OS TRASGOS DE SALAMANCA - Narrativa Clássica Sobrenatural - Antonio de Torquemada

 



OS TRASGOS DE SALAMANCA

Antonio de Torquemada

(c. 1507 – 1569)

Tradução de Paulo Soriano

 

O “Jardim de Flores Curiosas”, do prosador leonês Antônio de Torquemada (c. 1507 — 1569), miscelânea publicada em 1570, discorre sobre fenômenos sobrenaturais, fantasmas, entes monstruosos, bruxos e lobisomens, dentre outras excentricidades. Animado pelo espírito renascentista, revive, no século XVI, a excêntrica experiência paradoxográfica da antiga Grécia, da qual Apolônio de Afrodísias e Flégon de Trales foram os principais expoentes. Não foi à toa, portanto, que o livro — muito difundido e admirado em sua época — caiu em desgraça, sendo censurado pela Inquisição.

Na presente narrativa, o escritor leonês descreve um incidente sobrenatural, ocorrido na cidade de Salamanca, que tem as características do que, nos dias de hoje, chamamos "fenômeno poltergeist". Se as travessuras como as descritas por Torquemada são atribuídas, no Brasil, ao Saci Pererê, no folclore da Espanha e de Portugal produzem-nas os chamados trasgos, entes sobrenaturais que pregam peças e perpetram pequenas maldades, como atirar pedras, partir louças, arrastar móveis, quebrar vidros, mudar objetos de lugar etc, procurando sempre assustar, causar pequenos dissabores e divertir-se com as pessoas que assombram.

 

Quero contar-lhes o que vi quando era um menino de dez anos e estudava em Salamanca.

Havia naquela cidade uma senhora viúva e idosa muito importante, que tinha quatro ou cinco serviçais e duas delas eram moças de muito bons modos.

Um público rumor  começou a disseminar-se por toda a cidade. Diziam que, na casa daquela senhora, havia um trasgo que fazia muitas travessuras e, dentre outras, havia uma em que numerosas pedras se precipitavam dos telhados da casa, de modo que parecia chover. E isto acontecia de uma forma tão contínua, que a todos na casa, e até mesmo àqueles que a visitavam, causava um grande  transtorno, embora as pedras não lhes fizessem mal algum.

Tão notável era o acontecimento que um corregedor resolveu  averiguar a verdade. Acompanhado de mais de vinte pessoas, que sabiam a que iam, seguiu o corregedor à casa daquela mulher. Lá entrando, mandou um oficial de justiça e outros quatro homens que fizessem uma busca por toda a casa, com uma tocha acesa, sem que deixassem de examinar canto algum, porão ou mesmo coisa em que alguém pudesse esconder-se.

E eles cumpriram a ordem com tal minúcia que só lhes faltou destelhar a casa. Voltaram dizendo que não mais havia lugar a procurar e que tudo estava em ordem. O corregedor disse à  senhora que ela estava sendo enganada, afirmando que as criadas de sua casa introduziam amantes e serviçais seus,  e eram estes que atiravam aquelas pedras. Disse que o melhor seria, para dar fim a estes inconvenientes, pôr nele um remédio e deitar, daí a diante, maior vigilância sobre as criadas.

A boa senhora estava mais confusa do que nunca e não sabia o que dizer. Todavia, afirmou que o que se dizia sobre as pedras era verdade, e que estava admirada de que estas não caíssem justamente naquele momento.

O corregedor e os demais, escarnecendo disto, saíram da sala onde estavam e, quando chegaram ao fim da escada pela qual desciam, foram surpreendidos por um sem-número de pedras que, rolando por ela, faziam um grande estrépito, como se de três ou quatro cestos tivessem sido lançadas. E, passando-lhes por entre as pernas, as pedras não produziram golpe que lhes doesse.   

O corregedor mandou que voltassem todos, com grande pressa e  diligência, para ver se alguém as arremessava.  Mas, como antes, nada encontraram.  Assim estavam as coisas quando, no portal da casa, começou a chover pedras, que caíam sobre as cabeças e chegavam aos pés, e isto em grande quantidade.

E, estando todos muito maravilhados do que viam, o oficial de justiça tomou uma pedra —, que, dentre outras, era marcada — e, atirando-a por cima do telhado de uma casa fronteiriça, disse:

— Se tu és mesmo demônio ou trasgo, devolva-me esta mesma pedra!

E, no mesmo instante, a pedra tornou a cair e lhe golpeou na dobra do gorro, ante os olhos, e todos reconheceram naquela pedra a  mesma que ele havia há pouco jogado.

E vendo que era verdade o que se dizia, o corregedor e todos os demais partiram muito assustados.

Daí a poucos dias, veio um clérigo, chamado Torresmenudas, a Salamanca e, entrado na casa, fez certos esconjuros. Daí em diante, cessaram as pedras e as travessuras.



Tradução de Paulo Soriano.

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