O CLÉRIGO MALIGNO - Conto Clássico de Terror - H. P. Lovecraft

 


O CLÉRIGO MALIGNO

H. P. Lovecraft

(1890 – 1937)

 

Um homem circunspecto, de aparência inteligente, roupa discreta e barba grisalha, conduziu-me a um quarto do ático, falando-me assim:

— Sim, ele morava aqui. Mas eu o aconselho a não tocar em nada. A sua curiosidade torna-o irresponsável. Nós jamais subimos aqui à noite e só conservamos o lugar como está por conta de sua vontade declarada. Você sabe o que ele fez. Essa abominável sociedade se encarregou de tudo ao final, e nós não sabemos onde ele está sepultado. Não houve como a lei, ou qualquer outra coisa, chegar à tal sociedade.

“Espero que você não fique aqui até o anoitecer. Peço-lhe que não toque no objeto sobre a mesa, essa coisa que parece uma caixa de fósforos. Não sabemos o que é isto, mas suspeitamos que tem alguma relação com o que ele fez. Até mesmo evitamos olhar para ela fixamente.”

Pouco depois, o homem me deixou sozinho na câmara do ático. Estava ela muito suja, empoeirada, primitivamente mobiliada, mas tinha uma elegância a indicar que aquele não era o quarto de um joão-ninguém. Havia prateleiras repletas de livros clássicos e teológicos, e outras estantes com tratados de magia: Paracelso[1], Alberto Magno[2], Tritemius[3], Hermes Trimegisto[4], Borellus[5] e outros, em estranhos caracteres, cujos títulos não fui capaz de decifrar. Os móveis eram muito simples. Havia uma porta que dava acesso, apenas, a um armário. As janelas seguiam um padrão ovalado e as vigas de carvalho negro revelavam uma incrível antiguidade. Evidentemente, esta casa pertencia ao Velho Mundo. Eu parecia saber onde estava, embora não conseguisse lembrar o que então sabia. Certamente, a cidade não era Londres. Minha impressão era a de que ela se situava num pequeno porto marítimo.

O objeto sobre a mesa me fascinou intensamente. Creio que sabia o que fazer com ele, porque tirei uma lanterna elétrica — ou algo que parecia uma lanterna — do bolso e, nervosamente, testei o seu foco. A luz não era branca, mas violeta, assemelhando-se mais a um bombardeio radioativo que a uma luz verdadeira. Lembro-me que eu não a considerava uma lanterna comum; de fato, eu trazia uma normal no outro bolso.

Escurecia e, lá fora, os antigos telhados e chaminés, por trás das janelas ovaladas, pareciam muito estranhos. Finalmente, tomando coragem, apoiei, num livro, o pequeno objeto da mesa, e para ele direcionei os raios da peculiar luz violeta. A luz, agora, assemelhava-se ainda mais a uma chuva de granizo — ou de minúsculas partículas violeta — que a um feixe de luz contínuo. Estas partículas, ao colidirem com a superfície vítrea no centro do estranho dispositivo, pareciam produzir um ruído crepitante, como o chispar de um tubo de vácuo por meio do qual fluíssem centelhas. A escura superfície produziu uma rósea incandescência, e uma figura vaga e branca pareceu tomar forma em seu centro. Então, dei-me conta de que não estava só no quarto. E guardei no bolso o projetor de raios.

Mas o recém-chegado não falou e nem ouvi qualquer ruído nos momentos seguintes. Tudo era uma sombria pantomima, como se contemplada de uma vasta distância através de uma neblina interposta — malgrado, por outro lado, o recém-chegado e todos os que vieram depois aparecessem grandes e próximos, como se estivessem a um só tempo próximos e distantes, obedecendo a uma geometria anormal.

