A LENDA DO SOLDADO ENCANTADO - Conto Clássico Fantástico - Washington Irving
A
LENDA DO SOLDADO ENCANTADO
Washington Irving
(1783 – 1859)
Tradução de Paulo Soriano
Todos
já ouviram falar da Caverna de São Cipriano em Salamanca, onde, antigamente, a
astrologia, a necromancia, a quiromancia e outras artes ocultas e condenáveis
eram ensinadas secretamente por um antigo sacristão; ou, como alguns dirão,
pelo próprio diabo, sob aquele disfarce.
A
caverna está fechada há muito tempo e a sua própria localização já foi esquecida.
Todavia, segundo a tradição, a entrada da gruta situa-se em algum lugar próximo
à cruz de pedra que se ergue na pequena praça do seminário de Carvajal; e essa
tradição parece, em certa medida, corroborada pelas circunstâncias da seguinte
história.
Havia
em Salamanca um estudante, chamado dom Vicente, que pertencia a essa espécie de
alunos joviais, embora mendicantes, que percorre o caminho da aprendizagem sem
um tostão no bolso para a viagem, e que, durante as férias de seu curso,
mendigava de cidade em cidade, e de vila em vila, para arrecadar recursos que lhe
permitisse prosseguir em seus estudos no ciclo subsequente. Ele estava, agora,
prestes a iniciar suas andanças; e, tendo a música por inclinação, pendurou nas
costas uma guitarra para divertir os aldeões e obter os meios de pagar uma
refeição ou um pernoite numa estalagem.
Ao
passar pela cruz de pedra na praça do seminário, tirou o chapéu e fez uma breve
invocação a São Cipriano, para que lhe concedesse uma boa sorte; e, ao baixar
os olhos, viu que algo cintilava ao pé da cruz. Ao pegá-lo, constatou tratar-se
de anel de chancela, de metal maciço, no qual ouro e prata pareciam estar amalgamados.
O selo tinha gravados dois triângulos que se cruzavam, formando uma estrela.
Este emblema é considerado um sinal cabalístico, criado pelo Rei Salomão, o
sábio, dotado de grande poder contra todas as espécies de encantamento; mas,
como o honrado estudante não era sábio ou feiticeiro, nada sabia dos poderes do
talismã. Assim, tomou o anel como um presente de São Cipriano — uma prova de
gratidão por sua oração —, colocou-o no dedo, fez uma reverência para a cruz e,
dedilhando sua guitarra, retomou alegremente a sua caminhada.
A vida de um estudante mendicante na
Espanha não é precisamente das mais miseráveis do mundo, sobretudo se ele
tiver algum talento para atrair simpatias. Ele perambula livremente de aldeia
em aldeia, e de cidade em cidade, onde quer que a curiosidade ou o capricho o
conduzam. Os párocos rurais, que em sua maioria foram estudantes mendicantes em
seu tempo, dão-lhe abrigo para a noite e uma refeição reconfortante, e muitas
vezes o enriquecem com vários cuartos[1]
— ou meio pence — pela manhã. Quando batiam de porta em porta nas ruas
das cidades, eles não encontravam nenhuma firme rejeição, nenhum frio desprezo,
pois ninguém considerava uma desonra fomentar sua mendicidade, já que muitos
dos maiores eruditos da Espanha começaram desta maneira os seus estudos; mas se
o mendicante é, como o nosso estudante, um companheiro bonito e jovial, e, sobretudo,
se ele sabe tocar guitarra, haverá sempre para ele a certeza de encontrar uma
acolhida cordial entre os camponeses e sorrisos e favores de suas esposas e
filhas.
Assim,
pois, nosso jovem — maltrapilho e filho musical da ciência — percorreu metade
do reino, com a firme determinação de visitar a famosa cidade de Granada antes
de seu retorno. Às vezes, ele era acolhido, à noite, na casa de algum pároco de
aldeia; outras, abrigava-se sob o teto humilde, mas hospitaleiro, de um
camponês. Sentado à porta da choupana com a sua guitarra, ele deleitava o povo
simples com suas canções, ou tocava um fandango ou bolero para que os rapazes e
moças morenas do campo dançassem sob o tênue crepúsculo. De manhã, ele partia,
recebendo as palavras amáveis do anfitrião e da anfitriã, e, das filhas, olhares
amáveis e, às vezes, um aperto de mão.
