UMA HISTÓRIA DE FANTASMA - Conto Clássico de Terror - Charles Dickens
UMA
HISTÓRIA DE FANTASMA
Charles
Dickens
(1812
– 1870)
Há
alguns anos, um renomado artista inglês recebeu uma encomenda, de uma certa
senhora F., para pintar um retrato de seu marido. Ficou acordado que a obra
seria realizada na mansão de F. Hall, no campo, uma vez que os compromissos do
pintor eram de tal monta que não lhe permitiam aceitar uma incumbência antes de
concluir a sua temporada em Londres. Como ele mantinha estreita amizade com
seus patrocinadores, o acordo foi satisfatório para todas as partes, e, em 13
de setembro, o artista saiu com bom ânimo para cumprir o seu encargo.
Assim,
tomou o trem com destino à estação mais próxima a F. Hall, e, quando entrou em
seu vagão, percebeu que viajaria sozinho. Em qualquer caso, sua solidão não
durou muito tempo. Na primeira parada depois de Londres, uma jovem dama subiu
ao vagão e sentou-se na poltrona oposta à dele. Tinha um aspecto delicado, com
uma surpreendente mistura de doçura e tristeza em seu semblante, algo que um
sensível observador como ele não poderia deixar passar em branco.
Durante
algum tempo, nenhum dos dois abriu a boca. Entretanto, prologando-se a viagem,
o cavalheiro resolveu desfiar os habituais comentários, que se costumam fazer
em tais ocasiões, acerca do tempo ou da paisagem. Assim, quebrado gelo inicial,
finalmente encetaram uma conversa. Achava-se o artista deveras surpreso com o
conhecimento que ela exibia sobre a sua obra e sobre ele mesmo. Ele, todavia,
estava certo de que nunca vira antes aquela mulher. Sua surpresa não diminuiu
absolutamente quando, de repente, ela lhe perguntou se seria capaz de pintar de
memória uma pessoa a quem somente tivesse visto uma única vez ou, no máximo,
duas. Ele ainda hesitava no que iria responder, quando ela acrescentou:
—
Você acredita, por exemplo, que me poderia pintar de memória?
Ele
respondeu que não sabia ao certo, embora achasse que talvez pudesse fazê-lo, se
a tanto se propusesse.
—
Então — disse ela —, olhe bem para mim. Assim poderá reter em sua mente a minha
fisionomia.
—
Creio que é possível — respondeu ele —, embora não possa dizê-lo com certeza.
Nesse
momento, o trem parou. A jovem se levantou, sorriu enigmaticamente para o
pintor e se despediu, dizendo, enquanto descia do vagão:
—
Espero que voltemos a nos encontrar muito em breve.
Sacolejando,
trem partiu e Mr. H. — o artista — mergulhou nos próprios pensamentos.
O
trem parou na estação à hora prevista e ele viu que a carruagem de Lady F** já
o esperava. Após um agradável percurso, chegou ao seu destino, situado em um
dos condados aldeões de Londres, e parou à porta principal do solar, onde os
anfitriões aguardavam para recebê-lo. Uma
vez trocados os amáveis cumprimentos de rigor, o pintor foi conduzido ao seu
quarto, pois se avizinhava a hora do jantar.
Tendo
feito a toalete, desceu à sala de estar. Mr. H. ficou gratamente surpreso ao
ver, sentada numa poltrona otomana, a sua jovem companheira de viagem no vagão
do trem. Ela o saudou com um sorriso a que ele correspondeu com uma inclinação
de reconhecimento. Sentaram-se juntos durante o jantar e ela se dirigiu ao
artista em duas ou três ocasiões, intervindo na conversa geral, sentindo-se à
vontade. A noite transcorreu da forma mais agradável possível. Conversaram
sobre as belas-artes em geral e, durante algum tempo, sobre a pintura em
particular. Os anfitriões suplicaram a Mr. H. que lhes mostrasse alguns dos esboços
que ele havia trazido consigo de Londres. O artista exibiu-os prontamente e a jovem
demonstrou um vívido interesse por eles.
Já
era tarde quando a reunião se dissolveu e seus membros se retiraram aos
respectivos aposentos.
No
dia seguinte, bem cedo, Mr. H. se viu tentado pela ensolarada manhã a abandonar
o seu quarto e passear pelos jardins. A sala de estar voltava-se para o jardim;
perguntou a um criado, que se achava ocupado arrumando os móveis, se a jovem
dama já havia descido.
—
Que dama, senhor? — perguntou, surpreso, o homem.
—
A jovem que jantou conosco ontem.
—
Nenhuma jovem jantou aqui ontem, senhor — respondeu o homem, olhando fixamente
o artista.
O
pintor nada mais disse, pensando que o criado devia ser bastante estúpido ou,
então, devia ter uma péssima memória. Portanto, deixando a sala, saiu ao
jardim.
De
volta à casa, após o passeio, encontrou o anfitrião, com o qual trocou as
costumeiras saudações matutinas.
—
A sua jovem amiga loura já partiu? — perguntou o artista.
—
Que jovem amiga? — inquiriu o dono do solar.
—
A jovem que jantou conosco ontem — respondeu Mr. H.
—
Não consigo imaginar a quem você se refere — replicou o cavalheiro, muito
surpreso.