O recém-chegado era um homem magro e moreno, de estatura mediana, vestido com um traje clerical da Igreja Anglicana. Aparentava uns trinta anos e tinha a pele lívida, olivácea, e uma agradável fisionomia, malgrado a testa fosse anomalamente alta. Seu cabelo negro estava bem cortado e penteado. Exibia um queixo bem escanhoado, embora azulado pelo denso crescimento dos pelos. Usava óculos sem moldura e com arcos de aço. Sua compleição e as características da parte inferior da face eram como as dos demais clérigos que eu já vira, mas sua testa era muito alta, e ele tinha uma aparência sombria e inteligente, mas, ao mesmo tempo, sutil e secretamente malévola. Nesse momento — ele acabara de acender uma lâmpada de azeite —, parecia nervoso. E antes que eu o percebesse, ele pusera-se a lançar todos os livros de magia na chaminé que havia junto à janela do quarto — onde a parede se inclinava acentuadamente —, a qual eu não notara antes. As chamas devoravam os volumes avidamente, subindo com cores estranhas e despegando um odor indescritivelmente horrendo, enquanto as páginas de misteriosos hieróglifos e as encadernações carcomidas eram consumidas pelo elemento devastador. Observei, então, que havia ali outros homens, todos de severa aparência e roupas clericais, e entre eles havia um que usava lenço e calções de bispo. Malgrado eu nada conseguisse ouvir, notei que eles estavam trazendo uma decisão de imensa importância ao que chegara primeiro. Eles pareciam odiá-lo e temê-lo ao mesmo tempo, e este mesmo sentimento parecia ser retribuído. O primeiro clérigo mantinha na face uma severa expressão. Mas notei que a sua mão direita tremia enquanto tentava segurar o espaldar de uma cadeira. O bispo apontou para as prateleiras vazias e para a chaminé — onde as chamas haviam morrido sob uma massa carbonizada e informe —, e parecia dominado por uma repugnância peculiar. O primeiro dos recém-chegados entremostrou, então, um sorriso retorcido, e levou a mão esquerda ao pequeno objeto sobre a mesa. Todos pareceram sobressaltar-se. O cortejo de clérigos começou a desfilar pelas íngremes escadas, descendo por um alçapão no chão, e, enquanto desapareciam, voltavam-se para o que ficava fazendo gestos ameaçadores. O bispo foi o último a sair.

O primeiro dos recém-chegados foi até um armário no fundo da sala e tirou um rolo de corda. Subiu numa cadeira, amarrou uma ponta a um gancho que pendia da grande viga central de carvalho negro e começou a fazer um laço na outra extremidade. Percebendo que ele estava prestes a se enfocar, corri para dissuadi-lo ou salvá-lo. Ele me ouviu e suspendeu os preparativos, olhando para mim com uma espécie de triunfo que me confundiu e perturbou. Desceu lentamente da cadeira e pôs-se a deslizar em minha direção, com um sorriso visivelmente lupino em sua face morena de lábios finos.

Senti que me encontrava em perigo mortal e tirei o estranho projetor de raios como arma de defesa. Porque eu pensei que o projetor poderia me ajudar, não sei. Lancei o feixe em cheio em sua cara e vi sua pálida fisionomia refulgir com uma luz violeta, seguida por outra rosada. Sua expressão de exultação lupina cedeu lugar a outra de profundo temor, que não fez, todavia, apagar completamente o regozijo. Estacou e, agitando freneticamente os braços no ar, começou a retroceder, cambaleante. Vi que se aproximava do alçapão aberto, e tentei gritar para alertá-lo, mas ele não me ouviu. Um instante depois, voltou a cambalear para trás e caiu pela abertura, desaparecendo de minha vista.

Tive dificuldade de me mover em direção ao alçapão da escada, mas, ao chegar, não encontrei nenhum corpo esmagado no andar de baixo. Em vez disso, chegou-me o barulho de pessoas que subiam com lanterna. O momento de silêncio espectral havia sido quebrado, e novamente eu ouvia sons e via figuras normalmente tridimensionais. Algo havia atraído, evidentemente, a multidão para esse lugar. Houvera algum barulho que eu não tinha ouvido? Agora, os dois dos homens — simples aldeões, aparentemente — que lideravam a comitiva, vieram de longe e ficaram paralisados. Um deles gritou estrondosamente:

— Ah, é você? Novamente?