Por
fim, chegou ao grande objeto de sua vagabundagem musical: a famosa cidade de
Granada. Saudou, com admiração e deleite, suas torres mouriscas, sua adorável Vega
e suas montanhas nevadas, que resplandeciam através da atmosfera de verão. Não
é preciso dizer com que ávida curiosidade ele entrou por seus portões e vagou
por suas ruas, contemplando seus monumentos orientais. Cada rosto feminino que
espiava por uma janela, ou refulgia de uma varanda, era para ele uma Zorayda ou
Zelinda; e, se se deparava com uma elegante dama na Alameda, logo tratava de
imaginá-la uma princesa mourisca e estendia a sua capa de estudante sob os seus
pés.
Com
seu talento musical, seu humor jovial, sua juventude e sua boa aparência, o
estudante arrebatava uma recepção universal, apesar de suas vestes
esfarrapadas, e, por vários dias, levou uma vida alegre na antiga capital moura
e seus arredores. Um dos lugares que costumava frequentar era a fonte de
Avellanos, no vale do Darro, um
dos pontos de reunião populares desde a época dos mouros; e, ali, o
estudante teve a oportunidade de prosseguir seus estudos de beleza feminina, um
ramo do conhecimento ao qual ele se sentia algo inclinado.
Na
fonte, ele se sentava com seu violão, improvisava canções de amor para grupos
de admiradores majos[2]
e majas, ou os incitava, com sua música, a dança sempre pronta. Era nisto
que ele se ocupava uma noite, quando viu chegando o pároco da igreja, e a cuja
aproximação cada um tirava o chapéu. O padre era, evidentemente, um homem
importante; era o espelho do bem — e mesmo da vida santa —, com seu talhe robusto
e o rosto rosado. Respirava por todos os poros, à conta do calor do ambiente e do
esforço da caminhada. De vez em quando, à medida que passava, tirava um
maravedil do bolso e o dava a um mendigo, com um ar de notável benevolência.
—
Ah, padre abençoado! — exclamavam. — Que Deus lhe dê vida longa e que em breve
seja bispo!
Para
auxiliar-se na subida da colina, apoiava-se, às vezes, suavemente, no braço de
uma jovem criada, evidentemente o cordeirinho de estimação daquele pastor, o
mais gentil entre todos. Ah, que donzela! Andaluza da cabeça aos pés: desde a rosa
no cabelo ao sapatinho de fada e meias rendadas. Andaluza em cada movimento; em
cada ondulação do corpo era uma exuberante e ardente Andaluza! Mas era tão tímida,
tão recatada! Permanecia sempre de olhos baixos, ouvindo as palavras do padre;
ou, se deixava escapar um olhar de soslaio, prontamente o continha, e voltava a
fixá-lo no chão.
O
bom padre olhou com benevolência as pessoas reunidas ao redor da fonte e sentou-se,
com alguma ênfase, num banco de pedra, enquanto a criada se apressava em lhe
trazer um copo de água fresca, cujo conteúdo sorveu deliberadamente e com gosto, temperando-o
com um daqueles nacos esponjosos de ovos gelados e açúcar, tão caros aos
epicuristas espanhóis. Quando devolveu o copo à donzela, o padre beliscou-lhe o
rosto com infinita bondade amorosa.
—
Ah, o bom pastor! — sussurrou o aluno para si mesmo. — Que felicidade seria estar
reunido em seu redil, tendo uma cordeirinha de estimação, como esta, por companheira!
Mas
não era provável que tivesse semelhante sorte. Em vão, ensaiou um daqueles expedientes
sedutores, tão irresistíveis aos padres das aldeias e às jovens campesinas. Jamais
tocara a sua guitarra com tanta habilidade; jamais cantara canções tão comoventes.
Mas, apesar de seu empenho, não lidava agora com um padre da aldeia ou com uma
jovem do campo. O digno sacerdote, evidentemente, não gostava de música, e a recatada
donzela jamais tirava os olhos do chão. Não ficaram muito tempo na fonte, pois o
bom padre já apressava o seu retorno a Granada. A donzela lançou ao estudante
um tímido olhar; mas aquele olhar arrancou o coração de seu peito!
