WIRELESS - Conto de Terror - Mauren Guedes Müller

 


WIRELESS

Mauren Guedes Müller

 

Era impossível relaxar naquelas circunstâncias. Porém, o fato de estar deitado sobre uma maca fez com que André se lembrasse de alguns exames de rotina que havia feito no Brasil, nos quais sempre havia um enfermeiro que lhe dizia para relaxar. Fechou os olhos e respirou fundo, ao mesmo tempo em que se perguntava como o destino acabara por colocá-lo naquela situação, como raios o sonho americano se transformara num pesadelo tão terrível.

Lembrou-se de quando chegara nos Estados Unidos, de sua rápida ascensão, de auxiliar a programador, naquela multinacional em que se empregara. Vieram-lhe à mente as imagens da linda americana com quem se casara e da filhinha que lhes nascera. Mas também se lembrou, com detalhes, das emoções terríveis e estranhas que o haviam dominado completamente naquela determinada ocasião, sem que ele mesmo soubesse de onde vinham, sem que ele mesmo fosse capaz de entender por que elas haviam surgido.

Sentiu o tiopentato de sódio sendo injetado em sua veia através de um longo tubo de plástico. Abriu os olhos, virou a cabeça e observou o vidro espelhado. Sabia que, por trás dele, havia olhares de curiosidade, ou de repulsa, ou de ódio, mas, com certeza, nenhum olhar piedoso. Voltou o rosto na direção oposta.

Então, para seu espanto, deparou-se com um homem alto, forte, de aparência assustadora, que o encarava com sarcasmo. Vestia uma roupa preta que contrastava com o branco das paredes, causando-lhe uma impressão assustadora.

Who are you? – perguntou.

O homem cravou os olhos nos dele e abriu um sorriso cruel, deixando entrever os dentes amarelados, os caninos extremamente pontiagudos. E não emitiu nenhum som. Porém, André conseguiu ouvir a resposta, conseguiu senti-la dentro de sua mente.

– Quem sou eu? Você não entenderia, André. Eu sou um espírito das trevas. Mas, como você não acredita em espíritos, vou usar uma linguagem que você entende. Pense em mim como um programa de computador.

André sentiu que começava a perder o comando de seus músculos. Porém, ao contrário do que imaginava e esperava, sentia-se bem consciente, cada vez mais consciente, terrivelmente consciente.

What are you doing here? – perguntou, já com grande dificuldade para falar.

A criatura, novamente sem mover os lábios, como se pudesse se comunicar diretamente com o cérebro de André, transmitiu-lhe mais algumas palavras, que, no entanto, pareceram-lhe mais nítidas do que se as tivesse ouvido.

– Pode usar o português, André. Gostei de sua língua natal, e também gostei dos palavrões que me ensinou.

André tentou falar, mas já não pôde. Perdera completamente o controle de seus músculos, seus lábios já não lhe obedeciam. Todavia, formulou a frase em sua mente, certo de que a criatura a captaria:

– Eu não conheço você. Como posso ter-lhe ensinado alguma coisa?

– Agora, vem a melhor parte, André. Agora, eu vou lhe dar uma aula sobre os espíritos. Preste muita atenção, pois é a última coisa que você vai aprender.

André o encarou, sentindo-se cada vez mais assustado.

– Como já lhe disse – principiou a criatura, mentalmente –, você pode me entender como sendo um programa de computador. Mais especificamente, pense em mim como um vírus, André. O hardware que nós infectamos é o cérebro humano, André. Um vírus que se comporta de várias maneiras diferentes, dependendo de sua intenção, cada vez que infecta um hardware.

– Um hardware? perguntou André, mentalmente.

– Sim. O hardware que nós infectamos é o cérebro humano, André.

André sentiu um frio percorrer-lhe os membros já entorpecidos. Ao mesmo tempo, porém, uma ideia se insinuou em sua mente. Mas a criatura a adivinhou e destruiu-lhe rapidamente a esperança.

– Antes que você pense que, já que um demônio funciona como um vírus, você fez aquilo porque estava possuído, deixe-me esclarecer que você nunca esteve completamente possuído, André. Outras pessoas, sim. Mas você, não.

– Não posso entender como aquilo foi acontecer – pensou André, angustiado.

– Um espírito – continuou o ser – funciona como um software. No caso dos espíritos humanos, há a necessidade de um hardware para que funcionem. Você nunca acreditou em Deus, não é? Pois fique sabendo que Ele é o programador por excelência.

– Programador?...

– Sim. Mas há outras coisas que eu quero lhe dizer, André. E tenho de ser rápido, pois nós não temos muito tempo...

Nesse instante, André sentiu o bromuro de pancurônio sendo introduzido em suas veias. Tentou não pensar no que aquela substância lhe causaria, embora antevisse a angústia que o esperava. Mas imediatamente a voz mental do demônio voltou a chamar-lhe a atenção.

— O que acontece quando se desliga a fonte de energia de um computador, André?

— Ele apaga?

— Sim. Mas, no caso do cérebro humano, ele não apenas apaga como se destrói. Todo o hardware que passar muito tempo desligado acaba se deteriorando, André. Mas, no caso do cérebro, esse tempo é muito, muito curto.

