamento e o conduzia a paisagens menos vergonhosas. A dura
verdade, porém, é a de que, quando o avô morreu, Klein não pôde sufocar o
contentamento que subjazia na tristeza — sincera, diga-se de passagem — que
experimentou. Mas tanto a tristeza (que inundava a alma do rapaz), quanto o
contentamento (que, nem por isso, submergia), desvaneceram, e se transformaram
em profunda e amarga decepção, quando Klein conheceu a natureza do tesouro que
o avô lhe deixara. O desapontamento de Klein foi como uma facada próxima ao
coração: um golpe que não mata, mas estorva o corpo para sempre. Embora fosse
dado à leitura — não poucas de qualidade duvidosa —, Klein jamais suspeitara
que o tesouro de seu avô era, apenas, uma velha biblioteca.
Os
livros vieram em uma tarde sombria de inverno, acomodados em uma dezena de
grandes caixas de papelão, das quais apenas uma foi aberta. Sem qualquer
interesse, Klein empunhou um dos volumes. Verificou que era uma obra antiga,
bem conservada, encadernada em couro e com páginas surpreendentemente numeradas
em romanos. Tratava-se de uma obra de Charles Dickens. “A cidade e o mar”,
dizia o título. Rosenfeld Editores, lia-se mais abaixo. Ano de publicação:
MDCCCLXXIX. Abaixo desse volume vinha uma brochura pesada, de capa mole,
estampando um título sugestivo de um autor não menos famoso: “O carrasco de
Nantes”, Alexandre Dumas, 1899, Daloz Editores. Veio outro, mais recente: “A
borboleta azul”, Oscar Wilde, 1937.
Um
a um, os livros foram saindo. Em todos, escritores famosos subscreviam obras
que Klein jamais supunha que houvessem sido escritas. Seriam obras que os
autores repudiaram — ou o que o público esquecera —, indignas dos portentosos
nomes gravados na folha de rosto? Estaria, aí, o significado da palavra
“tesouro”, a adjetivar a coleção de livros velhos? Obras raras, desconhecidas,
olvidadas, de autores famosos? Klein suspeitava que sim. Repôs os livros na
caixa e a encarcerou, junto com as demais, no porão. Por muitos anos, o legado
de Klein permaneceu esquecido. E nem mesmo quando, ocasionalmente, falava-se do
avô, vinha-lhe à memória a biblioteca que herdara, e que agora dormia um profundo
sono no cômodo mais profundamente adormecido da casa.
2
Os
livros permaneceram esquecidos por muitos anos. Eventualmente, Klein descia ao
porão, onde ficava a adega, sobretudo para abastecê-la no verão e desfalcá-la
nas noites frias e taciturnas de inverno. Nessas raras ocasiões, embora olhasse
as caixas de papelão — que jaziam empilhadas contra a parede do fundo,
carcomidas como pedras tumulares, a sepultarem um defunto secular e justamente
esquecido —, não as enxergava. Escolhia o vinho de sua preferência e subia
agilmente as escadas úmidas, que conduziam à luminosa saleta contígua ao hall,
com a mente leve, impregnada de satisfação, e com os lábios estalando,
antecipando a doçura de um vinho licoroso.
Numa
dessas noites frias, quando uma mistura de vinho e aguardente caía bem, Klein
recebeu a visita de dois amigos, remanescentes dos antigos tempos da faculdade
de Letras. O primeiro deles, o ambicioso e talentoso Gosth, fora, até bem pouco
tempo, professor de renome em uma universidade estatal donde demitira-se — ou fora demitido — em circunstâncias obscuras,
malgrado rumorosas; o segundo, Abbill, tornara-se um esforçado redator-chefe de
um jornal de província que quase ninguém lia. Ambos, portanto, precocemente
decadentes. Tinham, Klein e os amigos, a mesma idade: 32 anos. Mas parece que a
roda da fortuna mantinha, agora, Klein bem no alto; Abbill fora jogado para o
ponto mais baixo e lá ficara; Gosth decaía vertiginosamente. Foi Gosth quem, do
alto de sua sabedoria, se insurgiu contra a tese que Klein acabara de expor:
—
Não, meu amigo. Esse livro não existe. Jamais existiu. É claro que não sou um
especialista em literatura inglesa, mas Dickens jamais escreveu esse livro.