O
estudante indagou sobre eles depois que partiram. Padre Tomás era um dos santos
de Granada, modelo de regularidade: pontual na hora de levantar-se; de dar o
seu paseo para abrir o apetite; na de comer; na de tirar a siesta;
na de jogar o seu tresillo[3],
à tarde, com algumas das damas do círculo da Catedral; na de jantar e na de
retirar-se para descansar, a fim de reunir forças para mais uma jornada de
semelhantes ocupações no dia seguinte. Ele tinha uma mula dócil e elegante para
suas cavalgadas, uma matronal governanta, especialista no preparo de iguarias
para a sua mesa, e a cordeirinha de estimação para amaciar seu travesseiro à
noite e trazer seu chocolate pela manhã.
Agora...
Adeus à vida alegre e irrefletida do estudante: o olhar de soslaio, vinda de
olhos refulgentes, o havia arruinado. Dia e noite, ele não conseguia tirar da
cabeça a imagem da recatada donzela. Procurou a casa do padre. Mas — ai! — era
inacessível a um estudante andarilho como ele. O digno padre não tinha simpatia
por ele; nunca fora estudiante sopista[4],
obrigado a cantar para comer. Ele rondava a casa durante o dia, lançando, de
vez em quando, uma olhadela na donzela, quando esta aparecia numa janela; mas
esses olhares apenas alimentavam a sua e desencorajavam a sua esperança. À
noite, ele fazia uma serenata sob a sacada da donzela, e, certa feita, ficou
lisonjeado com o aparecimento de algo branco numa janela. Infelizmente, era
apenas o gorro de dormir do padre.
Jamais
se viu um amante mais devotado e uma donzela mais tímida: o pobre estudante foi
reduzido ao desespero. Por fim, chegou a véspera de São João, quando o
populacho de Granada invadia o campo, dançava à tarde e passava a noite de
verão às margens do Darro e do Genil. Felizes os que, nesta noite agitada,
podem lavar o rosto nessas águas, quando o sino da Catedral anuncia a
meia-noite; é que, neste preciso momento, aquelas águas adquirem o poder de
embelezar as pessoas. O estudante, sem ter o que fazer, deixou-se levar pela
multidão em busca de diversão, até se encontrar no estreito vale do Darro, sob
a altiva colina e as torres avermelhadas de Alambra. O leito seco do rio, as
rochas que o circundavam, os jardins em terraços que se debruçam sobre ele eram
animados por vários grupos que, sob as videiras e figueiras, dançavam ao som
das de guitarras e castanholas.
O
estudante ficou algum tempo desamparado e triste, encostado numa das enormes e
disformes romãs de pedra que adornam as extremidades da pequena ponte sobre o
Darro. Lançou um olhar melancólico sobre a cena alegre, onde cada cavalheiro
tinha sua dama, ou, mais propriamente, cada José a sua Maria; em sua solidão, suspirou.
Era uma vítima dos olhos negros da mais inacessível das donzelas, e lamentou o
seu traje esfarrapado, que parecia fechar-lhe o portão da esperança.
Aos
poucos, sua atenção foi atraída para um vizinho tão solitário quanto ele. Era
um soldado alto, de grave aspecto e barba grisalha, que parecia postado, como uma
sentinela, na romã oposta. Seu rosto estava bronzeado pelo tempo; envergava uma
antiga armadura espanhola, com lança e escudo, e permanecia imóvel como uma
estátua. O que surpreendeu o aluno foi que, embora assim estranhamente
equipado, ele passava totalmente despercebido pela multidão que atravessava a
ponte, embora muitos quase esbarrassem nele.
—
Esta é uma cidade repleta de peculiaridades de outros tempos — pensou o
estudante — e, sem dúvida, esta é uma delas. Os habitantes estão tão
familiarizados a elas que não se surpreendem.
Sua
própria curiosidade, entretanto, foi despertada e, sendo por natureza sociável,
abordou o soldado.
—
Rara e velha a armadura esta que você usa, camarada. Posso perguntar a que guarnição
você pertence?"
O
soldado, por de um par de mandíbulas, que pareciam ter enferrujado nas
dobradiças, grunhiu uma resposta:
—
Pertenço à guarda real de Fernando e Isabel.
—
Santa Maria! Ora, esta guarnição está extinta há três séculos!
—
E durante três séculos estive montando guarda. Agora, acredito que meu turno
está acabando. Você almeja a fortuna?
O
estudante ergueu sua capa esfarrapada à guisa de resposta.
