NOITE FELIZ - Conto de Horror Natalino - Flavio de Souza
NOITE
FELIZ
Flávio
de Souza
Pela
fresta da janela, ela vislumbrava a vastidão de um mundo branco. Uma imensidão
alva salpicada pela intermitência de lâmpadas multicoloridas. A neve caía
suavemente, lembrava o açúcar despejado sobre uma tigela repleta de flocos de
milho, uma das mais doces recordações de sua infância.
No
entanto, a brandura em sua mente se limitava a episódios raros e isolados. Uma
guirlanda enfeitando uma porta, o aroma agradável de um prato típico, a
ansiedade nos olhos de uma criança. Pois, no fim das contas, esta era a pior
época do ano para ela. Era neste período de festa que a dor da lembrança a
atingia com maior rigor. Nestes dias, que deveriam ser plenos de luz e paz, as feridas
antigas voltavam a sangrar. As marcas em sua alma deixavam claro que o tempo
não apagava a dor causada pelos açoites da vida.
Só
ela sabia o quanto a verdade poderia doer. A certeza de estar sozinha, mesmo
quando cercada por várias pessoas, mostrou-se inabalável por muito tempo.
Durante anos, ela procurou explicações para as artimanhas do destino. No
entanto, era muito difícil enxergar a si mesma naquela realidade. Por mais que
tentasse encontrar um sentido de família naquele cenário, naquelas histórias
tão similares à dela, não conseguia. Todos os esforços se mostravam inúteis.
Parecia que nada poderia repor o que ela havia perdido. Nem mesmo o conforto
das instalações, a dedicação dos funcionários, ou a cumplicidade das outras
crianças, nada ali poderia fornecer o que ela julgava merecer.
Como
eles poderiam ter ido embora? Não havia no mundo crueldade maior do que deixar
uma garotinha a mercê da própria sorte. Não era justo. Não era mesmo...
Ela
contou as horas. Contabilizou cada dia que permaneceu sob a proteção daquele
requintado abrigo. A ansiedade moveu sua rotina, a esperança alimentou seus
desejos durante a longa espera. Mas, a liberdade obtida com a maioridade não
lhe trouxe o conforto que esperava.
Assim,
ela enfrentou os anos seguintes com o peso incalculável das frustrações sobre
os ombros. Ela seria capaz de trocar até o último centavo pela sensação
indescritível de ter uma Noite Feliz. Nada poderia ser mais reconfortante do
que reviver os antigos Natais, aqueles antes da dor... aqueles onde apenas as
coisas boas poderiam existir...
Por
mais que os festejos natalinos conspirassem para que o vazio de sua existência
se transformasse num abismo insondável, ela não se cansava de buscar as
respostas que tanto ansiava, durante esse período. Na verdade, não precisava de
muita coisa para que essa ânsia se tornasse uma obsessão. Para isso, bastava
que as primeiras notas de antigas cantigas ecoassem pelo ar. Pois, ao som do
mais singelo coral, as lágrimas rolavam fartas. A dor era embalada pelo lirismo
da situação.
Tal qual uma criança, ano após ano, ela
esperava pacientemente por sua vez na fila. Para ela, não havia o menor
constrangimento em disputar com os pequenos a atenção do homem de barbas
brancas. Ela se aproximava com os olhos úmidos e tão rubros quanto as vestes do
velho, para, em seguida, derramar seu sofrimento em forma de palavras. Os
sulcos em seu rosto insinuavam uma idade muito superior à que ela, de fato,
ostentava.
Mesmo
sem entender a razão que levava uma mulher feita a buscar espaço em seus braços,
o homem por trás da lenda incorporou plenamente os desígnios que representava.
Pacientemente, ele tratou de ouvir os apelos que chegavam aos seus ouvidos,
trazidos pelo timbre arrastado de uma voz sofrida. Por mais que a mulher
soubesse que a verdade oculta pela maquiagem respondesse apenas pelo rosto de
um desconhecido, ela tinha fé. Acreditava com toda a força do seu coração, que
de algum modo inexplicável, aquela personagem poderia responder a seus anseios.
E,
como numa conexão não declarada, ele também sentia que era capaz de fazer algo
para amenizar tamanha inquietação. Os protestos das crianças ficaram num
segundo plano. Naquele momento, as atenções do velho Nicolau eram exclusivas da
menina em corpo de adulto.
Após
muitos anos representando um papel, ele finalmente entendeu o simbolismo
daquelas roupas. Pela primeira vez, ele sentiu vontade de cruzar os céus num
trenó puxado por renas aladas. As lágrimas daquela estranha o convenciam de que
ele era, de fato, a personificação do Natal. Então, ele perguntou, entre
risadas e interjeições, o que a menina desejava de presente.
Surpreendentemente, ela não pediu nenhuma boneca ou qualquer outro sonho em
forma de brinquedo. O único pedido que fez foi o de ter uma Noite Feliz, com a
benção dos seus anjos.
