A LENDA DO SOLDADO ENCANTADO - Conto Clássico Fantástico - Washington Irving

 


A LENDA DO SOLDADO ENCANTADO

Washington Irving

(1783 – 1859)

Tradução de Paulo Soriano

 

Todos já ouviram falar da Caverna de São Cipriano em Salamanca, onde, antigamente, a astrologia, a necromancia, a quiromancia e outras artes ocultas e condenáveis ​​eram ensinadas secretamente por um antigo sacristão; ou, como alguns dirão, pelo próprio diabo, sob aquele disfarce.

A caverna está fechada há muito tempo e a sua própria localização já foi esquecida. Todavia, segundo a tradição, a entrada da gruta situa-se em algum lugar próximo à cruz de pedra que se ergue na pequena praça do seminário de Carvajal; e essa tradição parece, em certa medida, corroborada pelas circunstâncias da seguinte história.

Havia em Salamanca um estudante, chamado dom Vicente, que pertencia a essa espécie de alunos joviais, embora mendicantes, que percorre o caminho da aprendizagem sem um tostão no bolso para a viagem, e que, durante as férias de seu curso, mendigava de cidade em cidade, e de vila em vila, para arrecadar recursos que lhe permitisse prosseguir em seus estudos no ciclo subsequente. Ele estava, agora, prestes a iniciar suas andanças; e, tendo a música por inclinação, pendurou nas costas uma guitarra para divertir os aldeões e obter os meios de pagar uma refeição ou um pernoite numa estalagem.

Ao passar pela cruz de pedra na praça do seminário, tirou o chapéu e fez uma breve invocação a São Cipriano, para que lhe concedesse uma boa sorte; e, ao baixar os olhos, viu que algo cintilava ao pé da cruz. Ao pegá-lo, constatou tratar-se de anel de chancela, de metal maciço, no qual ouro e prata pareciam estar amalgamados. O selo tinha gravados dois triângulos que se cruzavam, formando uma estrela. Este emblema é considerado um sinal cabalístico, criado pelo Rei Salomão, o sábio, dotado de grande poder contra todas as espécies de encantamento; mas, como o honrado estudante não era sábio ou feiticeiro, nada sabia dos poderes do talismã. Assim, tomou o anel como um presente de São Cipriano — uma prova de gratidão por sua oração —, colocou-o no dedo, fez uma reverência para a cruz e, dedilhando sua guitarra, retomou alegremente a sua caminhada.

A vida de um estudante mendicante na Espanha não é precisamente das mais miseráveis ​​do mundo, sobretudo se ele tiver algum talento para atrair simpatias. Ele perambula livremente de aldeia em aldeia, e de cidade em cidade, onde quer que a curiosidade ou o capricho o conduzam. Os párocos rurais, que em sua maioria foram estudantes mendicantes em seu tempo, dão-lhe abrigo para a noite e uma refeição reconfortante, e muitas vezes o enriquecem com vários cuartos[1] — ou meio pence — pela manhã. Quando batiam de porta em porta nas ruas das cidades, eles não encontravam nenhuma firme rejeição, nenhum frio desprezo, pois ninguém considerava uma desonra fomentar sua mendicidade, já que muitos dos maiores eruditos da Espanha começaram desta maneira os seus estudos; mas se o mendicante é, como o nosso estudante, um companheiro bonito e jovial, e, sobretudo, se ele sabe tocar guitarra, haverá sempre para ele a certeza de encontrar uma acolhida cordial entre os camponeses e sorrisos e favores de suas esposas e filhas.

Assim, pois, nosso jovem — maltrapilho e filho musical da ciência — percorreu metade do reino, com a firme determinação de visitar a famosa cidade de Granada antes de seu retorno. Às vezes, ele era acolhido, à noite, na casa de algum pároco de aldeia; outras, abrigava-se sob o teto humilde, mas hospitaleiro, de um camponês. Sentado à porta da choupana com a sua guitarra, ele deleitava o povo simples com suas canções, ou tocava um fandango ou bolero para que os rapazes e moças morenas do campo dançassem sob o tênue crepúsculo. De manhã, ele partia, recebendo as palavras amáveis ​​do anfitrião e da anfitriã, e, das filhas, olhares amáveis ​​e, às vezes, um aperto de mão.