É
bem verdade que Abbill — agora confortavelmente aninhado em uma poltrona próxima
à lareira, que ardia um fogo selvagem, e fazia a ponta de seu queixo reluzir e
cintilar — odiava o ar professoral de Gosth. É bem verdade, também, que este ar
pedante sempre existira. Mas agora, depois que a cátedra se fora, Gosth
tomara-se de uma empáfia insuportável. Por isso não reprimiu a irritação e a
malícia ao intervir:
—
É uma falácia, Gosth. O fato de que desconheçamos uma coisa não implica a
inexistência dessa mesma coisa.
—
Isto! Isto mesmo — acorreu Klein, esfregando as mãos de satisfação.
—
Digamos – interveio Gosth em sua própria defesa – que eu tenha incorrido em uma
falácia imperdoável. Desculpem-me, pois. Mas o ônus da prova é de quem alega,
principalmente se se afiançam coisas improváveis. Até que não haja prova em
contrário, devemos presumir que a obra “A cidade e o mar” não existe.
Como
Gosth estava na defensiva, e não exibiu a petulância de sempre, Abbill
concordou. E conclamou o outro amigo a provar as suas alegações. “Mas não sem
que antes venha outra garrafa de vinho do Porto”, acrescentou.
—
Unirei o útil ao agradável – disse o anfitrião, com jovialidade, dirigindo-se à
adega-biblioteca do porão. Retirou-se, assim, satisfeito e compenetrado,
esfregando as mãos e estalando os lábios, como de costume.
3
Somente
quando se defrontou com as caixas tumulares, Klein percebeu o quanto fora
imprudente. Sem dúvida venceria aquela aposta tácita e sem prêmios. Mas levaria
muito tempo — talvez a noite e a madrugada toda — para fazê-lo. É que não fazia
a mínima ideia em qual das caixas — a
única que abrira e depois lacrara — estava a obra esquecida de Dickens. Por um
instante, pensou em pedir um armistício. Deu a volta nos calcanhares, mas não
chegou a esboçar um passo sequer. Porque se deu conta de que algo estava errado.
Definitivamente errado. Voltou-se para as caixas e as contemplou,
demoradamente. Depois desistiu. Já estava no sopé da escada, empunhando uma
garrafa de vinho que raptara de uma prateleira empoeirada, quando, subitamente,
percebeu o porquê daquela sensação de estranheza e desconforto. Lá, no fundo do
porão, não havia mais dez caixas. Havia onze. Eram agora onze caixas. Klein
voltou e as contou, uma por uma. Duas, três vezes.
Klein
lembrava-se, perfeitamente, de que eram dez caixas. Nem uma a mais, nem uma a
menos. Ele mesmo as trouxera para baixo e as empilhara, duas as duas, contra a
parede, com o que preenchera quase todo espaço existente no fundo do porão.
Mas
agora eram onze. Loucura à parte, eram onze. E a décima segunda — menor que as
demais — não estava encostada à parede dos fundos. Jazia, solitária, no canto
inferior esquerdo do porão, com a face posterior colada à face anterior da
primeira das caixas que fora, há muitos anos, empilhada. E, se comparada às
demais, via-se que ela não se distinguia apenas quanto à dimensão. Era
infinitamente mais nova.
Klein
sacou um canivete, abriu uma das caixas, examinou alguns livros, escolheu três
e voltou para a sala de estar, onde os dois amigos se entretinham com seus
joguinhos intelectuais.
4
—
Infelizmente, você venceu, Gosth. Mas justifico a minha derrota provisória: se
você vier comigo à adega, verá que é impossível localizar, em tão pouco tempo,
um livro metido em uma das dez... digo, onze caixas empilhadas. Não faço a
mínima ideia em qual das caixas ele está.
Klein
depositou a garrafa de vinho na mesinha e a abriu. Serviu os amigos. Ia
prosseguir em sua explicação, quando Abbill exclamou:
—
Era esperado que você não retornasse com o livro, amigo. Mas vejo que você
trouxe outros. Quais são?
Klein
passou o primeiro dos livros para Gosth e o segundo para Abbill. O terceiro
permaneceu fechado em sua mão.
Gosth
passou vários minutos analisando, incrédulo, o livro que tinha nas mãos.
Enquanto folheava, as suas gordas bochechas tremiam nervosamente. Abbill
perguntou-lhe:
— O que você tem na mão, jovem Gosth?
—Um
Dickens: “O fantasma do professor Uriel”. E você?
—
Um Dumas: “A herança”. E você, Klein?