Ele
não entendeu muito bem o significado daquelas palavras, mas, mesmo assim, disse
que ela ganharia o que desejava, pois havia se comportado bem durante o ano. A
mulher sorriu, nem tanto pelas palavras do velho, mas pelo que ela viu em seu
olhar. Alguma coisa oculta no azul daquelas órbitas lhe dava a certeza de que
teria o que desejava, finalmente.
Chegada
a grande noite, ela não conseguia conter a própria euforia. Movida pela força
obtida desde o encontro com o Senhor dos Sonhos, ela superou os fantasmas do
passado e foi atrás daqueles que há muito não via. A mesa estava preparada.
Velas aromáticas queimavam em castiçais de prata. A superfície esverdeada de um
pequeno pinheiro refletia a luminosidade branda de filamentos luminosos. A
lenha, em cortes simétricos, ardia em brasa alta, envolta pelas pedras polidas
da lareira.
Os
convidados ocupavam os lugares a eles destinados. Permaneciam em silêncio, em
contraste com o fervor entoado pela anfitriã, em forma de canções. Embora a
mulher transbordasse o ânimo renovado, o rigor das lembranças ainda insistia em
lhe visitar. Sua mente vagava no tempo, a levava a uma cena tão semelhante a
que se apresentava diante de sua visão.
II
Seus
olhos de menina olhavam o relógio na parede, os ponteiros marcavam a hora
mágica: meia-noite. Seu presente não caberia no sapato, ela sabia disso. Assim
como sabia que não conseguiria esperar até o nascer do sol para tê-lo.
Sorrateiramente,
ela desceu as escadas, não esperaria pelo chamado dos pais. Sua atitude
impulsiva não encontrou resistência, longe disso, os últimos degraus foram
vencidos com a recepção de um sorriso duplo.
Eles
já se preparavam para chamá-la, seu presente a aguardava, e o melhor: seria
entregue pelas mãos enluvadas do homem de risada fácil.
A
menina correu pelo enorme jardim, seus braços enlaçaram a cintura farta do
velho. Por alguns instantes, criança e herói trocaram olhares, ela quis se
perder na profundidade daquele azul absoluto. Ele estendeu o braço envolto pelo
cetim vermelho, e ela entendeu que seu prêmio estava oculto pela proteção de
uma cortina.
Ao
romper o tecido, a excitação, até então estampada no rosto infantil,
imediatamente converteu-se em inequívoca decepção. O pelo do pônei reluzia sob
a luz dos postes. A pequena cela no dorso do animal ansiava pela presença de
sua dona. No entanto, a menina não demonstrou um milésimo da reação que
normalmente se esperaria de alguém de sua idade. Aos prantos, ela correu de
volta para o quarto. Não deu ouvidos aos apelos que lhe eram lançados.
Desde
a mais tenra lembrança, ela sempre teve o que desejou. Logo, não entendia a
razão pela qual não ganhara o que queria. Afinal, rico ou pobre, ele não
deveria se esquecer de ninguém. Deveria?
Ela
sempre ouvia da mãe diversas histórias. Múltiplas e infinitas fábulas e
canções. Conhecera e se aventurara com gigantes, fadas, sereias e gnomos. Mas
nada chamara tanto a sua atenção quanto o mundo dos anjos. Desde o primeiro
instante, ficara fascinada pelas asas brancas, pelos cabelos dourados, pelas
melodias celestiais, pelas harpas e nuvens.
De
acordo com as palavras da mãe, as pessoas boas quando morriam, recebiam como
prêmio por sua bondade na terra, um par de asas e a vida eterna. Cada anjo
seria responsável por uma criança. Assim, em sua ingenuidade, a menina achou
que poderia ganhar o seu anjo da guarda como presente de Natal. Mas o que
recebeu, de fato, só veio a enchê-la de frustração, nada além disso...
Trancada
no quarto, ela pensou durante muito tempo. Sua convicção elegeu um culpado, um
maldito capaz de arruinar os sonhos mais bonitos. Ano após ano ele retornaria
espalhando desilusões, causando desarmonia nos lares. Isso não estava certo,
não poderia ficar assim. Porém, antes de qualquer coisa, ela precisava reaver o
que era seu por direito. Afinal, cumprira suas tarefas com louvor ao longo do
ano. Ela merecia seu presente. Ela teria o seu anjo, ou, no caso, anjos.
As pessoas boas viravam anjos, e estes
protegiam as crianças. Então, era certo pensar que ela tinha os maiores
protetores no quarto ao lado. Afinal, seus pais eram pessoas boas, e sem dúvida
a amavam.
Na
manhã seguinte, ela levou para os dois uma bandeja com biscoitos amanteigados e
leite fresco. Na verdade, era para ser um agrado para o Bom Velhinho, mas ela
não lhe quis entregar na noite anterior, por razões obvias.
Enquanto
assistia a felicidade nos olhos dos pais com a inesperada e bem-vinda surpresa,
a garota nutria no peito o desejo de que o líquido que misturara à bebida
surtisse efeito. Ela sabia do que o conteúdo daquele recipiente era capaz de
fazer, pois sua mãe sempre a advertira para que não chegasse perto de nada que
tivesse a imagem de um crânio cruzado por ossos, o símbolo da morte.