Por fim, chegou ao grande objeto de sua vagabundagem musical: a famosa cidade de Granada. Saudou, com admiração e deleite, suas torres mouriscas, sua adorável Vega e suas montanhas nevadas, que resplandeciam através da atmosfera de verão. Não é preciso dizer com que ávida curiosidade ele entrou por seus portões e vagou por suas ruas, contemplando seus monumentos orientais. Cada rosto feminino que espiava por uma janela, ou refulgia de uma varanda, era para ele uma Zorayda ou Zelinda; e, se se deparava com uma elegante dama na Alameda, logo tratava de imaginá-la uma princesa mourisca e estendia a sua capa de estudante sob os seus pés.

Com seu talento musical, seu humor jovial, sua juventude e sua boa aparência, o estudante arrebatava uma recepção universal, apesar de suas vestes esfarrapadas, e, por vários dias, levou uma vida alegre na antiga capital moura e seus arredores. Um dos lugares que costumava frequentar era a fonte de Avellanos, no vale do Darro, um dos pontos de reunião populares desde a época dos mouros; e, ali, o estudante teve a oportunidade de prosseguir seus estudos de beleza feminina, um ramo do conhecimento ao qual ele se sentia algo inclinado.

Na fonte, ele se sentava com seu violão, improvisava canções de amor para grupos de admiradores majos[2] e majas, ou os incitava, com sua música, a dança sempre pronta. Era nisto que ele se ocupava uma noite, quando viu chegando o pároco da igreja, e a cuja aproximação cada um tirava o chapéu. O padre era, evidentemente, um homem importante; era o espelho do bem — e mesmo da vida santa —, com seu talhe robusto e o rosto rosado. Respirava por todos os poros, à conta do calor do ambiente e do esforço da caminhada. De vez em quando, à medida que passava, tirava um maravedil do bolso e o dava a um mendigo, com um ar de notável benevolência.

— Ah, padre abençoado! — exclamavam. — Que Deus lhe dê vida longa e que em breve seja bispo!

Para auxiliar-se na subida da colina, apoiava-se, às vezes, suavemente, no braço de uma jovem criada, evidentemente o cordeirinho de estimação daquele pastor, o mais gentil entre todos. Ah, que donzela! Andaluza da cabeça aos pés: desde a rosa no cabelo ao sapatinho de fada e meias rendadas. Andaluza em cada movimento; em cada ondulação do corpo era uma exuberante e ardente Andaluza! Mas era tão tímida, tão recatada! Permanecia sempre de olhos baixos, ouvindo as palavras do padre; ou, se deixava escapar um olhar de soslaio, prontamente o continha, e voltava a fixá-lo no chão.

O bom padre olhou com benevolência as pessoas reunidas ao redor da fonte e sentou-se, com alguma ênfase, num banco de pedra, enquanto a criada se apressava em lhe trazer um copo de água fresca, cujo conteúdo sorveu deliberadamente e com gosto, temperando-o com um daqueles nacos esponjosos de ovos gelados e açúcar, tão caros aos epicuristas espanhóis. Quando devolveu o copo à donzela, o padre beliscou-lhe o rosto com infinita bondade amorosa.

— Ah, o bom pastor! — sussurrou o aluno para si mesmo. — Que felicidade seria estar reunido em seu redil, tendo uma cordeirinha de estimação, como esta, por companheira!

Mas não era provável que tivesse semelhante sorte. Em vão, ensaiou um daqueles expedientes sedutores, tão irresistíveis aos padres das aldeias e às jovens campesinas. Jamais tocara a sua guitarra com tanta habilidade; jamais cantara canções tão comoventes. Mas, apesar de seu empenho, não lidava agora com um padre da aldeia ou com uma jovem do campo. O digno sacerdote, evidentemente, não gostava de música, e a recatada donzela jamais tirava os olhos do chão. Não ficaram muito tempo na fonte, pois o bom padre já apressava o seu retorno a Granada. A donzela lançou ao estudante um tímido olhar; mas aquele olhar arrancou o coração de seu peito!