—
Eu o entendo. Se você tem fé e coragem, siga-me, e sua fortuna está sua.
—
Vamos com calma, camarada. Segui-lo requereria pouca coragem a quem não tem
nada a perder, a não ser a vida e uma guitarra velha, ambas de pouco valor; mas,
quanto à minha fé, isso é diferente, e não quero expô-la à tentação. Se a
obtenção da fortuna se subordina à prática de algum ato criminoso, não pense
que meu manto esfarrapado servirá de pretexto para empreendê-lo.
O
soldado lançou-lhe um olhar de grande desgosto.
—
Minha espada — disse ele — nunca foi desembainhada senão pela causa da fé e do
trono. Sou um cristão-velho. Confie em mim e não tema o mal.
O
aluno considerou aquela situação. Observou que ninguém dava ouvidos àquela
conversa, e que o soldado caminhava por entre os vários grupos de foliões sem
ser notado, como se fosse invisível.
Cruzando
a ponte, o soldado tomou um caminho estreito e íngreme, e, passando por um
moinho e pelo aqueduto mourisco, subiu a ravina que separa os domínios de
Generalife e Alambra. O último raio do sol brilhava sobre as ameias vermelhas desse
palácio, que eram vistas lá no alto; e os sinos do convento proclamavam a festa
do dia seguinte. A ravina era sombreada por figueiras, vinhas e murtas, e pelas
torres externas e paredes da fortaleza. Aquele ermo era sombrio, e os morcegos,
amantes do crepúsculo, se punham a esvoaçar. Por fim, o soldado parou em uma
torre remota e em ruínas, aparentemente destinada a proteger um aqueduto mouro.
Ele golpeou a base com a ponta de sua lança. Ouviu-se um estrépito e as sólidas
pedras se separaram, deixando uma abertura tão larga quanto uma porta.
—
Entre em nome da Santíssima Trindade — disse o soldado — e nada tema.
O
coração do estudante estremeceu, mas ele fez o sinal da cruz, murmurou uma ave-maria
e seguiu seu guia misterioso até uma abóbada profunda, recortada na rocha
sólida, sob a torre, e coberta com inscrições árabes. O soldado apontou para um
banco de pedra talhado ao longo de uma das faces da abóbada.
—Eis
— disse ele — o meu leito por trezentos anos.
—
O aluno, perplexo, tentou um gracejo.
—
Pelo bendito Santo Antônio! — disse ele. — Mas você deve ter dormido
profundamente, a julgar pela a dureza de seu leito.
—
Pelo contrário: o sono tem sido um estranho para estes olhos; a vigilância
incessante tem sido a minha desgraça. Escute a minha sina. Eu era um dos
guardas reais de Fernando e Isabel. Contudo, fui feito prisioneiro pelos mouros
em uma de suas incursões, e confinado, como prisioneiro, nesta torre. Quando eram
realizados os preparativos para a entrega da fortaleza aos soberanos cristãos, um
alfaquí[5]
— sacerdote mouro — persuadiu-me a ajudá-lo a esconder alguns dos tesouros de
Boabdil[6]
nesta abóbada. Eu fui, com justiça, punido por minha falta. O alfaquí
era um necromante africano e, com suas artes infernais, lançou sobre mim um
feitiço, condenando-me a guardar os seus tesouros. Algo deve ter acontecido a
ele, pois nunca mais voltou, e aqui permaneço desde então, enterrado vivo. Anos
e anos se passaram; terremotos têm sacudido esta colina; ouvi derruir as
paredes da torre, pedra por pedra, pela ação natural do tempo; mas as paredes enfeitiçadas
desta abóbada se mantêm, desafiando o tempo e os terremotos.
Uma
vez a cada cem anos, na festa de São João, o encantamento perde a plenitude de
seu poder, e eu tenho a faculdade de sair e me postar na ponte do Darro, onde
você me encontrou, esperando que alguém, dotado de suficiente virtude, se
apresente para quebrar este mágico encantamento. Até agora, tenho montado
guarda na ponte, mas em vão. Eu ando como se envolvido por uma nuvem, que me
oculta aos olhos dos mortais. Em trezentos anos, você é o primeiro a me abordar.
