O APRENDIZ DE FEITICEIRO - Conto Clássico Fantástico - Luciano de Samósata
O
APRENDIZ DE FEITICEIRO
Luciano
de Samósata
(c.
125 — c. 192)
Na
minha juventude, quando estava no Egito, para onde meu pai me enviou para educar-me,
resolvi subir o Nilo até Coptos, e ouvir a estátua de Memnon, que produzia um
som deveras maravilhoso ao nascer do Sol. Eu a ouvi, mas não era, como poderia
parecer às pessoas comuns, um murmúrio inarticulado. Memnon abriu a boca e me
entregou um oráculo de sete versos. Eu os recitaria, se fossem relevantes à
minha narrativa.
Rio
adentro, tive por companheiro de viagem um ancião de Mênfis, intérprete
sagrado, de admirável erudição, e que se aprofundara em toda a doutrina
egípcia. Dizia-se que ele permanecera vinte e três anos nos santuários
subterrâneos, onde Ísis o iniciou na magia. Fiquei algum tempo sem saber quem
era ele; mas, quando me surpreendeu com mil maravilhas, cada vez que entrávamos
num porto, como montar crocodilos e nadar entre as feras, que o respeitavam e o
lisonjeavam com suas caudas, não mais duvidei de que aquele homem tinha algo de
sagrado e, por meio da consideração e da amabilidade, tornei-me gradualmente
seu amigo, seu confidente. Ele jamais ocultava-me os seus segredos.
Um
dia, finalmente, pediu-me que deixasse todos os meus servos em Mênfis e o
acompanhasse sozinho.
—
Não faltará quem nos sirva— dissera-me ele.
Seguimos,
pois, nós dois, sozinhos. Mas, sempre que chegávamos a uma estalagem, ele
pegava a trave da porta, a vassoura ou o pilão, punha-lhe uma veste e,
proferindo algumas palavras, fazia dele um ser andante, que todos tomavam por
homem. Era este ser que nos trazia a água, preparava as nossas refeições, arrumava
os móveis e servia-nos em tudo com singular destreza. Então, quando terminava os
seus afazeres, o egípcio pronunciava outras palavras, e a vassoura nada mais
era do que uma vassoura; o pilão, um pilão.
Apesar
de minhas súplicas, eu nunca aprendia aquele encantamento; a si, ele reservava
o mistério, embora me ensinasse, de boa vontade, outras formas de magia.
Mas
um dia, estando escondido perto dele, num canto escuro, ouvi, sem que ele
soubesse, a fórmula mágica. Tinha três sílabas. Ele, então, instruiu o pilão com
o que haveria de fazer, e partiu. No dia seguinte, como ele ainda estava
ocupado na cidade, apanhei o pilão. Após vesti-lo, pronunciei as três sílabas que
ouvira e mandei que me trouxesse água. Ele me obedeceu, enchendo a ânfora e
trazendo-a para mim.
—
Chega — eu disse ao pilão. — Não traga
mais água e volte a ser pilão.
Mas,
por mais que eu ordenasse, ele não me escutava e, de tanto trazer água, ameaçava
me afogar.
O
que fazer, então? Temia que Panócrates, ao voltar, ficasse zangado, como seria
o caso. Então, peguei um machado e cortei o pilão em dois. Mas, cada metade
pegava uma ânfora e continuava a trazer mais água. Assim, em vez de um
carregador, agora eu tinha dois.
Neste
momento, Panócrates estava chegando. Vendo o que acontecia, restituiu o pilão à
sua forma primitiva. Todavia, desde então, não me ensinou mais nada, e, por
fim, eu não o vi mais.
Portanto,
só conservo a metade de seu segredo, de modo que, se eu criasse um carregador
de água, nunca saberia como fazê-lo voltar a ser o que era. Ele irá sempre
trazer mais água e inundar a casa.
Versão em português de
Paulo Soriano, a partir da tradução francesa de Joseph-Victor Leclerc (1789 -
1865).
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