O estudante indagou sobre eles depois que partiram. Padre Tomás era um dos santos de Granada, modelo de regularidade: pontual na hora de levantar-se; de dar o seu paseo para abrir o apetite; na de comer; na de tirar a siesta; na de jogar o seu tresillo[3], à tarde, com algumas das damas do círculo da Catedral; na de jantar e na de retirar-se para descansar, a fim de reunir forças para mais uma jornada de semelhantes ocupações no dia seguinte. Ele tinha uma mula dócil e elegante para suas cavalgadas, uma matronal governanta, especialista no preparo de iguarias para a sua mesa, e a cordeirinha de estimação para amaciar seu travesseiro à noite e trazer seu chocolate pela manhã.

Agora... Adeus à vida alegre e irrefletida do estudante: o olhar de soslaio, vinda de olhos refulgentes, o havia arruinado. Dia e noite, ele não conseguia tirar da cabeça a imagem da recatada donzela. Procurou a casa do padre. Mas — ai! — era inacessível a um estudante andarilho como ele. O digno padre não tinha simpatia por ele; nunca fora estudiante sopista[4], obrigado a cantar para comer. Ele rondava a casa durante o dia, lançando, de vez em quando, uma olhadela na donzela, quando esta aparecia numa janela; mas esses olhares apenas alimentavam a sua e desencorajavam a sua esperança. À noite, ele fazia uma serenata sob a sacada da donzela, e, certa feita, ficou lisonjeado com o aparecimento de algo branco numa janela. Infelizmente, era apenas o gorro de dormir do padre.

Jamais se viu um amante mais devotado e uma donzela mais tímida: o pobre estudante foi reduzido ao desespero. Por fim, chegou a véspera de São João, quando o populacho de Granada invadia o campo, dançava à tarde e passava a noite de verão às margens do Darro e do Genil. Felizes os que, nesta noite agitada, podem lavar o rosto nessas águas, quando o sino da Catedral anuncia a meia-noite; é que, neste preciso momento, aquelas águas adquirem o poder de embelezar as pessoas. O estudante, sem ter o que fazer, deixou-se levar pela multidão em busca de diversão, até se encontrar no estreito vale do Darro, sob a altiva colina e as torres avermelhadas de Alambra. O leito seco do rio, as rochas que o circundavam, os jardins em terraços que se debruçam sobre ele eram animados por vários grupos que, sob as videiras e figueiras, dançavam ao som das de guitarras e castanholas.

O estudante ficou algum tempo desamparado e triste, encostado numa das enormes e disformes romãs de pedra que adornam as extremidades da pequena ponte sobre o Darro. Lançou um olhar melancólico sobre a cena alegre, onde cada cavalheiro tinha sua dama, ou, mais propriamente, cada José a sua Maria; em sua solidão, suspirou. Era uma vítima dos olhos negros da mais inacessível das donzelas, e lamentou o seu traje esfarrapado, que parecia fechar-lhe o portão da esperança.

Aos poucos, sua atenção foi atraída para um vizinho tão solitário quanto ele. Era um soldado alto, de grave aspecto e barba grisalha, que parecia postado, como uma sentinela, na romã oposta. Seu rosto estava bronzeado pelo tempo; envergava uma antiga armadura espanhola, com lança e escudo, e permanecia imóvel como uma estátua. O que surpreendeu o aluno foi que, embora assim estranhamente equipado, ele passava totalmente despercebido pela multidão que atravessava a ponte, embora muitos quase esbarrassem nele.

— Esta é uma cidade repleta de peculiaridades de outros tempos — pensou o estudante — e, sem dúvida, esta é uma delas. Os habitantes estão tão familiarizados a elas que não se surpreendem.

Sua própria curiosidade, entretanto, foi despertada e, sendo por natureza sociável, abordou o soldado.

— Rara e velha a armadura esta que você usa, camarada. Posso perguntar a que guarnição você pertence?"

O soldado, por de um par de mandíbulas, que pareciam ter enferrujado nas dobradiças, grunhiu uma resposta:

— Pertenço à guarda real de Fernando e Isabel.

— Santa Maria! Ora, esta guarnição está extinta há três séculos!

— E durante três séculos estive montando guarda. Agora, acredito que meu turno está acabando. Você almeja a fortuna?

O estudante ergueu sua capa esfarrapada à guisa de resposta.

— Eu o entendo. Se você tem fé e coragem, siga-me, e sua fortuna está sua.

