O MEL SILVESTRE - Conto Clássico de Horror - Horacio Quiroga
O
MEL SILVESTRE
Horacio Quiroga
Tradução de Paulo
Soriano
Os perigos da selva motivaram Horácio Quiroga a escrever algumas de suas mais inspiradas narrativas. “O Mel Silvestre” é um dos mais pungentes — e cruéis — contos publicados pelo grande escritor uruguaio. Gabriel Bonicassa, um citadino ingênuo e guloso, que nada sabe sobre as armadilhas da natureza, aventura-se a penetrar, sozinho, na perigosa selva argentina. Foi encontrado, dois dias depois, num estado lastimável...
Tenho em Salto Oriental dois primos — hoje já homens
feitos — que, aos doze anos, e por decorrência das profundas leituras de Júlio
Verne, meteram-se no profícuo desafio de abandonar a casa para viver na mata.
Esta fica a duas léguas da cidade. Ali, viveriam primitivamente da caça e da
pesca. Certo é que os garotos não se lembraram de levar consigo escopeta e
anzóis; mas, de toda forma, a mata estava ali, com sua liberdade como fonte de
felicidade, e seus perigos como encanto.
Infelizmente, no segundo dia, foram encontrados por
quem os procurava. Estavam bastante atônitos ainda, não pouco debilitados e,
para o grande assombro dos irmãos menores — iniciados também em Júlio Verne —,
ainda logravam andar sobre os dois pés e ainda sabiam falar.
Mas a aventura dos dois “robinsons” teria sido mais
adequada se tivesse por teatro outra mata menos domingueira. Aqui, nas Missões,
as escapadas conduzem a limites imprevistos, e a eles foi impelido Gabriel
Benincasa pelo orgulho que tinha de suas botas de tempestade.
Tendo Benincasa concluído os seus estudos de
Contabilidade Pública, sentiu um fulminante desejo de conhecer a vida da selva.
A isto não induziu o seu temperamento, já que, devido à sua excelente saúde,
Benincasa era um rapaz pacífico, gordalhão e de face rosada. Portanto, era
suficiente lúcido para preferir um chá com leite e pasteizinhos a, quem sabe,
que fortuita e infernal comida das matas. Mas, à semelhança de um solteiro
ajuizado, que acredita ser o seu dever, à véspera de seu casamento, despedir-se
da vida livre com uma noite de orgia em companhia de seus amigos, Benincasa, de
igual modo, quis honrar a sua vida regrada com dois ou três choques de vida
intensa. Por esse motivo, subia ele o Paraná, a caminho de um obraje — estabelecimento de exploração
florestal —, com as suas famosas botas de tempestade.
Mal saíra de Corrientes, calçara as suas botas
robustas, pois os jacarés das margens já esquentavam a paisagem. Apesar disso,
o contador público cuidava muito de seu calçado, evitando os arranhões e os
sujos contatos.
Deste modo, chegou ao obraje de seu padrinho, que, desde então, teve de conter a
descontração do afilhado:
—
Para onde você vai agora? — perguntou, surpreso.
— À mata. Quero percorrê-la um pouco — respondeu
Benincasa, que acabara de pendurar a winchester
no ombro.
— Mas,
infeliz! Você não vai conseguir dar um passo. Siga a picada, caso queira. Ou
melhor: deixe essa arma e amanhã eu lhe mando um peão para acompanhá-lo.
Benincasa abdicou do passeio. Entretanto, foi até a
beirada do mato, detendo-se ali mesmo. Intentou, vagamente, um passo adentro,
mas prostrou-se, quieto. Enfiou as mãos nos bolsos e olhou detidamente aquele
emaranhado inextricável, assoviando, baixinho, ares incompletos. Depois de
examinar, atenta e novamente, de um lado a outro, a mata, retornou bastante
desiludido.
Entretanto, no dia seguinte, percorreu a picada central
por uma légua. Benincasa não lamentou o passeio, embora o seu fuzil tenha
voltado profundamente adormecido. Pouco a pouco, as feras viriam.
