UMA PARTIDA DE XADREZ CONTRA O DIABO - Luciano Barreto - Conto de Terror
UMA
PARTIDA DE XADREZ CONTRA O DIABO
Luciano Barreto
Certa
vez, dentro do círculo de enxadristas ao qual pertenço, um senhor que tinha
forte ligação com o xadrez relatou uma estória deveras macabra. Não me recordo
seu nome porquanto ele havia aparecido para participar de um torneio de
enxadristas amadores na cidade do Rio de Janeiro e seus resultados no
campeonato não foram expressivos, ademais soube apenas os nomes de dois dos
três protagonistas da estória. Contudo, lembro-me que esse senhor aparentava
ter entre sessenta e setenta anos de idade, trazia um leve sotaque hispânico e
conservava uma hirsuta barba grisalha.
Um dos protagonistas do relato se chamava
Castor Z. Baldez, espanhol de Gijón e detentor do título de Grande Mestre
Internacional de Xadrez. O outro era o Diabo. Nosso narrador disse que Baldez
era um homem recluso, pois padecia com esporádicas crises de esquizofrenia.
Embora tímido e introvertido, Baldez revelava — para alguns amigos e de maneira
informal — certas artimanhas sobre a arte enxadrística. Como era filho único e
órfão de pai e mãe, Castor era um homem solitário que não mantinha contato com
seus parentes, já que não nutria nenhum sentimento especial por eles.
O nosso narrador contou que um dia Castor Baldez apareceu na casa de um amigo, em Gijón, tarde da noite. Baldez tinha o rosto branco como uma vela e os olhos injetados de terror. Numa mão um tabuleiro, na outra um relógio de xadrez e trinta e duas peças metidas num saco de couro. Como uma criança, pedira para passar a noite na residência de seu melhor amigo, que também era seu médico, porque não estava se sentindo bem naquela noite. O amigo não negou abrigo e aboletou o visitante na sala de sua residência.
Com os olhos que denunciavam verdade, o velho
barbudo disse que o médico levantara exatas duas vezes durante a madrugada para
urinar e vira Baldez jogando xadrez sozinho. Na segunda vez, o amigo abordou o
enxadrista a fim de saber o motivo que lhe deixava insone ao ponto de
permanecer praticando xadrez até a madrugada.
Nosso contador de estórias arregalou os olhos
impingindo algum mistério no local onde estávamos e garantiu que Castor Baldez
havia dito que estava se preparando para um desafio de xadrez. E que o médico
logicamente quis saber detalhes sobre o desafio e perguntou sobre o adversário,
e também sobre quando e onde seria a partida. Prontamente, o GM Castor Baldez
havia dito que iria começar em cinco minutos, no local onde ambos estavam e a
partida seria contra o Diabo.
Foi-nos revelado que o médico titubeou ao
ouvir a verdade de seu amigo, mas que certamente Baldez estava ingressando em
outra crise de esquizofrenia. Assim, o médico resolveu não contrariar o amigo
doente e falou que iria dormir para não atrapalhar a disputa noturna.
Estranhamente, o grande mestre havia agradecido com efusivos gestos. O amigo
retirara-se do cômodo, mas havia ficado imerso numa penumbra que enegrecia parte
do corredor de sua residência. Dali, ele pôde deslindar o desenrolar
esquizofrênico dos fatos sem que seu amigo pudesse vê-lo. Nosso narrador
enfatizou, com as mãos senis espraiadas para cima, que Baldez não sabia da
posição de seu amigo no corredor.
O senhor barbudo continuou a estória dizendo que o grande mestre Castor Baldez havia aberto a porta da casa, depois se sentado em frente ao tabuleiro, arrumado as peças e dado corda no relógio de xadrez. E que com alguns minutos Baldez havia tomado um susto tão grande, como se alguém houvesse aparecido repentinamente a sua frente, que em seguida suas mãos começaram a tremer e que mesmo assim ele se levantou e cerrou a porta da residência.
Que logo em seguida o enxadrista havia
voltado para a mesa que sustinha o tabuleiro e movera o peão do rei duas casas
à frente, dando início a uma partida de xadrez, e depois apertara o botão que
parava seu relógio.
O homem que relatava a estória suspirou e
continuou afirmando que o médico sabia que a próxima jogada não seria feita por
uma mão invisível porque aquela situação não era espiritual, mas sim física;
uma doença do corpo e não da alma. E o lance seguinte também foi feito pela mão
de Baldez, o que – apesar de toda certeza – tranquilizou seu amigo ainda
afundado na escuridão do corredor.
Soubemos
que a partida seguiu por quase uma hora e que todos os movimentos de peças e
paradas de relógio foram feitos por Baldez que ora demonstrava excitação, ora
demonstrava nervosismo; e em certos momentos frustração, refletida com o menear
negativo de seu crânio.
O que certamente nos assustou foi a
continuação do relato feita por aquele desconhecido senhor. O homem continuou
garantindo que o médico tinha visão privilegiada do tabuleiro e que próximo de
completar uma hora de partida Baldez, que estava sentado como se jogasse de
peças brancas, havia sofrido um xeque-mate de bispo com o auxílio de uma torre
e um peão pretos. A peça que havia dado o xeque-mate fora a torre. Até aí tudo
bem, mas nosso narrador nos asseverou que a torre se moveu assustadoramente
lenta de um lado para outro do tabuleiro, passando sobre as quadrículas pretas
e brancas que compunham sua fileira horizontal e sem a ajuda de Baldez que
restou afundar o rosto nas palmas das mãos e soluçar num choro abrupto.
E que segundos depois, coisa de três ou
quatro, Castor Baldez olhara para a escuridão - onde o médico estava
espreitando — pedira desculpas pelo incômodo e agradecera a amizade que ambos
haviam mantido. Mas antes de ganhar a noite, avisou que havia perdido a partida
e a alma para o Diabo. Depois, saiu correndo da residência.
Nosso narrador conta que o médico arregalou
os olhos de pavor ainda imiscuído na escuridão e que após a fuga de Castor
Baldez, uma voz gutural exalando forte e nauseabundo odor de enxofre pronunciou
“jaque-mate” perto de seu ouvido esquerdo.
Quisemos
saber o que havia acontecido em seguida, mas nosso contador de estórias estava
atrasado para retornar ao interior do Rio de Janeiro e revelou que naquela
noite o grande mestre enxadrista Castor Z. Baldez havia se jogado na frente de
um caminhão, tendo morrido instantaneamente.
Perguntamos ainda o nome do médico e o que
acontecera com ele depois daquela noite. Soubemos que ele se mudara para a
cidade de Cartagena, no sul da Espanha, na semana seguinte ao fato. E que lá,
levara uma vida normal até cometer suicídio com um tiro na boca, há muitos
anos.
Lamentamos o desfecho do médico, contudo
insistimos em saber seu nome, porém o velho barbudo, sem tergiversar, avisou
que não iria revelar o nome de seu pai. Nós, desidratados pela vergonha,
desejamos-lhe uma boa viagem.
Comentários
Postar um comentário