—
Outro Dumas – respondeu Klein – “O testamento”, editora Lumière, 1899.
Gosth
disse, com um quê de inveja a tremeluzir na ponta dos olhos castanhos:
—
Se esses livros são legítimos, você tem nas mãos um verdadeiro tesouro, amigo.
Um tesouro incalculável.
*
A
noite cavalgava célere quando os amigos se despediram. Abbil levou consigo o
seu Dumas. Gosth fingia desinteresse, mas o leve tremor na face (no canto dos
lábios) denunciava facilmente a avidez pela leitura do Dickens desconhecido.
Assim, cada um dos amigos levou consigo o livro escolhido e distribuído por
Klein. Mas Klein, que há muito se afastara do mundo enfadonho e pretensioso das
letras, não se deu ao trabalho de abrir o livro que reservara para si.
Trancou-se em seu quarto e só acordou quando, já no limiar da manhã seguinte,
alguém esmurrava, como um alucinado, à porta de entrada.
5
A julgar pelo estilo, e
pela genialidade narcótica, quase asfixiante, que exalava de cada uma das
páginas daquele curto romance, Uriel Gosth — talentoso professor de Literatura —
não tinha dúvida alguma: aquele livro havia sido escrito por Dickens. E mais
que isso: o Dickens dos melhores tempos.
Mas,
a considerar o conteúdo, Gosth sabia que Dickens não poderia tê-lo escrito.
Porque aquele romance —e o título já dizia isto —, embora ambientado no início
do Século XIX, era, na verdade, a vida dele mesmo, a vida de um certo professor
chamado Uriel Gosth. E como era vergonhoso ver com que maestria Dickens
dissecava, com poucos e rápidos golpes de seu bisturi literário, aquela alma
vaidosa e leviana, atormentada pelo amor à fama e pela propensão ao sucesso
rápido e a qualquer custo! Como expunha, com a precisão de um cirurgião velho e
calejado, as vísceras de um espírito tão superficial quanto ambicioso! Era
terrível ver que, no clímax do romance, Dickens apenas sugeria por que motivo
Uriel Gosth fora expulso da faculdade na qual ascendera com a rapidez de um
pensamento. Apenas sugeria, a partir do exame do caráter do professor, a
obscenidade e o opróbrio. Nada mais. Qualquer leitor de inteligência mediana
concluiria acertadamente.
Gosth
tremeu de raiva e de vergonha.
6
Quando
Klein abriu a porta, e fez entrar o velho amigo de faculdade, não poderia
esperar qualquer agressão. Mas Gosth, que nunca na vida havia agredido sequer uma
lesma, estava transtornado. A voz sumira completamente, pois tentara falar mas
não conseguira, e a sua face rechonchuda enrubescera como uma fagulha tocada
pelo vento. Partiu para cima do amigo e lhe aplicou uma série de golpes curtos
no estômago. Klein caiu, tão surpreendido com a atitude do amigo quanto pela
enormidade da dor que tão leves golpes poderiam proporcionar. Gosth viu a
lareira ainda acesa e nela atirou o livro de Dickens. Depois, saiu. Bateu a
porta atrás de si, sem murmurar uma palavra sequer.
Klein
levantou-se e correu, como podia, à lareira, para salvar do fogo o livro. E
conseguiu. Os estragos eram mínimos. Ao folheá-lo, verificou que agora havia,
surpreendentemente, várias páginas em branco ao fim do volume, como se
esperassem por ser preenchidas. Notou, também, que o livro parecia bem mais
espesso que na noite anterior. Levou consigo o livro ao quarto, onde se trancou
e procurou reatar o sono. Loucura por loucura, melhor sonhar.
7
À
tarde, Klein dedicou-se à leitura do livro de Dickens. Várias coisas lhe
chamaram de imediato a atenção. A primeira é que o livro encorpara. Estava
muito mais volumoso e, desta feita, todas as páginas estavam escritas. As
folhas em branco foram ocupadas e outras folhas impressas foram acrescidas ao
volume que levara consigo ao quarto na manhã daquele mesmo dia.
Leu
por horas a fio. E, de modo algum, poderia acreditar naquilo que lia: ali
estava o espelho da alma do velho Gosth. Sem pôr nem tirar. Aqui e ali,
emergiam alguns segredos, quase todos trancafiados na medula da alma, onde o
próprio Gosth recusava-se a entrar. A seu ver, não havia nada de ofensivo
naquilo tudo. Havia apenas a impossibilidade, nada mais.