Eu agora sei por que razão. Eu vejo em seu dedo o anel com o sinete de Salomão,
o sábio, um talismã que tem o poder de quebrar qualquer encantamento. E você
tem a prerrogativa de me livrar deste terrível calabouço ou de me deixar aqui,
onde terei de montar guarda por mais cem anos.
O
estudante ouviu essa história em mudo espanto. Já ouvira muitas histórias de
tesouros encerrados, sob forte encantamento, nas abóbadas de Alambra, mas sempre
pensou que não passavam de fábulas. Agora, dava-se conta do valor daquele anel
com sinete, que era, de certa forma, uma dádiva de São Cipriano. Ainda assim,
embora armado de seu tão poderoso talismã, era uma coisa horrível encontrar-se,
face a face, naquele lugar, com um soldado enfeitiçado que, de acordo com as
leis da natureza, deveria repousar, silenciosamente, em seu túmulo há quase três
séculos.
Como
um personagem dessa natureza, no entanto, fugia à ordem natural das coisas, e não
devia ser tomado como uma brincadeira, o estudante assegurou-lhe que poderia
confiar em sua amizade e boa vontade para fazer tudo que estivesse a seu
alcance, a fim de garantir a sua libertação.
—
Confio em um motivo mais poderoso do que a amizade — disse o soldado.
E
apontou para um pesado cofre de ferro, protegido por fechaduras com inscrições
em caracteres árabes.
—
Aquele cofre — disse ele — contém um incontável tesouro em ouro, joias e pedras
preciosas. Quebre o feitiço que me encanta, e metade deste tesouro será seu.
—
Mas como farei isso?
—
Será necessária a colaboração de um sacerdote e de uma donzela cristãos. O
sacerdote, para exorcizar os poderes das trevas; a donzela, para tocar neste
baú com o sinete de Salomão. Isso deve ser feito à noite. Mas tome cuidado:
este é um ritual solene, que não deve ser realizado por espíritos com
inclinações carnais. O sacerdote deve ser um cristão-velho, modelo de
santidade, que deverá mortificar a carne, antes de vir, com um rigoroso jejum de
vinte e quatro horas; e, quanto à donzela, esta deve ser irrepreensível e à
prova de qualquer tentação. Não demore em encontrar-me ajuda. Em três dias, termina
a minha licença. Se o auxílio não me chegar antes da meia-noite do terceiro dia,
terei que montar guarda por mais um século.
—
Não tema — disse o estudante. —Tenho exatamente em vista o sacerdote e a
donzela com as características que você descreveu; mas como entrarei novamente nesta
torre?
—
O selo de Salomão lhe abrirá o caminho.
O
aluno saiu da torre muito mais alegre do que quando entrou. A parede se fechou
atrás dele e permaneceu tão sólida quanto antes.
Na
manhã seguinte, o estudante dirigiu-se audaciosamente à casa do padre, mas não
como um pobre estudante ambulante, dedilhando um violão, e sim como um
embaixador do mundo sombrio, que oferece tesouros encantados. Não se
conservaram os detalhes de sua negociação, mas se sabe que o empenho do digno
sacerdote se inflamou facilmente com a ideia de resgatar um velho soldado da fé
e um cofre do Rei Jovem das próprias garras de Satanás; e, então, quantas esmolas
poderiam ser distribuídas, quantas igrejas construídas e quantos parentes
pobres enriquecidos com o tesouro mouro!
Quanto
à imaculada serva, estava pronta para emprestar sua mão, que era tudo o quanto era
necessário para a consumação da obra piedosa; e, se podemos acreditar que em
sua face assomava um ou outro tímido olhar, diríamos que o embaixador julgou
haver encontrado alguma aquiescência naqueles olhos modestos.
A
maior dificuldade, porém, fora o jejum a que o bom padre teve de se submeter. Por
duas vezes, ele tentou privar-se dos alimentos, e nas duas vezes a carne apresentou-se
muito mais forte que o espírito. Foi apenas no terceiro dia que ele conseguiu
resistir às tentações da dispensa; contudo, ainda era um mistério saber se ele
resistiria até o fim, até que o encanto fosse quebrado.
Tarde
da noite, o grupo avançou, tateando a ravina, à luz de uma lamparina, e
carregando uma cesta com provisões para exorcizar o demônio da fome, assim que
os outros demônios fossem enterrados no mar Vermelho.