Na segunda noite, elas chegaram, embora tivessem
características um tanto peculiares.
Benincasa
dormia profundamente quando foi acordado pelo padrinho.
—
Hei, dorminhoco! Levante-se, senão elas lhe comem vivo!
Benincasa sentou-se bruscamente na cama, deslumbrado
pela luz de três lanternas de vento que se moviam de um lado para o outro na
peça. Seu padrinho e dois peões lavavam o chão.
—
O que foi? O que foi? — perguntou, pondo-se de pé.
Benincasa já havia sido instruído acerca das
curiosas formigas a que chamamos tanoca.
São pequenas, negras, brilhantes e marcham velozmente, em colunas mais ou menos
largas. São essencialmente carnívoras. Avançam devorando tudo o que encontram
em seu caminho: aranhas, grilos, escorpiões, sapos, serpentes e qualquer ente
vivo que lhes não possa resistir. Não há animal, grande ou forte, que não fuja
delas. Sua entrada em uma casa supõe o extermínio absoluto de todo ser vivente,
pois não há canto ou buraco profundo em que não se precipite a coluna
devoradora. Os cães uivam, os bois mugem e a todos é imperioso abandonar a
casa, sob pena de serem roídos, em dez horas, até o esqueleto. Elas permanecem
no mesmo lugar: um, dois, ou até cinco dias, conforme a sua abundância em
insetos, carne ou gordura. Uma vez tendo devorado tudo, partem. Mas não
resistem à creolina ou substância similar. E como no obraje há sempre creolina, em menos de uma hora o chalé ficou livre
das tanocas.
Benincase
observava, de pertinho, a placa lívida de uma mordedura nos pés.
— Realmente, picam muito forte — disse, surpreso,
erguendo a cabeça para o padrinho.
Este, para quem a observação não tinha qualquer
valor, não respondeu; ao revés, felicitou-se por haver contido a tempo a
invasão. Benincasa reatou o sonho, mesmo que sobressaltado, toda a noite, por
pesadelos tropicais.
No dia seguinte, adentrou a mata, desta feita
portando facão, compreendendo, afinal, que tal instrumento lhe seria muito mais
útil que o fuzil. Mas é certo que o seu pulso não era nenhuma maravilha, e a sua
habilidade, muito menos. De qualquer forma trinchava os ramos, açoitava o rosto
e talhava a bota. Tudo de uma só vez.
A mata crepuscular e silenciosa logo o enfadou.
Dava-lhe a impressão — exata, de resto — de um cenário visto de dia. Da ativa
vida tropical não há, nesta hora, mais que o teatro gelado. Nem um animal, nem
um pássaro, quase nenhum ruído. Benincasa já retornava quando um zumbido
chamou-lhe a atenção. A dez metros, num tronco oco, pequenas abelhas aureolavam
a entrada de um buraco. Aproximou-se com cautela e viu, no fundo da abertura,
doze bolas escuras, do tamanho de um ovo.
— É mel — disse a si mesmo o contador público, com
íntima gula. — Devem ser bolsinhas de cera, cheias de mel...
Mas entre ele — Benincasa — e as bolsinhas interpunham-se
as abelhas. Depois de um momento de descanso, pensou em fogo. Faria uma boa
fumarada. Quis a sorte que, ao se acercar o ladrão, cautelosamente, empunhando
a folhagem úmida, quatro ou cinco abelhas pousassem na sua mão, mas sem
picá-la. Em seguida, Benincasa colheu no ar uma delas e, pressionando-lhe o
abdome, constatou que não tinha ferrão. Sua saliva, já leviana, se aclarou em
melifica abundância. Maravilhosos e bons animaizinhos!
Num estante, o contador desprendeu as bolsinhas de
cera e, afastando-se um bocadinho para escapar ao pegajoso contato das abelhas,
sentou-se em uma raiz arbórea. Sete das doze bolas continham pólen, mas as
demais estavam repletas de mel. Um mel escuro, de sombria transparência, que
Benincasa experimentou gulosamente. Tinha o gosto de alguma coisa. Do que
seria? O contador não conseguia apurar. Certamente de resina de frutas ou
eucalipto. Por igual motivo, o denso mel deixava na boca um ranço acre. Mas, em
compensação, que perfume!