O
volume terminava justamente naquele encontro que tiveram àquela manhã. E os
pensamentos de Gosth, durante todo o incidente, estavam magistralmente narrados
no último dos capítulos. Os seus também, ipsis litteris.
8
No
dia seguinte, descendo aos porões, Klein extraiu, de uma das caixas antigas, um
volume qualquer. Nem se preocupou em ver quem o assinava. Era um volume curto,
encadernado, e impresso com letras graúdas. Contava a história de um homem
generoso que legara o seu tesouro — uma biblioteca — ao neto preferido. Somente
no final aparecia o neto. Conduzido pelas líricas mãos invisíveis dessa
personagem, Klein reviveu, emocionado, a amargura da decepção. Somente agora
via o quanto o avô o amava e o quanto havia sido ingrato com o bom ancião.
9
Klein
levou dois dias para ler um outro volume, atribuído a Swift. Quando o terminou,
embalou-o e o postou nos correios, com grande satisfação.
10
Noutro
livro, um volume de contos, extraído da caixa mais nova, Klein reviveu, um a
um, os seus amores furtivos. Descobrira, pela pena de Boccaccio, que Kristine
havia morrido, certamente de tétano — uma morte terrível para uma garota tão
doce. Sabia onde havia sido sepultada: próxima a um anjo esculpido em mármore
negro, que segurava na mão esquerda um segador. Não sentiu surpresa alguma
quando, horas mais tarde, prostrou-se diante da lápide que encimava o túmulo da
ex-namorada.
11
O
Dumas — “O testamento” — era o livro da vida de Klein, embora exclusivamente
focado na adolescência. Parecia a ampliação da curta novela que lera há pouco
tempo, mas agora narrada sob a ótica do neto legatário. Somente quando o leu,
compreendeu perfeitamente a reação inusitada de Gosth, naquela manhã de
domingo. Espelhos nunca são bem-vindos à própria alma. Mas o que Gosth não
conseguira, ele logrou fazer. Não por vergonha, mas por cautela. Como não
queria saber o que o destino o reservava, não esperou que o livro engordasse,
invadisse-lhe a vida adulta e ultrapassasse os momentos presentes. Jogou-o ao
fogo da lareira e o viu consumir-se completamente, antes que transbordasse.
12
Quando
Klein pensou em devolver o Dickens ao porão, verificou que ele crescera mais
ainda. Depois de uma breve hesitação, decidiu saber o que Dickens acrescera à
narrativa. Mas o que leu o deixou cheio de terror. Correu ao automóvel, que
quase nunca saía da garagem, e pediu a Deus que ainda houvesse tempo de impedir
o suicídio de Gosth.
Neste
momento um telefone tocou. Ao deslizar à garagem, Klein ainda o ouviu tocar,
mas decidiu ir em frente, sob a chuva infernal que o céu despejava sobre a
terra. Era um telefonema de alguém apavorado, tão apavorado quanto ele mesmo, e
que pretendia a todo custo salvar-lhe a vida.
13
Gosth
e Klein foram sepultados no mesmo dia, quase à mesma hora e a pouco menos de
vinte metros de distância um do outro. O anjo de mármore apontava o seu
ceifador para Gosth, mas o seu olhar abarcava Klein serenamente. Gosth se
suicidara com um tiro na têmpora. Matara-se poucos minutos antes que Klein, na
ânsia de salvá-lo, perdesse o controle do carro que dirigia. Arremessou-o de
encontro a um caminhão de mudanças, que vinha em sentido contrário, na mesma
avenida, larga e movimentada, em que o amigo morava.
Substitua
os automóveis por cabriolé e carruagem, e a cena está completa, pois o episódio
da morte de Klein está escrito, com a tinta detalhista de Dumas, em “A
herança”. É que, após uma inércia quase invencível, Abbill resolveu enfrentar
Dumas. O escritor era muito prolixo para o seu gosto. Mudou de opinião ver que
o personagem central — um certo Leink — nutria-se do corpo e da alma de um
velho amigo de faculdade.
Abbill
chegou a tempo de sepultar os amigos. Quando retornou à província, encontrou
uma encomenda que Klein lhe enviara, dias antes. Era um exemplar de “Um homem
hábil”, de Swift. E se rejubilou ao saber que viveria além dos oitenta anos,
cumprindo anos tranquilos. E muito feliz ficou em não saber como, ao final,
morreria. Swift, astuta e bondosamente, não o revelou.
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