O
selo de Salomão lhes abriu o caminho para a torre. Acharam o soldado sentado
sobre o cofre encantado, aguardando a sua chegada. O exorcismo foi devidamente executado.
A donzela avançou e tocou nas fechaduras do cofre com o sinete de Salomão. A
tampa se entreabriu e a miríade de tesouro, em ouro e joias e pedras preciosas,
brilhou diante de seus olhos!
—
Ei-lo aberto! Vamos, vamos! — exclamou o estudante, exultante, enquanto
começava a encher os bolsos.
—
Ajamos com calma e equidade — exclamou o soldado. — Tiremos o cofre inteiro; depois,
dividiremos o tesouro.
Por
consequência, labutaram com grande empenho e esforço. Contudo, era uma tarefa
difícil; o baú era imensamente pesado e estava incrustrado ali há séculos.
Enquanto estavam assim ocupados, o bom domine se afastou para um lado e
atacou avidamente a cesta de iguarias, exorcizando o demônio da fome que se
enfurecia em suas entranhas. Em pouco tempo, o padre devorou um gordo capão,
que foi seguido por um profundo gole de Valdepeñas[7];
e, a caminho da graça depois da vianda, pregou um beijo cheio de bondade na
cordeirinha de estimação que o servia. Foi um beijo silencioso, dado num cantinho
da abóbada, mas, triunfantes, as paredes denunciadoras reverberam o estalo. Jamais
um casto beijo causara tão catastróficos efeitos. Ao ouvi-lo, o soldado deu um
grande grito de desespero; a tampa cofre, que estava semiaberto, voltou a
fechar-se, lacrando o interior. Sacerdote, estudante e donzela encontraram-se
fora da torre, cujas paredes se fecharam num ruído trovejante. Ai! O bom padre havia
quebrado o seu jejum cedo demais!
Quando
se refez de sua surpresa, quis o estudante entrar novamente na torre, mas soube,
para seu desânimo, que a donzela, em seu susto, deixara cair o selo de Salomão,
que ficara dentro da abóbada.
Em
uma palavra, o sino da catedral tocou meia-noite; o feitiço revigorou-se; o
soldado estava condenado a montar guarda por mais cem anos, e, sob as abóbadas
da torre em ruínas, permanece o tesouro encerrado até hoje — e tudo porque o
padre de bom coração beijou a sua serva.
—Ah,
meu padre! Meu padre! — disse o estudante, balançando a cabeça pesarosamente,
enquanto desciam a ravina. — Receio que no seu beijo houvesse mais de pecador
do que se santo!
Assim
termina a lenda, até onde foi possível confirmá-la. Todavia, há uma tradição a
sustentar que o estudante havia conservado no bolso tesouro suficiente para posicioná-lo
dignamente no mundo; que prosperou em seus negócios; que o honrado padre lhe
deu a cordeirinha de estimação em casamento, como forma de reparação pelo erro cometido
na abóboda; que a imaculada donzela provou ser um modelo para as demais esposas,
assim como havia sido para as servas, e deu ao seu marido uma numerosa prole;
que o primeiro rebento foi um prodígio: nasceu sete meses depois do casamento
e, embora fosse um menino prematuro, era o mais robusto do rebanho. Os demais
nasceram no tempo normal.
A
história do soldado encantado continua sendo uma das tradições mais populares
de Granada, embora transmitida de diferentes maneiras; a gente simples afirma
que o soldado ainda monta guarda na véspera do solstício de verão, ao lado da
gigantesca romã de pedra na Ponte do Darro, mas permanece invisível, exceto
para um mortal afortunado que possua o sinete de Salomão.
[1] Antiga moeda espanhola, de cobre, cujo valor correspondia a quatro maravedis, esta última moeda de pouco valor na Espanha do séc. XIX.
[2] Belos; os que encantam por sua graça, beleza ou simpatia.
[3] Certo jogo de cartas em que participam três pessoas.
[4] Provavelmente, os estudantes eram assim designados por receberem, por caridade, sopa nas casas e nos conventos aonde buscavam auxílio.
[5] Jurista e sacerdote entre os mulçumanos.
[6] Abū ‘Abd Allāh Muhammad ibn ‘Alī al-Hasan ‘Alī, dito Boabdil ou Rei Jovem (c. 1460 – c. 1533), foi o último soberano do reino mouro de Granada.
[7] Vinho da região castelhana de Valdepenãs.
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