O REI PESTE - Conto Clássico Fúnebre - Edgar Allan Poe

 


O REI PESTE

Edgar Allan Pöe

(1809 – 1949)

 

Os deuses suportam e permitem aos reis

 as coisas que abominam da ralé.

 

 BUCKHURST, A Tragédia de Ferrex e Porrex.

 

Era no mês de outubro, sob o reinado cavalheiresco de Eduardo III. Por volta da meia noite, dois marujos da tripulação do Free and Easy, escuna de comércio que fazia o serviço entre Ecluse e o Tâmisa, e que estava então ancorada neste rio, achavam-se sentados na sala de uma taverna da paróquia de Santo André, em Londres, a qual tinha por insígnia Alegre Lobo do Mar. Essa sala, mal construída, com tetos em cima da cabeça, denegrida pela fumaça: semelhante, enfim, a todas as tavernas daquela época, agradava, apesar disso, aos diferentes grupos de bebedores que a ocupavam.

Dentre esses grupos, os dois marinheiros formavam, a nosso ver, o mais interessante, se não o mais notável.

O que parecia mais velho e a quem o outro dava o nome caraterístico de Legs, era também o mais alto dos dois. Tinha bem uns seis pés e meio de cima até abaixo e, consequência necessária de tão prodigiosa estatura, andavam pouco curvado. A superfluidade de altura era, contudo, mais que compensador défices noutras dimensões; era, por exemplo, tão excessivamente magro que o seu corpo, diziam os companheiros, poderia substituir perfeitamente o mastro do navio ou o pau da giba. Mas, evidentemente, essas brincadeiras e outras análogas nunca tinham podido fazer sorrir o lobo do mar. Com um grande nariz de falcão, um queixo fugidio, maxilar inferior deprimido, uns enormes olhos brancos protuberantes, a sua fisionomia, embora expressasse uma espécie de indiferença geral, não deixava de ser séria e solene além de toda a imitação ou descrição.

O segundo marujo era, pelo menos aparentemente, a inversa e a recíproca do primeiro. O seu corpo carnudo e pesado assentava sobre um par de pernas arqueadas e rechonchudas, enquanto os braços, singularmente curtos e grossos, terminados por pulsos mais que ordinários, pendiam-lhe aos lados, balançando-se no ar como as barbatanas de uma tartaruga. Tinha os olhos muito pequenos, sem cor definida e profundamente cravados nas órbitas. O nariz ficava enterrado na massa de carne que lhe envolvia as faces redondas, cheias e vermelhas; o lábio superior, grosso e rosado, repousava complacentemente sobre o inferior, ainda mais grosso, com um ar de satisfação pessoal, aumentada pelo hábito que tinha o proprietário dos ditos lábios de lambê-los de vez em quando.

Evidentemente, este último olhava para o seu camarada de bordo com um sentimento meio de espanto meio de sarcasmo; e, às vezes, quando o contemplava frente a frente, dir-se-ia o sol purpureado, contemplando, antes de se deitar, o cume dos rochedos de Ben-Nevis.

Contudo, a peregrinação dos dois amigos pelas diferentes tavernas da vizinhança, durante as primeiras horas da noite, havia sido variada e cheia de acontecimentos. Mas os recursos econômicos, por mais vastos que sejam, não podem durar sempre; era, pois, com as algibeiras vazias que os nossos amigos se tinham aventurado a entrar na taverna em questão.

No momento em que começa esta história, Legs e o seu companheiro Hugh Tarpaulin estavam sentados defronte de uma enorme garra de humming stuff, não pago, com os cotovelos apoiados sobre uma grande mesa, situada no meio da casa e a cara metida entre as mãos. De vez em quando, olhavam de soslaio para as palavras sinistras. Não há crédito que (com grande espanto e indignação sua) estavam escritas sobre a porta, em caracteres de giz. Não que a faculdade de decifrar aqueles caracteres escritos (faculdade então considerada entre o povo quase tão cabalística como a arte de traçá-los) pudesse, com estrita justiça, ser imputada aos dois discípulos do mar, mas algo havia na figura e no conjunto daquelas letras que pressagiava, na opinião dos dois marítimos, grande temporal e que os decidiu, de repente, segundo a linguagem metafórica de Legs, a arrear os mastros e a fugir diante do vento.