Logo,
seus pais fechariam os olhos. E, quando estes se abrissem novamente, teriam a
chama de uma fogueira. Então, os dois ganhariam asas, auréolas e um brilho
radiante. Seus anjos ficariam com ela para sempre. Mas, nada disso aconteceu.
Eles realmente fecharam os olhos, mas nunca mais os abriram novamente.
Ela
chorou e gritou. Praguejou e amaldiçoou. Culpou aquele que só deveria trazer
alegria e sonhos, mas que só trouxe a desgraça para sua vida. A menina estava
só no mundo. Não tinha mais ninguém. Viveu o restante da infância num orfanato,
cercada por muito, mas, ainda assim, sozinha. Achava que nunca mais teria um
Natal de verdade. Mas, aquela era uma época de magia, de milagres. Para sua
alegria, percebera que estava errada, sua busca por redenção chegava ao fim...
III
A
neve continuava a cair. Mas o calor da lareira amenizava o rigor do clima
naquele ambiente. Os pratos e talheres postos aguardavam o início da ceia. No
entanto, apesar dos diferentes acompanhamentos dispostos sobre os domínios do
retângulo envernizado, o prato principal ainda não ocupava o lugar que lhe era
devido.
Porém,
tão logo colocou a travessa sobre a mesa, a mulher passou a devorar o banquete
com sofreguidão, sendo acompanhada pelo olhar frio e impassível dos convidados.
Enquanto
os ávidos dentes trituravam o alimento, sua mente perturbada assimilava os
gritos de velhos fantasmas. Logo, os lamentos tornaram-se límpidos como silvos,
e não tardou para que estes assumissem as características estridentes de
sirenes.
De
súbito, ela saiu do frenesi no qual estava mergulhada e, sem esperar por
qualquer sinal externo, ganhou as ruas.
Com
a casa cercada, ela se negou a largar a faca e, com um gesto rápido e certeiro,
desferiu um corte profundo na própria garganta. O líquido jorrou do seu pescoço
como o vinho precioso de uma boa safra desce pelo gargalo frio de uma garrafa.
Sua vida trazia uma nova coloração à pureza alva da neve no chão. Dizem que o
vermelho é a cor do Natal...
Antes
de deslizar o aço da lâmina em si mesma, ela experimentou a sensação
incomparável de uma lembrança libertadora: a imagem daquele maldito!
Depois
de muito procurar, ela já começava a achar que nunca encontraria o responsável
por toda a sua dor. Achava que o infeliz que lhe negara um simples presente
jamais apareceria novamente. No entanto, ela reconheceu aquele olhar escondido
pela sordidez da maquiagem. Sua busca havia terminado naquele momento, ela
teria sua festa, teria seus anjos.
Por
três dias, a mulher deixou a ação do tempero tomar conta da carne. Desde que
fora sequestrado no estacionamento do shopping, o velho em trajes de
Noel permanecera trancado na despensa do casarão. O vermelho que cobria seu
corpo não respondia mais pelas roupas clássicas. A cor era muito mais intensa e
viva, sobretudo pelo sal grosso espalhado sobre as feridas...
Tudo
estava perfeito, ela havia calculado cada detalhe acerca daquela noite, pelo
menos era isso o que achava. Por mais que tivesse sido cuidadosa ao tornar a
placa do veículo ilegível, por conta das câmeras de segurança, seu maior pecado
se tornou evidente, mais uma vez.
Ela não sabia que o seu gosto diferenciado
seria capaz de lhe trazer mais danos. Veículos como o que possuía não eram tão
comuns, afinal de contas. E, mesmo com a demora nas investigações, as
autoridades conseguiram chegar ao local correto.
Os
homens custaram a acreditar no que seus olhos viram: pedaços de um corpo humano
preenchiam um forno na cozinha; fatias de um assado hediondo enfeitavam pratos
de porcelana; ossos avulsos de dois esqueletos repousavam em cadeiras
distintas; armações de arames e penas alvas atrelavam-se à madeira nobre, uma
versão doentia de asas. E, o mais aterrador: os crânios, enfeitados por halos
dourados, guardavam lugar sobre a toalha de mesa. Suas órbitas vazias
observavam uma improvável refeição, enquanto uma chama moribunda derretia o
último toco de vela.
De
fato, os policiais não conseguiam compreender aquela cena, tampouco a
felicidade no rosto da suicida. Eles eram tolos, não sabiam que as pessoas boas
viravam anjos quando morriam... Naquele momento, ela estaria voando com seus
pais...
Mas,
não era só por isso que ela sorria. Na verdade, o motivo de sua satisfação
respondia por outra razão. Após muitos anos, finalmente ela havia conseguido
reviver o momento único do Natal, tal qual desejara. Enfim, experimentava, mais
uma vez, a sensação incomparável de uma verdadeira Noite Feliz...
Sinos
soavam ao longe...
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