— Vamos com calma, camarada. Segui-lo requereria pouca coragem a quem não tem nada a perder, a não ser a vida e uma guitarra velha, ambas de pouco valor; mas, quanto à minha fé, isso é diferente, e não quero expô-la à tentação. Se a obtenção da fortuna se subordina à prática de algum ato criminoso, não pense que meu manto esfarrapado servirá de pretexto para empreendê-lo.

O soldado lançou-lhe um olhar de grande desgosto.

— Minha espada — disse ele — nunca foi desembainhada senão pela causa da fé e do trono. Sou um cristão-velho. Confie em mim e não tema o mal.

O aluno considerou aquela situação. Observou que ninguém dava ouvidos àquela conversa, e que o soldado caminhava por entre os vários grupos de foliões sem ser notado, como se fosse invisível.

Cruzando a ponte, o soldado tomou um caminho estreito e íngreme, e, passando por um moinho e pelo aqueduto mourisco, subiu a ravina que separa os domínios de Generalife e Alambra. O último raio do sol brilhava sobre as ameias vermelhas desse palácio, que eram vistas lá no alto; e os sinos do convento proclamavam a festa do dia seguinte. A ravina era sombreada por figueiras, vinhas e murtas, e pelas torres externas e paredes da fortaleza. Aquele ermo era sombrio, e os morcegos, amantes do crepúsculo, se punham a esvoaçar. Por fim, o soldado parou em uma torre remota e em ruínas, aparentemente destinada a proteger um aqueduto mouro. Ele golpeou a base com a ponta de sua lança. Ouviu-se um estrépito e as sólidas pedras se separaram, deixando uma abertura tão larga quanto uma porta.

— Entre em nome da Santíssima Trindade — disse o soldado — e nada tema.

O coração do estudante estremeceu, mas ele fez o sinal da cruz, murmurou uma ave-maria e seguiu seu guia misterioso até uma abóbada profunda, recortada na rocha sólida, sob a torre, e coberta com inscrições árabes. O soldado apontou para um banco de pedra talhado ao longo de uma das faces da abóbada.

—Eis — disse ele — o meu leito por trezentos anos.

— O aluno, perplexo, tentou um gracejo.

— Pelo bendito Santo Antônio! — disse ele. — Mas você deve ter dormido profundamente, a julgar pela a dureza de seu leito.

— Pelo contrário: o sono tem sido um estranho para estes olhos; a vigilância incessante tem sido a minha desgraça. Escute a minha sina. Eu era um dos guardas reais de Fernando e Isabel. Contudo, fui feito prisioneiro pelos mouros em uma de suas incursões, e confinado, como prisioneiro, nesta torre. Quando eram realizados os preparativos para a entrega da fortaleza aos soberanos cristãos, um alfaquí[5] — sacerdote mouro — persuadiu-me a ajudá-lo a esconder alguns dos tesouros de Boabdil[6] nesta abóbada. Eu fui, com justiça, punido por minha falta. O alfaquí era um necromante africano e, com suas artes infernais, lançou sobre mim um feitiço, condenando-me a guardar os seus tesouros. Algo deve ter acontecido a ele, pois nunca mais voltou, e aqui permaneço desde então, enterrado vivo. Anos e anos se passaram; terremotos têm sacudido esta colina; ouvi derruir as paredes da torre, pedra por pedra, pela ação natural do tempo; mas as paredes enfeitiçadas desta abóbada se mantêm, desafiando o tempo e os terremotos.

Uma vez a cada cem anos, na festa de São João, o encantamento perde a plenitude de seu poder, e eu tenho a faculdade de sair e me postar na ponte do Darro, onde você me encontrou, esperando que alguém, dotado de suficiente virtude, se apresente para quebrar este mágico encantamento. Até agora, tenho montado guarda na ponte, mas em vão. Eu ando como se envolvido por uma nuvem, que me oculta aos olhos dos mortais. Em trezentos anos, você é o primeiro a me abordar. Eu agora sei por que razão. Eu vejo em seu dedo o anel com o sinete de Salomão, o sábio, um talismã que tem o poder de quebrar qualquer encantamento. E você tem a prerrogativa de me livrar deste terrível calabouço ou de me deixar aqui, onde terei de montar guarda por mais cem anos.