Benincasa, uma vez bem seguro de que umas cinco
bolsinhas já lhe seriam úteis, pôs as mãos à obra. Sua ideia era simples:
manter suspenso sobre a boca o favo gotejante. Contudo, como o mel era espesso,
teve, depois de haver permanecido meio minuto com a boca inutilmente aberta, de
ampliar o buraco. Então o mel aflorou, adelgaçando-se em pesado fio até a
língua do contador.
Um após o outro, os cincos favos se esvaziaram na
boca de Benincasa. Foi inútil suspender os favos por mais tempo, sobretudo
porque já espremera as bolsinhas até esgotá-las. Teve que resignar-se.
Entretanto, a posição da cabeça, virada para o alto,
o deixara um pouco tonto. Pesado de mel, quieto e com os olhos bem abertos,
Benincasa contemplou novamente a mata crepuscular. As árvores e o sol adquiriam
posturas por demais oblíquas e sua cabeça acompanhava o oscilar da paisagem.
—
Que tontura estranha — pensou o contador. E o pior de tudo é que...
Ao levantar-se e intentar um passo, viu-se obrigado
a cair de novo sobre o tronco. Sentia o corpo como chumbo, sobretudo as pernas,
como se estas estivessem imensamente inchadas. E os pés e as mãos formigavam.
— É tudo muito estranho, estranho, estranho! —
repetiu estupidamente Benincasa, sem esquadrinhar o motivo daquela estranheza. —
Como se eu estivesse cheio de formigas... A tanoca! — concluiu.
E
de súbito, num seco espanto, faltou-lhe a respiração.
—
Deve ser o mel! É venenoso! Estou envenenado!
E, num segundo esforço para reerguer-se, seus
cabelos eriçaram-se de terror. Não podia sequer se mover. Agora a sensação de
chumbo e o formigueiro subiam até a cintura. Por um instante, o horror de
morrer ali, miseravelmente só, longe de sua mãe e de seus amigos, lhe qualquer
meio de defesa.
—
Vou morrer agora! Já, já morrerei! Não consigo sequer mover a mão!
Constatou, em seu pânico, que não tinha febre nem
ardor na garganta e que o coração e os pulmões conservavam o ritmo normal. Sua
angústia mudou de forma.
— Estou paralítico! É a paralisia! E não vão
me encontrar!
Mas uma visível sonolência começava a apoderar-se
dele, deixando-lhe intactas, todavia, as faculdades mentais, ao passo em que a
vertigem acelerava. Assim, acreditou notar que o solo oscilante se tornava
negro e se agitava vertiginosamente. Outra vez veio-lhe à memória a lembrança
da tanoca, e em seu pensamento fixou-se, como uma suprema angústia, a
possibilidade de que aquilo negro que invadia o solo era...
Ainda teve força para suplantar este último espanto,
e, então, lançou um grito, um verdadeiro alarido, em que a voz de um homem
recobra a entonação de uma criança apavorada: por suas pernas subia uma célere
coluna de formigas negras. Em sua volta, a tanoca devoradora escurecia o solo,
e o contador sentiu, sob a cueca, um rio de formigas carnívoras a subir.
Finalmente, dois dias depois, o padrinho encontrou,
sem a menor partícula de carne, o esqueleto vestido com as roupas de Benincasa.
A tanoca — que ainda zanzava pelo lugar — e as bolsinhas de cera deram-lhe
claramente a explicação.
Não é comum que o mel silvestre contenha tais
propriedades narcóticas ou paralisantes, mas é possível encontrá-lo assim, apesar da raridade. Flores com tais características abundam no trópico e o sabor do mel
denuncia, na maioria dos casos, a sua condição, a exemplo do ranço de resina de
eucalipto que Benincasa julgou sentir.
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