3:15 - Conto de Terror - Eudes de Paula Colodino
3:15
Eudes de Paula Colodino
Acordou no meio da madrugada. Sentia
uma grande vontade de fazer xixi. Fazia frio naquela noite, e foi difícil se
levantar da cama quentinha para o ar do quarto gelado. Assim que pousou os pés
nos chinelos frios amaldiçoou a hora em que inventou de beber água antes de se
deitar.
A escuridão do quarto só era
quebrada pela fraca luz vermelha do visor do rádio-relógio, em números
garrafais: “3:15”. Pensou em qualquer coisa desagradável, mas logo fez questão
de esquecer. A meta era fazer um xixizinho rápido, e logo voltar para a
cama.
Abriu a porta, que rangeu baixinho.
Fora do quarto, a cozinha também estava fracamente iluminada, mas pela luz da
lua cheia que entrava pálida pela janela. Ao longe, ouvia sons esporádicos de
carros notívagos na avenida, além do zumbido elétrico da geladeira e do
tique-taque monótono do relógio na
parede, também mostrando os mesmos três e quinze, quase imperceptíveis na
penumbra.
Seus olhos ardiam de sono e, enquanto caminhava
na direção do banheiro, ouviu um outro som, murmurando, vindo da parede. Um som
leve, uma voz humana, mas não se distinguia o que era exatamente.
Parou no meio do caminho para o
banheiro do pequeno apartamento. Surgiu, de imediato, a curiosidade: “Que seria
isto?”, perguntou a si própria. Mudou de direção, no rumo da parede. Encostou o
ouvido no gelado revestimento de cerâmica. Veio, em sua mente, como um
longínquo devaneio, a imagem de sua mãe lhe dizendo que era muito feio
bisbilhotar, moralismo este logo sufocado pela autojustificação de certificar
que nada de mau ocorria no apartamento da vizinha.
Lamúrias indistintas vinham de
dentro da parede. Um choro de viúva, típico de velório, corria pelos frágeis
tijolos até seu ouvido esquerdo. Sabia pouco sobre a velha do 54, tampouco seu
nome. Só sabia que morava sozinha, e demonstrava hábitos ultrapassados sempre
seguidos de uma simpatia senil que lhe incomodava. Sempre que podia fugia dela,
mas não podia evitar os encontros nos corredores e locais públicos do
condomínio. Não sabia bem o porquê, mas evitava a velha. Devia ser choque
geracional, explicava rapidamente para si própria.
Tomou um susto. Enquanto refletia sobre
a velhinha e o que poderia ser aquilo, o choro que estava baixo e distante subitamente
ficou mais alto, como se a velha saltasse para perto da parede exatamente do
outro lado em que ela se encontrava bisbilhotando. Num soluço de medo,
afastou-se da parede.
— “Mas... Que estranho...” — O
choro pareceu ganhar ressonância ao seu redor. Vinha de todo lugar, ecoava nas
paredes do apartamento, quase que num efeito de sala de cinema. A sua
consciência, personalizada pela imagem da mãe, surgiu instantaneamente em sua
mente, culpando-a das consequências de sua curiosidade. “Fui pega? Não... Não
pode ser possível, deve ser coisa da minha cabeça”. Tapou os ouvidos. Silêncio.
Não estava em sua cabeça. Soltou as mãos devagar da cabeça, e o chorinho
parecia mais desesperado agora, como se a viúva fosse se lembrando da dor de
sua perda, ao lado do caixão do falecido. Vinha de todos os lados. E era
real.
A geladeira desligou num estalo. Olhou
em sua direção e quase caiu de costas no que viu: uma sombria presença, esguia
e de forma humana estava imóvel, voltada para si, do lado da geladeira.