Na consequência daquela decisão, os dois amigos, depois de terem consumido o resto da cerveja, abotoaram convenientemente os casacos e bateram em retirada. Tarpaulin entrou ainda duas vezes pela chaminé dentro, julgando que era a porta da rua, mas por fim conseguiu sair e, meia hora depois da meia noite, os nossos heróis esgueiravam-se, com toda a velocidade, através de um beco estreito, na direção das escadas de Santo André, imediatamente perseguidos pela taverneira do Alegre Lobo do Mar.

Muitos anos, antes e depois da época em que se passa esta dramática, história, o grito sinistro “A Peste!” retumbava periodicamente por toda a Inglaterra, mas mais em particular pela metrópole. A cidade estava em grande parte despovoada e, nos horríveis bairros vizinhos do Tâmisa, no meio desses becos negros, estreitos e imundos onde o demônio da peste tinha —diziam — fixado a sua residência, passeavam à vontade o espanto, o terror e a superstição.

Esses bairros estavam condenados e era proibido a toda a gente, sob pena de morte, perturbar-lhes a solidão. Contudo, nem o decreto do monarca, nem as barreiras enormes levantadas à entrada das ruas, nem a perspectiva da morte horrorosa, que era quase certa ao miserável que ousava aventurar-se naqueles sítios proscritos, guardavam as habitações desguarnecidas e solitárias de serem despojadas do ferro, do cobre, do chumbo e de qualquer artigo do qual pudesse tirar-se o mínimo lucro.

 Todos os invernos, na ocasião da abertura anual das barreiras, foi comprovado que as fechaduras, os ferrolhos e os subterrâneos secretos tinham servido de pouco para proteger as amplas provisões de vinhos e licores que muitos negociantes da vizinhança, em consequência dos perigos e dos incômodos do deslocamento, se tinham resignado a confiar, durante o período da proscrição, a uma garantia tão insuficiente.

Mas, entre o povo aterrorizado, poucas pessoas atribuíam esses fatos a mãos humanas; os Espíritos, os Duendes da peste, os Demônios da febre, tais eram para o povo os verdadeiros criminosos. Contavam-se, a este respeito, tantas histórias e tão horríveis que, por fim, toda a massa das edificações condenadas foi envolvida no terror, como num sudário, e até os próprios ladrões, espantados pelo terror supersticioso que as suas depredações tinham criado, acabaram por abandonar o vasto circuito do bairro amaldiçoado às trevas, ao silêncio, à peste e à morte.

Foi uma das barreiras de que falamos que deteve subitamente a fuga de Legs e do digno Hugh Tarpaulin. Não podendo voltar para trás, por causa dos seus perseguidores que estavam quase sobre eles, não havia tempo a perder. Para marinheiros pur sang, escalar o tabuado toscamente construído era uma brincadeira; exasperados pela dupla excitação do vinho e da carreira, os dois fugitivos saltaram, pois, resolutamente para o outro lado e continuaram a sua corrida delirante, com gritos e urros, perdendo-se em pouco tempo naquelas profundezas complicadas e perigosas.

Se o vinho não lhes tivesse feito perder todas as faculdades morais, o horror da situação teria paralisado os seus passos vacilantes. O ar estava frio e enevoado. As pedras arrancadas da calçada jaziam numa desordem medonha por entre a relva alta e vigorosa. A maior parte das ruas estavam obstruídas pelas ruínas das casas desmoronadas. Um cheiro fétido e deletério reinava por todos os lados e, graças à luz pálida, que mesmo à meia noite emana sempre de uma atmosfera vaporosa e pestilencial, podiam ver-se estendidos pelas ruas e pelos becos, ou apodrecendo dentro das habitações sem janelas, os cadáveres de muitos ladrões noturnos, detidos pela mão da peste na perpetração das suas façanhas.