André sentiu-se gelar de medo, ao mesmo tempo em que sua angústia crescia. O medo tentava fazê-lo respirar mais rápido, mas seu diafragma já não o obedecia mais. Um desespero crescente apoderou-se dele.

— Sensação horrível, não? perguntou o demônio. — Você quer respirar e não pode... Deve ser uma sensação parecida com a que sua esposa e sua filhinha sentiram...

— Não posso entender o que aconteceu — formulou André, mentalmente.

— Diga-me, André, por que você confessou imediatamente o crime à polícia e veio a se colocar nesta situação tão terrível?

— Bem, eu estava muito perturbado, em estado de choque, e... Confesso que me esqueci de que não estava mais no Brasil.

— Então foi porque você se esqueceu de que, aqui no Texas, acabaria sobre esta maca, recebendo essas injeções letais.

— Sim. Mas o que não entendo é como fui matá-las. Eu as amava!

— Eu sei disso. Ao contrário do que a polícia pensava, você não se casou com Jennifer apenas para facilitar sua permanência nos Estados Unidos. Você a amava mesmo, e também amava a pequena Nancy. — A criatura o encarou, cravando-lhe os olhos. — Quer saber o que aconteceu? perguntou. — Quer mesmo saber a verdade?

André juntou todas as suas forças para formular mentalmente a resposta:

— Sim. Quero saber a verdade, por pior que seja. Quero saber como foi que me tornei este monstro.

O demônio curvou-se sobre ele.

— A verdade — respondeu a criatura, devagar — é que você nunca foi esse monstro, André. Você não as matou.

— Como? perguntou o jovem, surpreso.

— Seu único crime foi ter entrado em sua casa sem verificar as redondezas. Quando você estava colocando a chave na porta, naquela noite, um homem o agrediu, deu-lhe uma pancada na cabeça e você desmaiou. Então, esse homem entrou na casa, estrangulou sua esposa e sua filhinha com um pedaço de corda e depois foi embora. Ele estava de luvas, e, quando você acordou, pegou a corda, deixando nela suas impressões digitais. Mas o psicopata que matara sua família já estava longe naquela hora, André.

— Mas... Não é possível! Eu me lembro de tê-las matado! Lembro-me inclusive da raiva que sentia enquanto as estrangulava, como se... Como se eu as odiasse, ao invés de amá-las!

— Lembra? sorriu o demônio. — Aí é que vem o mais interessante. Quando eu infectei o cérebro daquele homem, eu agi como um vírus, e o fiz matá-las daquela maneira. Mas, quando ele foi embora, eu fiquei na casa, e então infectei você, André. Entrei em sua mente, e implantei a memória daqueles assassinatos. Fiz com que você se confundisse e achasse que se lembrava de ter feito o que esse outro homem fez. Você carrega lembranças que não são suas, e agora vai morrer por causa delas. Não é impressionante?

André, já completamente sem ar, olhou atônito para a criatura. Sua mente paralisou-se por alguns instantes. Súbito, porém, teve uma ideia, como que um último lampejo em sua agonia:

— Mas se o meu espírito é um software, ele pode sobreviver ao meu cérebro! Afinal, hardware e software não são a mesma coisa!

O demônio fez uma careta.

— Sabe, André, até que você tem razão. O espírito humano é um software que pode muito bem ser salvo, numa espécie de back up. Desde que a pessoa esteja conectada à Rede.

André sentiu o medo aumentar.

— À... Rede?...

— A Rede, André. Deus. Esse mesmo Deus que em que você tanto se gabava de não acreditar. Mesmo assim, se você o procurasse, talvez Ele ainda fosse capaz de perdoá-lo, André. Só que você não tem tempo. Estão tirando você da tomada agora mesmo...

Então, André sentiu o último líquido penetrando em suas veias. O cloreto de potássio...

— Parem! tentou desesperadamente gritar. — Eu sou inocente! Inocente!...

Mas todos os seus esforços foram em vão.



 


Richard acordou no meio da noite, em pânico. Sentou-se na cama e respirou fundo. Caramba, sua formação era de enfermeiro, não de carrasco. Tinha que mudar de emprego, não podia mais continuar ganhando a vida daquela maneira tão horrível.

Ainda podia sentir a tortura que o sonho lhe causara: a falta de ar, a sensação de que seu sangue estava pegando fogo, a dor no peito, o desespero de querer gritar e não poder. Era tudo tão absolutamente real em sua mente que tinha certeza de que se tratava das últimas sensações daquele estrangeiro que executara no dia anterior. Mas não podia entender como as absorvera. Mantivera-se afastado, acionando, por trás de um vidro, a injeção das drogas letais no corpo do infeliz. Ele devia estar mesmo perturbado, pois pudera vê-lo perguntar, em inglês, “quem é você” e “o que você está fazendo aqui” para o nada, antes de morrer. Porém, não podia entender como as últimas memórias do condenado tinham vindo parar dentro de seu cérebro. Não tinha como, ele não tinha nenhuma ligação material com o sujeito. Nenhum nervo de seu corpo estava conectado ao dele, nenhum liame físico os unia.

O que Richard não sabia era que, desde milênios antes de inventarem os computadores, os espíritos já dominavam perfeitamente a tecnologia wireless...

 

Nota da autora: esta é uma obra de ficção, que não retrata necessariamente minhas crenças, ideias ou opiniões; qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais terá sido mera coincidência.

 





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