A VERDADEIRA IMAGEM - Conto de Terror - Flávio de Souza
A
VERDADEIRA IMAGEM
Flávio
de Souza
1
Quem
já suou frio numa noite quente pode imaginar o que senti quando cheguei ao
local da cena que vi pela tela do monitor...
Tudo
começou de maneira corriqueira. Minha jornada de trabalho já estava quase no
fim. O dia já ameaçava raiar e eu precisava fazer apenas mais uma ronda para
finalizar o expediente.
Apesar
do cansaço causado pela monotonia, parecia que a noite de trabalho terminaria
bem. Quase sempre a ausência de dificuldades era a marca principal numa alternância
de canecas de café e sessões coruja na TV.
Eu
desempenhava a função de agente de segurança num condomínio de casas de alto
padrão, um oásis de aparente tranquilidade para aqueles que podiam pagar. Os
muros altos e as guaritas tratavam de isolar a loucura extrema que fervilhava
no restante da cidade.
Era
um bom emprego. Bem, pelo menos o fato de poder trabalhar armado servia para
aplacar um pouco a frustração de não ter conseguido ser um policial de fato,
embora, às vezes, eu me pegasse clamando por um pouco de ação. Eu só não sabia
que receberia sobre mim, de uma só vez, toda a adrenalina que uma pessoa é
capaz de suportar.
Agora
eu sei que se tratava de um aviso o arrepio que senti quando olhei para a lua
morrendo pelo vão da janela. Eu devia ter atentado para esse detalhe, mas,
infelizmente, não percebi. E, antes de sair para a ronda, fui alertado por um
fato totalmente inusitado na tela de um dos monitores de segurança: um casal,
totalmente despido, se engalfinhava despreocupadamente apoiado numa árvore, e
logo em frente à casa do desembargador.
Alcancei
a lanterna, pois o dia ainda não havia derramado plenamente sua luz, e parti
rumo ao local. Finalmente parecia que a derradeira ronda teria algum propósito,
embora o fato a ser repreendido fosse demasiadamente tolo.
Percorri
apressadamente as três quadras que separavam minha cabine de trabalho do ponto
a ser averiguado, estava ansioso para colocar aqueles moleques para correr. No
entanto, o que o facho de luz da lanterna clareou estava definitivamente longe
demais da imagem que eu esperava ver.
A
garota, bem, a garota estava subjugada por um dos braços do seu par, mas o
rapaz não exibia os contornos que eu havia visualizado na tela do monitor, pois
aquilo, aquilo que estava diante de mim, não era humano!
Perdi
o fôlego! Tentei a todo custo levar oxigênio aos pulmões, ao mesmo tempo em que
buscava manter a força nas pernas. Eu estava frente a frente com uma criatura
demoníaca, sem sombra de dúvidas. E esse fato contrariava totalmente o que até
então eu acreditava.
Os
traços esguios da fera exibiam um tom extremamente enegrecido pelos fios
espessos e eriçados que revestiam plenamente a superfície do seu corpo. Ao
perceber minha presença, o demônio largou a menina, deixando-a cair no
pavimento cimentado, o qual, rapidamente, foi lavado pelo sangue que esvaía em
profusão do ferimento aberto em seu pescoço. Ela estava morta. As órbitas
vazias em sua face denunciavam a inexorável verdade.
Caminhando
em minha direção, o assassino revelava a total natureza de sua identidade: uma
cabeça enorme e canina, de onde um olhar tão vermelho quanto o sangue recém-derramado
se mostrava. A criatura parecia ansiar por mais, por muito mais.
Engatilhei
a pistola e, sem titubear, acertei dois tiros na face horrenda do monstro. Porém,
ele continuava a caminhar, decidido a pôr um fim em minha existência. Disparei
mais duas vezes. O sangue negro espirrou em todas as direções! Ele me agarrou
pelo pescoço, meus pés deixaram o chão. A rigidez do aperto deslocou meu
maxilar. A fera arfava. O veneno do seu hálito me desnorteava ao ponto de quase
me fazer perder a consciência.
Com
muito custo, disparei mais uma vez. O tiro o atingiu na parte inferior do
focinho. Uma mescla de saliva e sangue passou a verter diretamente do ferimento
aberto para minha garganta. Um gosto amargo parecia destruir minha fé na vida.
Como se uma serpente se retorcesse em meu estômago, regurgitei uma massa
gosmenta, eu estava prestes a sufocar com meu próprio vômito. A escuridão
nublava-me a visão. Não sei como, mas consegui erguer a pistola uma vez mais.
Ao mesmo tempo em que executava o esforço derradeiro, um grande estalo, que por
pouco não arruinou meus tímpanos, se fez ouvir. Então, o demônio gritou. Eu
seria capaz de jurar que havia sido de dor.
A
pressão em meu pescoço diminuiu. Com isso, aproveitei a chance e descarreguei o
restante da munição sobre o maldito. Mas, quando o último projétil o atingiu,
ele já não exibia os traços demoníacos. Era novamente um homem. E quando os
primeiros raios de sol o tocaram, a identidade daquele rosto se revelou: era
nada mais, nada menos, que o filho mais novo do desembargador.