Soltou um gritinho abafado e sentiu
fraquejar um pouco, mas o instinto de sobrevivência lhe impulsionou para a
porta do apartamento. Grunhia desesperada não querendo olhar para trás, de onde
vinha um som parecido ao de rastejar de folhas, junto com o choro – agora
convulsionado. As chaves escorregavam em seus dedos suados, os dentes
pressionados, uma pontada na barriga. Não podia ser, aquilo não podia ser
real... “Meu Deus, o que eu fiz?”. O frio aumentou em sua nuca, uma presença
pesada, mortal e agressiva parecia avizinhar-se sorrateira.
Abriu a porta e jogou-se para fora. A
luz automática do corredor acendeu, e ela trancou a porta num estrondo,
desesperada. Correu de costas pelo corredor, perdendo um dos chinelos no
carpete. Bateu na parede do lado da escada e deixou-se escorregar até sentar no
chão macio... A sensação de ter escapado do perigo abrandou levemente o pânico,
permitindo-lhe tremer e começar a lacrimejar. Não, na sua casa não, isso não
era possível... Isso não existia, era coisa de louco... “Estou ficando louca?
Oh, não...”.
Um estalido. Um rangido. Respirou
fundo quando viu a velha sair do 54, rosto lívido, lhe observando. Um sorriso
enrugado apareceu no rosto da velhinha:
— O que aconteceu querida?
Precisa de ajuda?
—N... N... Não... Está tudo bem, eu só
tomei um susto em casa, mas não é nada de mais
— Não faz bem uma moça tão linda
com uma cara assim, apavorada. Entre em casa, tenho um chazinho de camomila que
vai te acalmar.
“Não... Não seja idiota, garota, é uma
armadilha. Ela sabe de tudo, ela vai te ferrar. Ela fez isso. Ela é uma BRUXA!”
– pensou – “Não... Não seja idiota mesmo, isso não existe... Você está com sono
e viu coisas, ouviu coisas... Nada mais” – pensou de novo.
— Mocinha? Quer ajuda para se
levantar?
Acalmou-se um pouco mais e começou a se
sentir patética. Isso não existe. Não, isso tem explicação... Já precisou ir a
psicólogo antes, já tomou até remédio... Deve ser coisa da mente. Levantou-se e
aceitou o convite da velha.
O 54, assim que adentrado, cheirava a
coisas velhas. A luz forte da cozinha e a aparência de normalidade da
residência lhe deixou ainda mais tranquilizada e convencida de que estava
delirando. Uma tola. Só isso que podia ser. Que papelão... Assustar uma velha
senhora àquela hora da madrugada...
— Sente-se, querida. Já volto com
o chá.
Sentou-se numa poltrona verde amaciada
pelo uso e pelo tempo. Afundou no assento. Juntou as mãos pálidas e geladas por
entre as pernas num gesto pueril de aquecimento, e se lembrou de que queria
muito fazer xixi.
Foi quando um cheiro estranho correu o
ar... Não era camomila. Era um cheiro repugnante, podre. Carne podre. O medo
retornou, e o silêncio pesou no ambiente. De repente, teve a sensação de ter
sido abandonada na companhia de um predador. Um grunhido... Vindo de trás.
Virou-se muito rápido para ver o que era, mas a consciência lhe esvaiu por um
segundo como num ligeiro apagão. Recobrando-a, estava sentada numa das cadeiras
geladas na cozinha de seu apartamento. O tique-taque do relógio de parede vinha
acompanhado do mesmo choro. Do outro lado da cozinha, no corredor que leva aos
quartos, uma velha chorava de costas para si. Teve a mesma sensação que um
condenado à morte deve ter no último momento e resignou-se de sua situação,
como presa paralisada, relaxando numa urinada quente. Nada mais fazia diferença
e sequer reagiu quando se sentiu engolfada por uma presença traiçoeira, que
atacava pelas costas, abraçando-a geladamente... Pouco antes de ser tomada pela
escuridão, a velha começava a voltar-se para si, com vibrantes olhos vermelhos.
Era a Velha do 54.
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