UM LOUCO? - Conto Clássico Fantástico - Guy de Maupassant
UM
LOUCO?
Guy
de Maupassant
(1850
– 1893)
Tradução
de Paulo Soriano
Quando
me disseram: "Você sabia que Jacques Parent morreu louco numa casa de
repouso?", um calafrio doloroso, um calafrio de medo e angústia
percorreu os meus ossos. E, de repente, tornei a vê-lo; revi aquele homem alto
e estranho, talvez louco há muito tempo, um maníaco inquietante, até mesmo
assustador.
Era
um homem de quarenta anos, alto, magro, um tanto encurvado, com olhos
alucinantes, olhos negros — tão negros que neles não se distinguiam as pupilas
—; olhos que se moviam, rolavam, mórbidos, assustados. Aquele ser, singular e
inquietante, difundia ao seu redor um vago mal-estar, um desconforto da alma e
do corpo, e nos impingia um daqueles nervosismos incompreensíveis, susceptíveis
de nos fazer acreditar em influências sobrenaturais.
Tinha
ele um costume irritante: o hábito de esconder as mãos. Quase nunca as deixava errar,
como todos nós fazemos, por sobre os objetos em cima das mesas. Ele jamais
apanhava as coisas com aquele gesto familiar que quase todos conservamos. Jamais
deixava nuas as suas mãos compridas e ossudas, magras, um tanto febris.
Enfiava
as mãos nos bolsos, abaixo das axilas, cruzando os braços. Temia — dizia-se —
que elas perpetrassem, contra a sua vontade, algo de proibido; que dessem azo a
uma ação vergonhosa ou ridícula, acaso as deixasse livres e no controle dos
próprios movimentos.
Quando
era obrigado a empregá-las em coisas corriqueiras, ele o fazia com gestos bruscos
e repentinos, com rápidos movimentos dos braços, como se não lhes quisesse dar tempo
a agirem por si mesmas, de escaparem à sua vontade, para realizarem outra coisa
qualquer. Na mesa, ele empunhava copo, o garfo ou a faca com tanta rapidez que nunca
havia tempo de prever o que ele queria fazer antes de já tê-lo feito.
No
entanto, certa noite, tive a explicação da surpreendente enfermidade de sua
alma.
De
vez em quando, ele vinha passar alguns dias comigo no campo e, naquela noite,
parecia particularmente agitado.
Uma
tempestade erguia-se no céu, sufocante e negra, após um dia de calor atroz. Nem
uma lufada de ar agitava as folhagens. O vapor — quente como se saído de um
forno — perpassava-nos os rostos, fazendo os nossos peitos ofegarem. Eu me
sentia desconfortável, inquieto, e queria ir para a cama.
Quando
me viu levantar para recolher-me, Jacques Parent agarrou o meu braço com um
gesto assustado.
—
Oh, não! Fique mais um pouco — disse ele.
Eu
o olhei com surpresa, sussurrando:
—
Essa tempestade está me abalando os nervos.
Ele
gemeu, ou melhor, gritou:
—
E quanto a mim? Oh, fique, eu imploro! Não quero ficar sozinho.
Parecia
transtornado.
Disse-lhe:
—
O que você tem? Perdeu a cabeça?
E
ele gaguejou:
— Às vezes, em noites como esta, em
noites carregadas de eletricidade... eu... eu... eu tenho medo... tenho medo de
mim mesmo... Você não me compreende? É que sou dotado de um poder... não... de uma
potência... não, de uma força... Enfim, não sei dizer o que é, mas há em mim
uma atividade magnética tão extraordinária que me causa... sim... que me faz
sentir medo de mim mesmo, como já lhe disse!
E
escondeu, com transtornados calafrios, as mãos trêmulas sob as lapelas do paletó.
E eu mesmo, de repente, comecei a tremer, dominado por um medo confuso,
poderoso e horrível. Eu queria sair, fugir, não mais tornar a ver aquele olhos errantes,
que transitavam por mim, e, depois, em fuga, vagavam pelo teto, procurando
algum canto escuro do quarto para ali se encerrarem, como se Jacques quisesse esconder
de mim, também, o seu olhar atemorizante.
Eu
gaguejei:
—
Você nunca me disse isso!
Ele
disse:
—
Eu poderia contar a alguém? Bem, ouça-me: não posso mais calar-me esta noite. É
melhor que você saiba tudo. Além disso, talvez você me ajude.
“Magnetismo!
Você sabe o que é isso? Não. Ninguém sabe. Mas podemos constatá-lo. Nós o
conhecemos, os próprios médicos o praticam. Um dos mais ilustres, o Sr.