Mas não estava no poder de imagens, de sensações ou de obstáculos de semelhante espécie parar a carreira de dois homens que, naturalmente destemidos, e naquela noite cheios a transbordar de coragem e de humming stuff, teriam intrepidamente entrado, tão firmes quanto o seu estado permitisse, pela própria goela da morte. Na frente, sempre na frente, corria o sinistro Legs, fazendo ressoar os ecos daquele deserto solene com urros semelhantes ao grito de guerra dos índios; e na retaguarda, sempre na retaguarda, rebolava o rechonchudo Tarpaulin, agarrado ao casaco do primeiro e ultrapassando todos os esforços, ainda os mais valorosos, do seu ágil companheiro, na música vocal, em rugidos de baixo, tirados das profundidades dos seus pulmões.

Em pouco tempo chegaram ao foco principal da peste. Então, a cada passo, ou antes a cada trambolhão, o caminho ia-se tornando mais horrível e mais infecto: as ruas mais estreitas e mais embrulhadas. Pedras enormes e traves, caindo de vez em quando dos tetos arruinados, atestavam pelas suas quedas pesadas a prodigiosa altura das casas. Quando tinham de praticar alguma passagem difícil, através dos frequentes montes de caliça, não era raro que as suas mãos encontrassem um esqueleto ou se enterrassem em algum monte de carnes decompostas.

De repente, os marujos tropeçaram e caíram à entrada de uma edificação de aparência sinistra. O desesperado Legs deu um grito mais agudo que os precedentes e do interior da casa respondeu-lhe uma explosão rápida, sucessiva de gritos selvagens, demoníacos, que pareciam gargalhadas. Sem se intimidarem com aqueles sons, que, pela sua natureza, em semelhante lugar e em tal momento, teriam feito gelar o sangue em peitos menos intensamente incendiados, os nossos dois bêbados arrumaram um encontrão à porta, arrombaram-na e entraram por ali dentro, soltando um bando de imprecações.

A sala em que foram cair era por acaso uma agência fúnebre. A um canto, junto da porta, havia um alçapão aberto que se abria para uma série de adegas, cujas profundezas, como o revelou um som de garrafas a quebrarem-se, estavam bem fornecidas do seu conteúdo tradicional. No meio da casa via-se uma mesa posta; no meio da mesa uma taça gigantesca, cheia de ponche; garrafas de vinho e de licor juntamente com bilhas, púcaros, frascos e vasos de todas as formas e de todas as qualidades estavam espalhados por cima da mesa com grande profusão. Em redor, sentados em cavaletes fúnebres havia uma assembleia composta por seis pessoas que vamos passar a descrever uma por uma.

Defronte da porta, num lugar um pouco mais elevado que os dos outros, estava um personagem que parecia ser o presidente da festa. Era um ser de estatura descomunal, descarnado, ainda mais alto e mais magro que Legs, o que foi para este último motivo de grande admiração. A sua fisionomia amarela como uma cidra não tinha particularidade alguma digna de descrição, a não ser uma fronte tão extraordinária e horrorosamente larga, que, à primeira vista, parecia um boné ou uma coroa de carne, cobrindo-lhe a cabeça natural. A boca, arreganhada, tinha uma expressão de afabilidade espectral e os olhos, pequenos e fundos, luziam com o brilho singular da embriaguez. Trajava um manto de veludo negro, ricamente bordado, que o cobria desde a cabeça até aos pés, flutuando ligeiramente em volta do corpo como uma capa à espanhola. Trazia na cabeça um penacho abundante de penas de corvo, que ele balanceava daqui e dacolá com ar de grande presunção; e na mão direita um fêmur humano com o qual acabava de tocar um dos membros da companhia para lhe dar uma ordem.