O estudante ouviu essa história em mudo espanto. Já ouvira muitas histórias de tesouros encerrados, sob forte encantamento, nas abóbadas de Alambra, mas sempre pensou que não passavam de fábulas. Agora, dava-se conta do valor daquele anel com sinete, que era, de certa forma, uma dádiva de São Cipriano. Ainda assim, embora armado de seu tão poderoso talismã, era uma coisa horrível encontrar-se, face a face, naquele lugar, com um soldado enfeitiçado que, de acordo com as leis da natureza, deveria repousar, silenciosamente, em seu túmulo há quase três séculos.

Como um personagem dessa natureza, no entanto, fugia à ordem natural das coisas, e não devia ser tomado como uma brincadeira, o estudante assegurou-lhe que poderia confiar em sua amizade e boa vontade para fazer tudo que estivesse a seu alcance, a fim de garantir a sua libertação.

— Confio em um motivo mais poderoso do que a amizade — disse o soldado.

E apontou para um pesado cofre de ferro, protegido por fechaduras com inscrições em caracteres árabes.

— Aquele cofre — disse ele — contém um incontável tesouro em ouro, joias e pedras preciosas. Quebre o feitiço que me encanta, e metade deste tesouro será seu.

— Mas como farei isso?

— Será necessária a colaboração de um sacerdote e de uma donzela cristãos. O sacerdote, para exorcizar os poderes das trevas; a donzela, para tocar neste baú com o sinete de Salomão. Isso deve ser feito à noite. Mas tome cuidado: este é um ritual solene, que não deve ser realizado por espíritos com inclinações carnais. O sacerdote deve ser um cristão-velho, modelo de santidade, que deverá mortificar a carne, antes de vir, com um rigoroso jejum de vinte e quatro horas; e, quanto à donzela, esta deve ser irrepreensível e à prova de qualquer tentação. Não demore em encontrar-me ajuda. Em três dias, termina a minha licença. Se o auxílio não me chegar antes da meia-noite do terceiro dia, terei que montar guarda por mais um século.

— Não tema — disse o estudante. —Tenho exatamente em vista o sacerdote e a donzela com as características que você descreveu; mas como entrarei novamente nesta torre?

— O selo de Salomão lhe abrirá o caminho.

O aluno saiu da torre muito mais alegre do que quando entrou. A parede se fechou atrás dele e permaneceu tão sólida quanto antes.

Na manhã seguinte, o estudante dirigiu-se audaciosamente à casa do padre, mas não como um pobre estudante ambulante, dedilhando um violão, e sim como um embaixador do mundo sombrio, que oferece tesouros encantados. Não se conservaram os detalhes de sua negociação, mas se sabe que o empenho do digno sacerdote se inflamou facilmente com a ideia de resgatar um velho soldado da fé e um cofre do Rei Jovem das próprias garras de Satanás; e, então, quantas esmolas poderiam ser distribuídas, quantas igrejas construídas e quantos parentes pobres enriquecidos com o tesouro mouro!

Quanto à imaculada serva, estava pronta para emprestar sua mão, que era tudo o quanto era necessário para a consumação da obra piedosa; e, se podemos acreditar que em sua face assomava um ou outro tímido olhar, diríamos que o embaixador julgou haver encontrado alguma aquiescência naqueles olhos modestos.

A maior dificuldade, porém, fora o jejum a que o bom padre teve de se submeter. Por duas vezes, ele tentou privar-se dos alimentos, e nas duas vezes a carne apresentou-se muito mais forte que o espírito. Foi apenas no terceiro dia que ele conseguiu resistir às tentações da dispensa; contudo, ainda era um mistério saber se ele resistiria até o fim, até que o encanto fosse quebrado.

Tarde da noite, o grupo avançou, tateando a ravina, à luz de uma lamparina, e carregando uma cesta com provisões para exorcizar o demônio da fome, assim que os outros demônios fossem enterrados no mar Vermelho.

O selo de Salomão lhes abriu o caminho para a torre. Acharam o soldado sentado sobre o cofre encantado, aguardando a sua chegada. O exorcismo foi devidamente executado. A donzela avançou e tocou nas fechaduras do cofre com o sinete de Salomão. A tampa se entreabriu e a miríade de tesouro, em ouro e joias e pedras preciosas, brilhou diante de seus olhos!