Charcot, o professa. Portanto, sem dúvida, ele existe.
“Um
homem, um ser, tem o poder, assustador e incompreensível, de fazer adormecer,
pela força de sua vontade, um outro ser. E, enquanto o paciente dorme, o poder de
furtar-lhe o pensamento como se furtasse uma bolsa. Furta o seu pensamento — ou
melhor, a sua alma. A alma, este santuário, este nicho secreto da
personalidade. A alma, esse profundo recanto do homem, que julgávamos impenetrável.
Alma, este refúgio de ideias desavergonhadas, de tudo o que escondemos, de tudo
que amamos, de tudo que queremos ocultar dos outros seres humanos... O
magnetismo a desnuda, viola, exibe, expõe-na em público! Não é atroz,
criminoso, infame?
“Por
quê, como tal coisa é feita? Nós o sabemos? Mas o que sabemos?
“Tudo
é mistério. Somente mantemos contato com as coisas por meio de nossos sentidos
miseráveis, incompletos, atrofiados, tão fracos que mal têm o poder de perceber
o que nos rodeia. Tudo é mistério. Pense na música, nesta arte divina, nesta
arte que revira a nossa alma, que a subjuga, embriaga, enlouquece, o que é ela?
Nada.
“Não
me entende? Escute. Dois corpos colidem. O ar vibra. Estas vibrações, a
depender da natureza do choque, serão mais ou menos numerosas, mais ou menos
rápidas, mais ou menos fortes. Agora, temos no ouvido uma pequenina membrana
que recebe estas vibrações do ar e as transmite ao cérebro na forma de som.
Imagine que um copo de água se transforme em vinho na sua boca. O tímpano
realiza esta incrível metamorfose, este incrível milagre de transformar o
movimento em som. É isto, somente isto.
“Portanto,
a música — esta arte complexa e misteriosa, precisa como a álgebra e vaga como
um sonho; esta arte feita de matemática e brisa — emerge apenas da estranha
propriedade de uma pequenina membrana. Sem ela, aquele som também não
existiria, pois, por si só, não é mais que uma mera vibração. Sem o ouvido, perceberíamos
a música? Não. Bem, estamos rodeados de coisas de que nunca suspeitaremos,
porque carecemos dos órgãos sensoriais que as revelariam a nós.
“O
magnetismo é, talvez, uma dessas coisas. Nós podemos, apenas, pressentir-lhe o
poder, ensaiar um tremor ante à aproximação de espíritos, lograr apenas um
vislumbre desse novo segredo da natureza, porque não temos em nós o instrumento
revelador.
“Quanto
a mim... Quanto a mim, sou dotado de um poder terrível. Algo como outro ser trancafiado
em meu imo, que quer fugir constantemente, agir contra a minha vontade, que me
agita, corrói e esgota. O que é ele? Não sei, mas somos dois no meu pobre
corpo, e é ele — o outro — quem frequentemente se exibe o mais forte, como acontece
nesta noite.
“É-me
bastante olhar para as pessoas para entorpecê-las, como se eu tivesse derramado
ópio sobre elas. Eu só tenho que estender as minhas mãos para produzir
coisas... coisas terríveis. Você quer saber? Sim! Você quer saber... Meu poder
não se estende apenas aos homens, mas também aos animais e, mesmo, aos
objetos...
“Isto
me tortura e me apavora. Muitas vezes, tive vontade de arrancar os olhos e decepar
os punhos.
Mas
eu... Eu quero que você saiba tudo. Venha. Vou mostrar-lhe algo que faço... não
o farei em criaturas humanas, pois todos podem realizá-lo em qualquer lugar, mas
num... num... animal.
“Chame
Mirza!”
Caminhou
com largos passos, como um alucinado, e as suas mãos escaparam-lhe dos bolsos. Pareciam-me
assustadoras. Era como se ele tivesse desnudado duas espadas.
E
eu obedecia a Jacques mecanicamente, subjugado, vibrando de terror, malgrado devorado
por uma espécie de desejo impetuoso de assistir àquilo. Abri a porta e assoviei
à minha cadela, que dormia no corredor. Imediatamente, ouvi o ruído apressado
de suas unhas subindo os degraus da escada, e ela apareceu, alegre, abanando o
rabo.
Então,
fiz sinal para que ela se deitasse numa poltrona. A cadela saltou e Jacques
começou a acariciá-la, olhando para ela.