Em frente desse cavalheiro, com as costas voltadas para a porta, estava uma senhora cuja fisionomia não era nada menos extraordinária. Ao contrário do personagem que acabamos de descrever, não tinha que se queixar como ele da magreza anormal: A sua figura parecia-se muito, aliás, com o enorme barril de cerveja que se erguia a um dos cantos da casa. A sua fisionomia, singularmente redonda e vermelha, tinha a mesma particularidade que mencionamos já no caso do presidente; quer dizer que uma só feição do seu rosto merecia caracterização especial. O fato é que o perspicaz Tarpaulin viu logo que a mesma observação podia aplicar-se a todas as pessoas da assembleia; cada uma parecia ter aproveitado para si um bocado de fisionomia. Na dama em questão, esse bocado era a boca, uma boca que começava na orelha direita e acabava na orelha esquerda, desenhando um abismo medonho onde os brincos mergulhavam a cada instante, apesar dos esforços que ela fazia para a conservar fechada. A sua toalete consistia num sudário cuidadosamente engomado, afogado no pescoço por uma gola de musselina.

À sua direita estava uma jovem minúscula, que ela parecia proteger. Essa delicada criaturinha apresentava no tremor dos dedos macilentos, no desmaiado dos lábios e na cor lívida do rosto sintomas evidentes de uma tísica incurável. Contudo, havia em toda a sua pessoa, na maneira elegante de vestir uma bela e comprida mortalha de cambraia finíssima que a envolvia, na graciosidade singela do penteado e no meigo sorriso que lhe pairava nos lábios um certo atrativo simpático e uma grande distinção; mas o nariz extremamente comprido, delgado, sinuoso e pustulento passava-lhe para baixo do lábio inferior; e essa tromba, apesar da delicadeza com que ela a manobrava de um para o outro lado com a ponta da língua, dava à sua fisionomia uma expressão um tanto equívoca.

Do outro lado, à esquerda da dama hidrópica, estava um velhinho inchado, asmático e gotoso. As faces pousavam-lhe em cima dos ombros como dois enormes odres de vinho do Porto. Tinha os braços cruzados e uma das pernas, envolvida em ligaduras, pousada sobre a mesa. O seu ar era assaz importante. Evidentemente tirava grande orgulho do invólucro pessoal, principalmente de um sobretudo de cor vistosa que devia efetivamente ter-lhe custado muito dinheiro; era feito de uma dessas gualdrapas de seda, curiosamente bordadas, pertencentes aos escudos gloriosos que se costumam suspender, na Inglaterra e noutras partes, num lugar bem patente nas casas das grandes famílias ausentes.

À direita do presidente estava um cavalheiro de calção e meia branca que tremelicava constantemente de um modo visível, com um tique nervoso, a que Tarpaulin chamou os terrores da embriaguez. Tinha os queixos atados com uma ligadura de musselina e os braços ligados do mesmo modo pelos pulsos, o que não lhe permitia servir-se, muito à vontade, dos licores que estavam na mesa; precaução necessária, segundo a opinião de Legs, tendo em vista a expressão embrutecida da sua fisionomia, cuja feição predominante era um par de orelhas prodigiosas, completamente impossíveis de esconder, que surgiam no espaço, arrebitando-se de vez em quando, como que atacadas de espasmos, ao ruído de cada garrafa que se desrolhava.

Defronte deste estava o sexto e último personagem, o qual, sofrendo de paralisia, devia, a falar a verdade, sentir-se seriamente incomodado dentro da extraordinário vestimenta que o comprimia. Essa vestimenta — talvez única no seu gênero —consistia num bonito esquife de mogno, novo em folha. A tampa do caixão caia-lhe sobre a cabeça como um capacete, dando a toda a sua fisionomia uma expressão de indescritível interesse. Os braços passavam através de duas cavas abertas dos lados ao jeito de mangas, tanto por elegância como por comodidade; mas apesar disso o traje do desgraçado impedia-o de se sentar como os outros convivas e obrigava-o a ficar encostado ao cavalete, formando com este um ângulo de quarenta e cinco graus. Os seus olhos, de um tamanho extraordinário, volviam e dardejavam para o teto os terríveis globos esbranquiçados, como que no espanto absoluto da própria enormidade.