—
Não esteve aqui uma jovem dama, que nos acompanhou ao jantar e passou a noite
conosco? — insistiu Mr. H., aturdido.
—
Não — respondeu o anfitrião. — Afianço-lhe que não. À mesa não havia mais que você, minha esposa
e eu.
Depois
dessa entrevista, não mais se tocou no assunto, embora o nosso artista
resistisse em crer que tudo não passara de alguma ilusão. Se tudo aquilo havia
sido um sonho, certamente constava de dois episódios. Estava certo de que
aquela dama havia sido a sua companheira de viagem, e, também, de que ela se
sentara junto a ele durante o jantar. De toda forma, todos na mansão, salvo
ele, pareciam desconhecer a existência da dama loura.
O
artista concluiu o retrato que lhe havia sido encomendo e retornou a Londres.
Por
dois anos, continuou o seu trabalho, crescendo em reputação e trabalhando duro.
Durante aquele tempo, porém, não esqueceu um traço sequer de sua pálida
companheira de viagem. Não contava com pista alguma que o ajudasse a desvelar a
sua origem ou, mesmo, a sua identidade. Pensava nela sempre, mas nunca falou do
assunto a ninguém. Havia naquilo algum mistério que o obrigava a guardar
silêncio. Tratava-se de algo selvagem, estranho, totalmente inenarrável.
Mr.
H. foi chamado, a negócios, a Canterbury. Um velho amigo seu — a quem chamaremos Mr.
Wylde — residia naquela cidade. Querendo Mr. H. revê-lo, e dispondo somente de
poucas horas para uma visita, escreveu um bilhete assim que chegou ao hotel, no
qual rogava a Mr. Wylde que se reunisse ali com ele. À hora fixada, a porta de
seu quarto se abriu e Mr. Wylde lhe foi anunciado.
Mas
o homem que apareceu era completamente estranho ao artista, de forma que o
encontro entre ambos foi um tanto embaraçoso. Dava a impressão, segundo o
exposto, de que seu amigo deixara Canterbury já há algum tempo e de que o
cavalheiro, que agora se encontrava diante do artista, era um outro Mr. Wylde,
a quem haviam entregue o bilhete destinado ao ausente, e que havia acorrido ao
encontro pensando tratar-se de algum assunto associado aos negócios.
A
frieza inicial da surpresa se dissipou e os dois cavalheiros entabularam uma
conversa mais cordial, porquanto Mr. H. mencionou o seu nome, e este não era de
todo desconhecido para o seu visitante. Após conversar durante um breve tempo,
Mr. Wylde perguntou ao artista se alguma vez pintara ou se seria capaz de
pintar um retrato baseado numa mera descrição. Mr. H. respondeu que nunca havia
realizado tal proeza.
—
Faço-lhe esta estranha pergunta — disse Mr. Wylde —, porque, há alguns anos,
perdi a minha querida filha. Era filha única e eu a amava de todo coração. Sua
perda me causou um imenso sofrimento, e lamento profundamente não ter nenhuma
recordação tangível de minha filha. O senhor é um homem de comprovado talento.
Se pudesse pintar-me um retrato de minha pequena, ficaria imensamente grato.
Então
Mr. Wylde descreveu os traços e a aparência de sua filha, a cor dos seus olhos
e de seu cabelo, e tentou fornecer-lhe uma ideia da expressão de sua face. Mr.
H., escutando atentamente, e se compadecendo da sua dor, fez um rascunho. Não
tinha ideia da aparência da jovem, mas conservava a esperança de que o pai
enlutado a reconhecesse no desenho. Mas este, ao ver a figura no esboço, balançou
a cabeça, dizendo:
—
Não. Não se parece com ela.
O
artista tentou novamente, mas fracassou. Os traços iam bem, mas a expressão não
era a dela, e o pai desistiu, agradecendo a Mr. H. por seus esforços, já que
não alimentava qualquer esperança de obter um resultado satisfatório.
Subitamente, um pensamento agitou o pintor. Tomou outra folha de papel, fez um
rápido e vigoroso esboço e o exibiu ao visitante. Prontamente, o rosto do pai
se iluminou com um brilhante olhar de reconhecimento, ao tempo em que
exclamava:
—
É ela! É certo que o senhor já viu a minha filha; caso contrário, jamais
poderia obter tão assombrosa semelhança!
—
Quando a sua filha faleceu? — perguntou, agitado, o pintor.
—
Há dois anos, no dia 13 de setembro. Morreu à tarde, após uma breve doença.
Mr.
H. ponderou, mas não disse nada. A imagem daquele pálido rosto havia-se gravado
em sua memória como se insculpido com ponta de diamante. Agora, cumpriam-se as
estranhas e proféticas palavras que ela havia proferido.
Algumas
semanas depois, tendo concluído um belo retrato de corpo inteiro da jovem dama,
enviou-o ao seu pai, e todos os que o viram declararam a perfeita semelhança entre
a figura do quadro e a jovem falecida.
Conto originariamente
publicado na revista “All The Year Round”, edição de 14 de setembro de 1861.
Versão em português:
Paulo Soriano.
Sobre a origem sobrenatural deste conto, veja-se o seguinte artigo de Paul Roland.
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