Em seguida, eles todos se viraram e fugiram freneticamente. Todos, menos um. Quando a multidão desapareceu, vi o homem circunspecto, de barba grisalha, que me trouxera àquele lugar, de pé, sozinho, com uma lanterna. Olhava-me boquiaberto, fascinado, mas sem temor. Depois começou a subir a escada e se juntou a mim no ático. Disse-me:

— Então você não deixou isto aqui em paz. Sinto muito. Sei o que aconteceu. Já ocorreu anteriormente, mas o homem se assustou e atirou em si mesmo. Eu não devia tê-lo feito voltar. Você sabe o que ele quer. Mas não deve ficar com medo, como ficou o outro homem. Algo muito estranho e terrível aconteceu com você, embora não tenha ido longe o suficiente para prejudica-lhe a mente e a personalidade. Se você mantiver a calma e aceitar a necessidade de realizar determinados ajustes radicais em sua vida, poderá manter o direito de desfrutar do mundo e do fruto de seu saber. Mas você não pode viver aqui, e acho que você vai querer voltar para Londres. Eu o aconselho a partir para a América.

“Você não deve tentar mais nada com esse... objeto. Nada pode voltar a ser como antes. Fazer — ou invocar — qualquer coisa somente irá piorar as coisas. E não está tão mal como poderia ter ficado. Mas tem que ir embora daqui de uma vez e permanecer distante deste lugar. E dê graças aos céus por ele não ter ido mais longe...

“Vou prepará-lo para o pior, da melhor forma que puder, mas sem rodeios. Houve uma mudança em seu aspecto pessoal. Ele sempre faz isso. Mas em um novo país, você poderá acostumar-se com a mudança. Há, no outro extremo do quarto, um espelho. Eu vou levá-lo a ele. Você vai levar um choque. Mas não lhe será repulsivo.”

Agora eu tremia de um medo mortal e o homem barbudo quase que teve de segurar-me enquanto me acompanhava até o espelho, com uma fraca lâmpada (ou seja, a que anteriormente estava sobre a mesa, não a ainda mais fraca lanterna que eu trouxera) em sua mão livre. E o que eu vi no espelho foi isto:

Um homem magro e moreno, de estatura média, vestido com um traje clerical da Igreja Anglicana, com cerca de trinta anos, usando óculos sem molduras e de arcos de aço, cujos vidros brilhavam sob a sua fronte pálida, olivácea, anomalamente alta.

Era o silencioso primeiro recém-chegado que havia queimado os livros.

Para todo o resto de minha vida, externamente, eu iria ser aquele  homem.

 

Versão em português por Paulo Soriano

Nota do editor: O caráter onírico da narrativa é perfeitamente explicável. “O clérigo maligno” constitui-se em um trecho de uma carta que Lovecraft escrevera ao amigo Bernard Austin Dwyer (1897 – 1943), contando-lhe um sonho que tivera. Após sua morte, o texto foi publicado, como um conto, na antologia “Contos estranhos” (WeirdTales, 1939).



[1] Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim, dito Paracelso (1493 – 1541), médico,cientista, alquimista e ocultista suíço.

[2] Santo Alberto Magno (c. 1193 – 1280), doutor da igreja, filósofo e teólogo alemão, que se teria dedicado à Alquimia e à Astrologia.

[3] Johann Heidenberg (Johannes Trithemius) (1462 - 1516), monge e erudito alemão, foi o criador da esteganografia (técnica de escrita criptográfica). Foi o autor do primeiro livro sobre o personagem Fausto, médico, mago e alquimista alemão que vendeu a alma ao diabo em troca de conhecimento ilimitado e prazeres mundanos.

[4] Hermes Trismegisto é o nome grego dado pelos neoplatônicos, místicos e alquimistas ao deus egípcio Thoth, identificado com o deus grego Hermes. Seria o autor do Corpus Hermeticum, uma série de textos sagrados que constituem a base do hermetismo.

[5] Pierre Borel (Petrus Borellius) (c. 1620 – 1671), alquimista, médico, químico e botânico francês.


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