Em vez de copo, cada conviva tinha diante de si metade de um crânio. Por cima deles via-se um esqueleto humano, suspenso por meio de uma corda atada à perna direita e presa ao teto por um gancho de ferro. A outra perna, completamente solta, pendia do corpo em ângulo reto, fazendo dançar e piruetar toda a carcaça desconjuntada a cada rajada de vento que penetrava na sala. O crânio dessa coisa horrorosa continha uma certa quantidade de carvão aceso, que derramava sobre toda a cena uma claridade vacilante, porém viva; caixões, tumbas e todos os diferentes artigos de um armazém de trastes fúnebres, empilhados a uma grande altura, impediam os raios da luz de se escapar para a rua.

À vista daquela assembleia extraordinária, do seu aparato ainda mais extraordinário, os nossos dois marujos não se portaram com o decoro que se teria podido esperar deles. Legs, encostando-se à parede mais próxima, deixou cair o queixo ainda mais do que o costume e desenrolou os vastos olhos em toda a sua extensão, ao passo que Hugh Tarpaulin, baixando-se a ponto de quase pôr o nariz em cima da mesa e batendo com as mãos nos joelhos, despediu uma gargalhada estridente, ou seja, um rugido longo, ruidoso e atroador.

Contudo, sem se escandalizar com uma conduta tão prodigiosamente grosseira, o presidente sorriu muito agradavelmente para os dois intrusos, cumprimentou-os com um movimento de cabeça cheio de dignidade, levantou-se, deu o braço a cada um e conduziu-os para os cavaletes que as outras pessoas da assembleia acabavam de instalar em sua honra. Legs não fez a mínima resistência e sentou-se onde o mandaram, mas o galante Hugh transportou o seu cavalete para o outro lado da mesa, colocou-o na vizinhança da pequena tísica da mortalha, sentou-se ao lado dela e, despejando um crânio de vinho, bebeu-o em honra de relações mais íntimas. A semelhante atrevimento, o hirto cavalheiro do esquife pareceu imensamente furioso e isso teria podido dar lugar a sérias consequências se o presidente, batendo com o seu cetro em cima da mesa, não tivesse chamado a atenção dos presentes para o discurso seguinte:

— A feliz ocasião que se apresenta obriga-nos...

— Pare com isso! — interrompeu Legs com grande seriedade. — Pare com isso e diga-nos, antes, quem diabo são vocês todos e o que fazem aqui, equipados como os demônios no inferno, bebendo desta maneira a boa pinga do nosso honrado camarada Will Wimble, o gato pingado!

Àquela imperdoável amostra de má educação, toda a assembleia se agitou, entoando rapidamente um coro de gritos diabólicos semelhantes aos que tinham primeiro atraído a atenção dos marujos. O presidente, todavia, não tardou a recobrar o sangue frio e, voltando-se para Legs com toda a dignidade, respondeu:

— É com a melhor das vontades que satisfazemos a curiosidade de hóspedes tão ilustres, embora não tenham sido convidados. Saiba, pois, que sou o monarca deste império, onde reino absolutamente sob o título de Rei Peste I. Esta sala, que vocês supõem muito injuriosamente ser a loja de Will Wimble, contratador de enterros — homem que não conhecemos e cujo nome plebeu jamais, até agora, ressoado aos nossos reais ouvidos —, esta sala, digo, é a sala do trono do nosso palácio, consagrada aos conselhos do reino e a outros destinos de uma ordem sagrada e superior. A nobre dama sentada defronte de nós é a Rainha Peste, nossa Sereníssima esposa. Os outros personagens ilustres que veem são todos da nossa família; todos têm nos nomes respetivos a prova da origem real: Sua Graça o Arquiduque Peste-Ífero; Sua Graça o Duque Peste-Ilencial; Sua Graça o Duque Tem-Pestuoso; e Sua Alteza Sereníssima a Arquiduquesa Anna-Peste.