— Ei-lo aberto! Vamos, vamos! — exclamou o estudante, exultante, enquanto começava a encher os bolsos.

— Ajamos com calma e equidade — exclamou o soldado. — Tiremos o cofre inteiro; depois, dividiremos o tesouro.

Por consequência, labutaram com grande empenho e esforço. Contudo, era uma tarefa difícil; o baú era imensamente pesado e estava incrustrado ali há séculos. Enquanto estavam assim ocupados, o bom domine se afastou para um lado e atacou avidamente a cesta de iguarias, exorcizando o demônio da fome que se enfurecia em suas entranhas. Em pouco tempo, o padre devorou um gordo capão, que foi seguido por um profundo gole de Valdepeñas[7]; e, a caminho da graça depois da vianda, pregou um beijo cheio de bondade na cordeirinha de estimação que o servia. Foi um beijo silencioso, dado num cantinho da abóbada, mas, triunfantes, as paredes denunciadoras reverberam o estalo. Jamais um casto beijo causara tão catastróficos efeitos. Ao ouvi-lo, o soldado deu um grande grito de desespero; a tampa cofre, que estava semiaberto, voltou a fechar-se, lacrando o interior. Sacerdote, estudante e donzela encontraram-se fora da torre, cujas paredes se fecharam num ruído trovejante. Ai! O bom padre havia quebrado o seu jejum cedo demais!

Quando se refez de sua surpresa, quis o estudante entrar novamente na torre, mas soube, para seu desânimo, que a donzela, em seu susto, deixara cair o selo de Salomão, que ficara dentro da abóbada.

Em uma palavra, o sino da catedral tocou meia-noite; o feitiço revigorou-se; o soldado estava condenado a montar guarda por mais cem anos, e, sob as abóbadas da torre em ruínas, permanece o tesouro encerrado até hoje — e tudo porque o padre de bom coração beijou a sua serva.

—Ah, meu padre! Meu padre! — disse o estudante, balançando a cabeça pesarosamente, enquanto desciam a ravina. — Receio que no seu beijo houvesse mais de pecador do que se santo!

Assim termina a lenda, até onde foi possível confirmá-la. Todavia, há uma tradição a sustentar que o estudante havia conservado no bolso tesouro suficiente para posicioná-lo dignamente no mundo; que prosperou em seus negócios; que o honrado padre lhe deu a cordeirinha de estimação em casamento, como forma de reparação pelo erro cometido na abóboda; que a imaculada donzela provou ser um modelo para as demais esposas, assim como havia sido para as servas, e deu ao seu marido uma numerosa prole; que o primeiro rebento foi um prodígio: nasceu sete meses depois do casamento e, embora fosse um menino prematuro, era o mais robusto do rebanho. Os demais nasceram no tempo normal.

A história do soldado encantado continua sendo uma das tradições mais populares de Granada, embora transmitida de diferentes maneiras; a gente simples afirma que o soldado ainda monta guarda na véspera do solstício de verão, ao lado da gigantesca romã de pedra na Ponte do Darro, mas permanece invisível, exceto para um mortal afortunado que possua o sinete de Salomão.



[1] Antiga moeda espanhola, de cobre, cujo valor correspondia a quatro maravedis, esta última moeda de pouco valor na Espanha do séc. XIX.

[2] Belos; os que encantam por sua graça, beleza ou simpatia.

[3] Certo jogo de cartas em que participam três pessoas.

[4] Provavelmente, os estudantes eram assim designados por receberem, por caridade, sopa nas casas e nos conventos aonde buscavam auxílio.

[5] Jurista e sacerdote entre os mulçumanos.

[6] Abū ‘Abd Allāh Muhammad ibn ‘Alī al-Hasan ‘Alī, dito Boabdil ou Rei Jovem (c. 1460 – c. 1533), foi o último soberano do reino mouro de Granada.

[7] Vinho da região castelhana de Valdepenãs.




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A MÁSCARA DA MORTE ESCARLATE - Conto de Terror - Edgar Allan Poe

O RETRATO OVAL - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe

NO CAMPO DE OLIVEIRAS - Conto Trágico - Guy de Maupassant

O GATO PRETO - Conto Clássico de Terror - Edgar Allan Poe