Ainda
abalado, tomei o pulso do rapaz para confirmar a certeza que me dominava: ele
estava morto!
O
desespero me invadiu. Não adiantaria argumentar, em qualquer hipótese que eu
pudesse levantar só haveria uma constatação: minhas balas seriam encontradas no
corpo do garoto.
Mas
havia uma esperança. Todo o monitoramento era gravado. Se eu pegasse o DVD na
cabine de segurança seria possível provar minha inocência, pois o monstro
apareceria para quem quisesse ver.
Deixei
os corpos estirados na calçada fria e corri o mais rápido que pude. Eu
precisava colocar as mãos nas provas antes que o condomínio despertasse.
De
forma atabalhoada e urgente, coloquei a gravação para rodar. Mas, para meu
profundo desespero, a figura que avançou em minha direção, me agarrou pelo
pescoço e foi abatido por minha arma não se mostrava como um demônio. Era o
rapaz! Exatamente do jeito que ele era!
Não
havia escapatória. Eu seria acusado de assassinato. Tomei o DVD nas mãos e
fugi. Seria impossível provar a verdade, e eu não queria parar na cadeia pela
morte do filho de um desembargador.
2
Numa
só noite todas as convicções que eu poderia ter acerca da realidade e da ficção
desabaram sobre minha cabeça sem cerimônias. Então, no anonimato que a
clandestinidade, minha nova condição, me impunha, estudei e procurei desvendar
a névoa que costuma camuflar a nitidez da verdade que nos cerca. E, da mesma
forma que um morto-vivo não reflete num espelho, descobri que um demônio da lua
não revela sua verdadeira face em outro meio que não seja sob o véu da luz
branca que vem do céu. Por isso a gravação não captou os contornos da besta.
Aprendi,
também, que o chumbo pode fazer mal à parte humana da criatura, mas não pode
ferir a fera. Assim, com a chegada de um novo ciclo, o demônio inevitavelmente
ressurgiria dos mortos, com sua face mais nefasta a homenagear a lua. Mas, uma
esperança ainda resta. A prata, essa sim, com toda a sua nobreza pode pôr um
fim definitivo na vida de agouro do amaldiçoado.
De
poucas coisas posso me orgulhar na vida, dentre estas, os bons contatos que fiz
ao longo dos anos, os quais, na hora certa, mostraram seu valor. Enquanto
antigos amigos me viraram o rosto, os agentes certos, pelo preço justo, me
estenderam as mãos. Sem a ajuda de um excelente armeiro artesão, eu não
conseguiria uma peça única e letal para aniquilar o monstro.
Posso
não ter mais emprego. Posso não ter mais perspectiva ou mesmo uma vida. Mas
ainda tenho meu caráter, e isso ninguém pode me tirar. Ainda naquela noite,
tudo estaria acabado.
3
Não
foi difícil chegar ao local que deveria ser de descanso eterno. O pobre rapaz
poderia até não ter culpa pela natureza maldita que o dominava, mas ele iria pagar
assim mesmo. Não seria certo deixar a matança continuar.
Assim
esperei por horas, até que a lua derramasse seu lamento diretamente sobre o
jazigo do endemoninhado. Logo, como eu havia previsto, um urro das profundezas
do inferno tomou de assalto o campo santo.
Engatilhei
o revólver e aguardei. Não tardou para que concreto, mármore e madeira voassem
pelos ares. A criatura estava livre. E, com a vingança a escorrer pela língua
que pendia da boca escancarada, ela me olhava. Dentes alvos e longos refletiam
o luar.
Ergui
as mãos, apertando firmemente o cabo de madrepérola da arma. A besta
chacoalhava as patas de forma ameaçadora. Mirei no centro daquela cabeça
descomunal, mas, no instante decisivo, não pude atirar...
No
tambor só havia uma bala de prata, um único bilhete para a libertação. No fim
das contas, um enorme problema. Da maneira mais dolorosa possível, descobri que
a mesma lua que despertara a fera dos mortos agia também em mim. O veneno da
besta, aquele que caíra em minha garganta em forma de sangue e saliva, corria
agora em minhas veias. Ao som de um estalo, eu começava a mudar...
Uma
escolha estava em minhas mãos: seria ele, ou eu. Com filetes salgados
escorrendo pelo meu rosto quase canino, fiz um esforço imensurável para manter
a sanidade. Seria impossível admitir como minha a natureza demoníaca de uma
fera inumana.
Enquanto
a prata silenciava o clamor em meu cérebro, e a chama da vida lentamente se
esvaía do meu corpo, ainda vi a sombra do filho do desembargador a correr sob a
luz da lua em busca de sangue. Eu jamais poderia me tornar aquilo, pois, apesar
de tudo, era a de um homem a verdadeira imagem em mim incrustada.
Eu imaginei essa história acontecendo aqui onde moro, pois também moro em condomínio, porém aqui não tem síndico nem muros ou vigias, é tudo aberto.
ResponderExcluirSe bem que não seria uma má idéia ambientar um conto de lobisomem aqui na minha cidade.
Eu estou lendo contos de lobisomens para me inspirar, só que o que vou escrever é bem diferente desses de terror, me aguarde (◠‿◕)...