A
princípio, parecia preocupada. Tremia, virando a cabeça para evitar o olhar
fixo do homem. Parecia agitada, presa de um medo crescente. De repente, começou
a tremer, como tremem os cães. Seu corpo inteiro palpitava, abalado por longos calafrios,
e dava mostras de querer fugir. Mas o homem pousou a mão sobre o crânio do
animal que, àquele toque, soltou um daqueles longos uivos que se ouve, à noite,
nos campos.
Eu
me sentia entorpecido, tonto, como se estivesse num barco. Podia ver os móveis curvando-se,
as paredes em movimento. Gaguejei:
—
Basta, Jacques, basta!
Mas ele não me ouvia mais. Olhava para Mirza
de um modo persistente e assustador. A cadela fechou os olhos e deixou tombar a
cabeça, como fazia ao adormecer. Ele olhou para mim.
—
Está feito — disse ele. —Agora, veja.
E,
jogando seu lenço para o outro lado do quarto, gritou:
—Traga!
O
animal ergueu-se. Cambaleando e tropeçando, como se estivesse cego, e, movendo
as patas como os paralíticos movem as pernas, seguiu em direção ao lenço, que
parecia uma mancha branca contra a parede. Tentou várias vezes agarrá-lo com
boca, mas mordia apenas ao lado do pano, como se não o visse. Finalmente,
apanhou-o e voltou com o mesmo passo oscilante de cão sonâmbulo.
Era
uma cena terrível de se ver. Ele ordenou:
—Deite-se!
Ela se deitou. Então, tocando a sua testa,
disse:
—
Uma lebre! Pegue, pegue!
E
o animal, ainda de lado, tentou correr, movendo-se como um cão a sonhar, e
proferiu, sem abrir a boca, estranhos latidos, latidos de ventríloquo.
Jacques
parecia ter enlouquecido. O suor escorria-lhe pela testa. Então gritou:
—
Morda, morda o seu dono.
A
cadela experimentou dois ou três terríveis sobressaltos. Eu poderia jurar que
ela resistia, que relutava em cumprir aquele comando. Ele repetiu:
—Morda!
Então,
levantando-se, a cadela veio em minha direção, e eu recuei de encontro à
parede, tremendo de terror, com o meu pé erguido para atingi-la, para afastá-la
de mim.
Mas
Jacques ordenou:
—Aqui,
agora!
Ela
virou-se para ele. Então, com as suas mãos imensas, Jacques começou a esfregar
a cabeça do animal, como se o libertasse de laços invisíveis.
Mirza
tornou a abrir os olhos.
—
Pronto, acabou — disse ele.
Não
ousei tocar a cadela e empurrei a porta para que ela fosse embora. Mirza se
afastou lentamente, tremendo, exausta, e ouvi novamente as suas garras arranhando
os degraus.
Jacques
voltou-se para mim:
—
Isto não é tudo. O que mais me assusta é outra coisa. Os objetos também me
obedecem.
Havia
uma espécie de punhal sobre a minha mesa, que eu usava para cortar as páginas
dos livros. Ele estendeu a mão, que parecia rastejar, aproximando-se lentamente
do punhal. E, de repente, eu vi — sim, eu vi! — o próprio punhal estremecer e,
depois, mover-se, deslizando lentamente, por si mesmo, sobre a madeira, e
seguir em direção à mão parada, que o aguardava, para alojar-se por entre os seus
dedos.
Soltei
um grito de terror. Pensei que estava ficando louco, mas o timbre agudo da
minha voz logo me acalmou.
Jacques
voltou a falar:
—
Todos os objetos vêm até mim desta forma. É por isso que escondo as minhas
mãos. Mas isto, o que será? Magnetismo, eletricidade, ímã? Não sei, mas é
horrível.
“Entende
você por que é horrível? Quando estou sozinho, assim que fico só, não posso
deixar de atrair tudo que está ao meu redor.
“E
passo dias inteiros mudando as coisas de lugar, jamais deixando de experimentar
este poder abominável, como se para constatar se ele não me abandonou.”
Ele
havia mergulhado as mãos imensas nos bolsos e agora olhava para a noite. Um
pequeno ruído, um leve tremor, pareceu passar por entre as árvores.
Era
a chuva, que começava a cair.
Sussurrei:
—É
assustador!
Ele
repetiu:
—
É horrível!
Um
estrépito percorreu as folhagens, como uma rajada de vento. Era um aguaceiro,
uma chuvarada espessa e torrencial.
Jacques
começou a respirar profundamente, solevando o peito.
—
Deixe-me — disse ele. — A chuva vai me acalmar. Quero ficar sozinho agora.
Título original: Un
fou? Conto publicado originariamente no diário Le Figaro em 1º de setembro
de 1884.
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