— Quanto à sua pergunta — acrescentou —, relativamente aos negócios que tratamos aqui em conselho, é inútil dizer que esse assunto, pertencendo unicamente ao nosso interesse real, não tem importância senão para nós. Entretanto, em consideração pelas atenções que lhes são devidas como hóspedes e como forasteiros, dignar-nos-emos ainda explicar-lhes que estamos aqui, esta noite, preparados por profundas e cuidadosas investigações, para examinar, analisar e determinar peremptoriamente o espírito indefinível, as incompreensíveis qualidades e a natureza dos incomparáveis tesouros da boca: vinhos, cervejas e licores desta excelente metrópole. Procedemos assim não somente por interesse pessoal, mas também para aumentar a prosperidade do soberano que não é deste mundo, que reina sobre nós todos, cujos domínios não têm limites e cujo nome é a Morte!

— Cujo nome é Davy Jones! — exclamou Tarpaulin, oferecendo à sua vizinha um crânio cheio de licor e despejando outro para si mesmo.

— Profano atrevido! — exclamou o presidente, voltando-se para o digno Hugh. —Profano e execrável patife! Acabamos de dizer que, em consideração por direitos que queríamos respeitar, mesmo nas suas desprezíveis pessoas, íamos responder às perguntas tão grosseiras como intempestivas que você teve o atrevimento de nos dirigir. Contudo, visto a sua intrusão profana nos nossos conselhos, é do nosso dever condenar, você e o seu companheiro, a beber cada qual um galão de black strop à prosperidade deste reino. Terão de bebê-lo de joelhos e de um só trago. Depois, se quiserem, poderão continuar o seu caminho ou ficar aqui e partilhar os privilégios da nossa mesa, conforme lhes aprouver.

— Isso seria absolutamente impossível — replicou Legs, a quem os grandes ares e a dignidade do rei Peste haviam evidentemente inspirado alguns sentimentos de respeito e que se levantara enquanto este falava. — Isso seria, digne-se Vossa Majestade refletir, uma coisa absolutamente impossível, arrumar no meu porão somente a quarta parte do licor que Vossa Majestade acaba de dizer. Não falando de todas as mercadorias que carregamos esta manhã a bordo e sem mencionar as diversas cervejas e licores que embarcámos esta noite nos diferentes portos, trazemos um forte carregamento de humming stuff comprado na taverna do Alegre Lobo do Mar. Vossa Majestade far-nos-á pois a mercê de aceitar a boa vontade pela ação, porque não posso, nem quero de modo algum, engolir mais uma gota que seja, muito menos uma gota dessa vil mixórdia que dá pelo nome de black strop.

— Pare com isso! — interrompeu Tarpaulin, tão espantado com o tamanho do discurso como com a recusa do companheiro. — Pare com isso, marinheiro de água doce! Não diga nem mais uma palavra. O meu casco está ainda suficientemente leve para acolher a minha e a sua parte do carregamento. Se você não pode arrecadar nem mais um grão, eu acharei lugar para ele no meu porão, mas...

— Esse contrato — interrompeu o presidente — está em completo desacordo com os termos da sentença, que por sua natureza é módica, incomutável e não passível de apelação. O castigo que impusemos há de ser executado à letra e sem um minuto de hesitação. Aliás, decretamos que sejam amarrados um ao outro, pela cabeça e pelos pés, e afogados como rebeldes naquele barril de cerveja!

 — Ora, aí está uma sentença! Que sentença! Equitativa, judiciosa sentença! É um decreto glorioso! Digna, irrepreensível e santa condenação! — gritaram ao mesmo tempo todos os membros da família Peste. O rei franziu a fronte em rugas inumeráveis. O velhinho gotoso soprou como um fole; a senhora da mortalha ondulou graciosamente o nariz, da esquerda para a direita e vice-versa; o cavalheiro do calção branco arrebitou convulsivamente as orelhas; a senhora do sudário abriu a goela como um peixe agonizante; e o homem do caixão de mogno entesou-se ainda mais e arregalou os olhos para o teto.

— Ah! ah! — disse Tarpaulin, desatando a rir no meio da agitação geral. — Ah! ah! ah! Saiba o senhor Rei Peste que dois ou três galões de black strop são uma bagatela para um barco vasto e sólido como eu, mas quando a beber à saúde do Diabo (que Deus lhe perdoe) e a pôr-me de joelhos diante de Sua Reles Majestade (que tão certo como ser eu um pecador não é mais de que Tim Hurlygurly, o palhaço!), oh!... Bem, isso é um negócio que ultrapassa absolutamente as minhas posses e a minha inteligência.

Não o deixaram acabar tranquilamente o discurso. Ao nome do Tim Hurlygurly, todos os convivas pularam nas suas cadeiras.

— Traição! — bramiu Sua Majestade o Rei Peste I.

— Traição! — exclamou o velhinho gotoso.

— Traição! — latiu a Arquiduquesa Anna-Peste.

— Traição! — resmungou o cavalheiro de queixos atados.

— Traição!— rosnou o homem do esquife.

— Traição! Traição! — gritou Sua Majestade a mulher da goela; e, agarrando o desgraçado Tarpaulin pela parte posterior das calças, levantou-o ao ar e deixou-o cair, sem cerimônia, no vasto tonel da cerveja.

 Tarpaulin boiou ainda durante alguns segundos e finalmente desapareceu no turbilhão de espuma que os seus esforços haviam levantado no líquido, já em si muito espumoso.

O marujo grande não viu com resignação a derrota do seu camarada. Atirando o rei Peste para dentro do alçapão aberto e tapando-o violentamente, o valente Legs proferiu uma praga medonha e correu para o meio da sala. Depois, puxou o esqueleto suspenso por cima da mesa com tamanha força e boa vontade que o arrancou, deixando a sala completamente às escuras e quebrando, ao mesmo tempo, a cabeça do velhinho gotoso. Precipitou-se então, com toda a sua força, sobre o tonel cheio de cerveja e de Hugh Tarpaulin, e despejou-a no meio do chão, produzindo um dilúvio de cerveja tão abundante, tão impetuoso e tão invasor que a sala foi inundada de uma parede à outra, a mesa deitada por terra com tudo o que tinha em cima, os cavaletes atirados uns para cima dos outros, o vaso do ponche lançado contra a chaminé. As senhoras desmaiaram, pilhas de artigos fúnebres flutuavam por aqui e por ali; os vasos, as bilhas, os frascos e as garrafas confundiam-se numa misturada horrorosa, destruindo-se uns aos outros. O homem dos tremeliques foi afogado imediatamente; o cavalheiro paralítico navegada ao largo dentro do seu esquife e o vitorioso Legs, agarrando pela cintura a volumosa dama do sudário, precipitou-se com ela para a rua e aproou imediatamente na direção do Free and Easy, rebocando o temível Tarpaulin, que, tendo espirrado três ou quatro vezes, ofegava e bafejava atrás dele, arrastando consigo a Arquiduquesa Anna-Peste. 

 

Tradução de autor desconhecido do final do séc. XIX/início do séc. XX. Fizeram-se breves adaptações textuais. 


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A MÁSCARA DA MORTE ESCARLATE - Conto de Terror - Edgar Allan Poe

O RETRATO OVAL - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe

NO CAMPO DE OLIVEIRAS - Conto Trágico - Guy de Maupassant

O GATO PRETO - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe