A NOVA CALIFÓRNIA - Conto Clássico Fantástico - Lima Barreto
A
NOVA CALIFÓRNIA
Lima
Barreto
(1881
– 1922)
É da pena de Lima
Barreto (1881 — 1922) uma das obras-primas da literatura brasileira: “O Triste
Fim de Policarpo Quaresma”. Foi justamente como apêndice à primeira edição
desse memorável romance, de 1915, que foi originariamente publicado o conto “A
Nova Califórnia”. O misterioso Raimundo Flamel é um químico que transforma
ossos humanos em ouro. É perfeitamente possível imaginar o que irá suceder à
pequena e pacífica Tubiacanga quando o populacho descobrir o valioso segredo do
enigmático sábio forasteiro...
I
Ninguém
sabia donde viera aquele homem. O agente do Correio pudera apenas informar que
acudia ao nome de Raimundo Flamel, pois assim era subscrita a correspondência
que recebia. E era grande. Quase diariamente, o carteiro lá ia a um dos
extremos da cidade, onde morava o desconhecido, sopesando um maço alentado de
cartas vindas do mundo inteiro, grossas revistas em línguas arrevesadas,
livros, pacotes...
Quando
Fabrício, o pedreiro, voltou de um serviço em casa do novo habitante, todos na
venda perguntaram-lhe que trabalho lhe tinha sido determinado.
—
Vou fazer um forno — disse o preto — na sala de jantar.
Imaginem
o espanto da pequena cidade de Tubiacanga, ao saber de tão extravagante
construção: um forno na sala de jantar! E, pelos dias seguintes, Fabrício pôde
contar que vira balões de vidro, facas sem corte, copos como os da farmácia —
um rol de coisas esquisitas a se mostrarem pelas mesas e prateleiras como
utensílios de uma bateria de cozinha em que o próprio diabo cozinhasse.
O
alarme se fez na vila. Para uns, os mais adiantados, era um fabricante de moeda
falsa; para outros, os crentes e simples, um tipo que tinha parte com o
tinhoso.
Chico
da Tirana, o carreiro, quando passava em frente da casa do homem misterioso, ao
lado do carro a chiar, e olhava a chaminé da sala de jantar a fumegar, não
deixava de persignar-se e rezar um “credo” em voz baixa; e, não fora a
intervenção do farmacêutico, o subdelegado teria ido dar um cerco à casa
daquele indivíduo suspeito, que inquietava a imaginação de toda uma população.
Tomando
em consideração as informações de Fabrício, o boticário Bastos concluíra que o
desconhecido devia ser um sábio, um grande químico, refugiado ali para mais
sossegadamente levar avante os seus trabalhos científicos.
Homem
formado e respeitado na cidade, vereador, médico também, porque o doutor
Jerônimo não gostava de receitar e se fizera sócio da farmácia para mais em paz
viver, a opinião de Bastos levou tranquilidade a todas as consciências e fez
com que a população cercasse de uma silenciosa admiração à pessoa do grande
químico, que viera habitar a cidade.
De
tarde, se o viam a passear pela margem do Tubiacanga, sentando-se aqui e ali,
olhando perdidamente as águas claras do riacho, cismando diante da penetrante
melancolia do crepúsculo, todos se descobriam e não era raro que às “boas
noites” acrescentassem “doutor”. E tocava muito o coração daquela gente a
profunda simpatia com que ele tratava as crianças, a maneira pela qual as
contemplava, parecendo apiedar-se de que elas tivessem nascido para sofrer e
morrer.
Na
verdade, era de ver-se, sob a doçura suave da tarde, a bondade de Messias com
que ele afagava aquelas crianças pretas, tão lisas de pele e tão tristes de
modos, mergulhadas no seu cativeiro moral, e também as brancas, de pele baça,
gretada e áspera, vivendo amparadas na necessária caquexia dos trópicos.
Por
vezes, vinha-lhe vontade de pensar qual a razão de ter Bernardin de
Saint-Pierre gasto toda a sua ternura com Paulo e Virgínia e esquecer-se dos
escravos que os cercavam...
Em
poucos dias a admiração pelo sábio era quase geral, e não o era unicamente
porque havia alguém que não tinha em grande conta os méritos do novo habitante.
Capitão
Pelino, mestre-escola e redator da Gazeta de Tubiacanga, órgão local e filiado
ao partido situacionista, embirrava com o sábio.
—Vocês
hão de ver — dizia ele — quem é esse tipo... Um caloteiro, um aventureiro ou
talvez um ladrão fugido do Rio.
A
sua opinião em nada se baseava, ou antes, baseava-se no seu oculto despeito,
vendo na terra um rival para a fama de sábio de que gozava. Não que Pelino
fosse químico, longe disso; mas era sábio, era gramático. Ninguém escrevia em
Tubiacanga que não levasse bordoada do capitão Pelino, e mesmo quando se falava
em algum homem notável lá no Rio, ele não deixava de dizer:
—Não
há dúvida! O homem tem talento, mas escreve: ‘um outro’, ‘de resto’...
E contraía os lábios como se tivesse engolido
alguma coisa amarga.
Toda
a vila de Tubiacanga acostumou-se a respeitar o solene Pelino, que corrigia e
emendava as maiores glórias nacionais. Um sábio...
Ao
entardecer, depois de ler um pouco o Sotero, o Cândido de Figueiredo ou o
Castro Lopes, e de ter passado mais uma vez a tintura nos cabelos, o velho
mestre-escola saía vagarosamente de casa, muito abotoado no seu paletó de brim
mineiro, e encaminhava-se para a botica do Bastos a dar dois dedos de prosa.
Conversar é um modo de dizer, porque era Pelino avaro de palavras, limitando-
se tão somente a ouvir. Quando, porém, dos lábios de alguém escapava a menor
incorreção de linguagem, intervinha e emendava.
—Eu
asseguro — dizia o agente do Correio — que...
Por
aí, o mestre-escola intervinha com mansuetude evangélica:
—Não
diga ‘asseguro’, senhor Bernardes; em português é garanto.
E
a conversa continuava depois da emenda, para ser de novo interrompida por uma
outra. Por essas e outras, houve muitos palestradores que se afastaram, mas
Pelino, indiferente, seguro dos seus deveres, continuava o seu apostolado de
vernaculismo. A chegada do sábio veio distraí-lo um pouco da sua missão. Todo o
seu esforço voltava-se agora para combater aquele rival, que surgia tão
inopinadamente.
Foram
vãs as suas palavras e a sua eloquência: não só Raimundo Flamel pagava em dia
as suas contas, como era generoso — pai da pobreza — e o farmacêutico vira numa
revista de específicos seu nome citado como químico de valor.
II
Havia
já anos que o químico vivia em Tubiacanga, quando, uma bela manhã, Bastos o viu
entrar pela botica adentro. O prazer do farmacêutico foi imenso. O sábio não se
dignara até aí visitar fosse quem fosse e, certo dia, quando o sacristão
Orestes ousou penetrar em sua casa, pedindo-lhe uma esmola para a futura festa
de Nossa Senhora da Conceição, foi com visível enfado que ele o recebeu e
atendeu.
Vendo-o,
Bastos saiu de detrás do balcão, correu a recebê-lo com a mais perfeita
demonstração de quem sabia com quem tratava e foi quase em uma exclamação que
disse:
—
Doutor, seja bem-vindo.
O
sábio pareceu não se surpreender nem com a demonstração de respeito do
farmacêutico, nem com o tratamento universitário. Docemente, olhou um instante
a armação cheia de medicamentos e respondeu:
—
Desejava falar-lhe em particular, senhor Bastos.
O
espanto do farmacêutico foi grande. Em que poderia ele ser útil ao homem, cujo
nome corria mundo e de quem os jornais falavam com tão acendrado respeito?
Seria dinheiro? Talvez... Um atraso no pagamento das rendas, quem sabe? E foi
conduzindo o químico para o interior da casa, sob o olhar espantado do aprendiz
que, por um momento, deixou a “mão” descansar no gral, onde macerava uma tisana
qualquer.
Por
fim, achou ao fundo, bem no fundo, o quartinho que lhe servia para exames
médicos mais detidos ou para as pequenas operações, porque Bastos também
operava. Sentaram-se e Flamel não tardou a expor:
—
Como o senhor deve saber, dedico-me à química, tenho mesmo um nome respeitado
no mundo sábio...
—
Sei perfeitamente, doutor, mesmo tenho disso informado, aqui, aos meus amigos.
—
Obrigado. Pois bem: fiz uma grande descoberta, extraordinária...
Envergonhado
com o seu entusiasmo, o sábio fez uma pausa e depois continuou:
—
Uma descoberta... Mas não me convém, por ora, comunicar ao mundo sábio,
compreende?
—
Perfeitamente.
—
Por isso precisava de três pessoas conceituadas que fossem testemunhas de uma
experiência dela e me dessem um atestado em forma, para resguardar a prioridade
da minha invenção... O senhor sabe: há acontecimentos imprevistos e...
—
Certamente! Não há dúvida!
—
Imagine o senhor que se trata de fazer ouro...
—
Como? O quê? — fez Bastos, arregalando os olhos.
—
Sim! Ouro! — disse, com firmeza, Flamel.
—
Como?
—
O senhor saberá — disse o químico secamente. — A questão do momento são as
pessoas que devem assistir à experiência, não acha?
—
Com certeza, é preciso que os seus direitos fiquem resguardados, porquanto...
—
Uma delas — interrompeu o sábio — é o senhor; as outras duas, o senhor Bastos
fará o favor de indicar-me.
O
boticário esteve um instante a pensar, passando em revista os seus
conhecimentos e, ao fim de uns três minutos, perguntou:
—
O coronel Bentes lhe serve? Conhece?
—
Não. O senhor sabe que não me dou com ninguém aqui.
—
Posso garantir-lhe que é homem sério, rico e muito discreto.
—
É religioso? Faço-lhe esta pergunta — acrescentou Flamel logo — porque temos
que lidar com ossos de defunto e só estes servem...
—
Qual! É quase ateu...
—
Bem! Aceito. E o outro?
Bastos
voltou a pensar e dessa vez demorou-se um pouco mais consultando a sua
memória...
Por
fim, falou:
—
Será o tenente Carvalhais, o coletor, conhece?
—
Como já lhe disse...
—
É verdade. É homem de confiança, sério, mas...
—
Que é que tem?
—
É maçom.
—
Melhor.
—
E quando é?
—
Domingo. Domingo, os três irão lá em casa assistir à experiência e espero que
não me recusarão as suas firmas para autenticar a minha descoberta.
—
Está tratado.
Domingo,
conforme prometeram, as três pessoas respeitáveis de Tubiacanga foram à casa de
Flamel, e, dias depois, misteriosamente, ele desaparecia sem deixar vestígios
ou explicação para o seu desaparecimento.
III
Tubiacanga
era uma pequena cidade de três ou quatro mil habitantes, muito pacífica, em
cuja estação, de onde em onde, os expressos davam a honra de parar. Há cinco
anos não se registrava nela um furto ou roubo. As portas e janelas só eram
usadas... porque o Rio as usava.
O
único crime notado em seu pobre cadastro fora um assassinato por ocasião das
eleições municipais; mas, atendendo que o assassino era do partido do governo,
e a vítima da oposição, o acontecimento em nada alterou os hábitos da cidade,
continuando ela a exportar o seu café e a mirar as suas casas baixas e
acanhadas nas escassas águas do pequeno rio que a batizara.
Mas, qual não foi a surpresa dos seus
habitantes quando se veio a verificar nela um dos mais repugnantes crimes de
que se tem memória! Não se tratava de um esquartejamento ou parricídio; não era
o assassinato de uma família inteira ou um assalto à coletoria; era coisa pior,
sacrílega aos olhos de todas as religiões e consciências: violavam-se as
sepulturas do “Sossego”, do seu cemitério, do seu campo-santo.
Em
começo, o coveiro julgou que fossem cães, mas, revistando bem o muro, não
encontrou senão pequenos buracos. Fechou-os; foi inútil. No dia seguinte, um
jazigo perpétuo arrombado e os ossos saqueados; no outro, um carneiro e uma
sepultura rasa. Era gente ou demônio. O coveiro não quis mais continuar as
pesquisas por sua conta, foi ao subdelegado e a notícia espalhou-se pela
cidade.
A
indignação na cidade tomou todas as feições e todas as vontades. A religião da
morte precede todas e certamente será a última a morrer nas consciências.
Contra a profanação, clamaram os seis presbiterianos do lugar — os bíblias,
como lhes chama o povo; clamava o agrimensor Nicolau, antigo cadete, e
positivista do rito Teixeira Mendes; clamava o major Camanho, presidente da
loja Nova Esperança; clamavam o turco Miguel Abudala, negociante de armarinho,
e o cético Belmiro, antigo estudante, que vivia ao deus-dará, bebericando
parati nas tavernas. A própria filha do engenheiro residente da estrada de
ferro, que vivia desdenhando aquele lugarejo, sem notar sequer os suspiros dos
apaixonados locais, sempre esperando que o expresso trouxesse um príncipe a
desposá-la —, a linda e desdenhosa Cora não pôde deixar de compartilhar da indignação
e do horror que tal ato provocara em todos do lugarejo. Que tinha ela com o
túmulo de antigos escravos e humildes roceiros? Em que podia interessar aos
seus lindos olhos pardos o destino de tão humildes ossos?
Porventura
o furto deles perturbaria o seu sonho de fazer radiar a beleza de sua boca, dos
seus olhos e do seu busto nas calçadas do Rio?
Decerto,
não; mas era a Morte, a Morte implacável e onipotente, de que ela também se
sentia escrava, e que não deixaria um dia de levar a sua linda caveirinha para
a paz eterna do cemitério. Aí Cora queria os seus ossos sossegados, quietos e
comodamente descansando num caixão bem feito e num túmulo seguro, depois de ter
sido a sua carne encanto e prazer dos vermes...
O
mais indignado, porém, era Pelino. O professor deitara artigo de fundo,
imprecando, bramindo, gritando:
—Na
história do crime — dizia ele — já bastante rica de fatos repugnantes, como
sejam: o esquartejamento de Maria de Macedo, o estrangulamento dos irmãos Fuoco,
não se registra um que o seja tanto como o saque às sepulturas do “Sossego”.
E
a vila vivia em sobressalto. Nas faces não se lia mais paz; os negócios estavam
paralisados; os namoros suspensos. Dias e dias por sobre as casas pairavam
nuvens negras e, à noite, todos ouviam ruídos, gemidos, barulhos
sobrenaturais... Parecia que os mortos pediam vingança...
O
saque, porém, continuava. Toda noite eram duas, três sepulturas abertas e
esvaziadas de seu fúnebre conteúdo. Toda a população resolveu ir em massa
guardar os ossos dos seus maiores. Foram cedo, mas, em breve, cedendo à fadiga
e ao sono, retirou-se um, depois outro e, pela madrugada, já não havia nenhum
vigilante. Ainda nesse dia o coveiro verificou que duas sepulturas tinham sido
abertas e os ossos levados para destino misterioso.
Organizaram
então uma guarda. Dez homens decididos juraram perante o subdelegado vigiar
durante a noite a mansão dos mortos.
Nada
houve de anormal na primeira noite, na segunda e na terceira; mas, na quarta,
quando os vigias já se dispunham a cochilar, um deles julgou lobrigar um vulto
esgueirando-se por entre a quadra dos carneiros. Correram e conseguiram apanhar
dois dos vampiros. A raiva e a indignação, até aí sopitadas no ânimo deles, não
se contiveram mais e deram tanta bordoada nos macabros ladrões, que os deixaram
estendidos como mortos.
A
notícia correu logo de casa em casa e, quando, de manhã, se tratou de
estabelecer a identidade dos dois malfeitores, foi diante da população inteira
que foram neles reconhecidos o coletor Carvalhais e o coronel Bentes, rico
fazendeiro e presidente da Câmara. Este último ainda vivia e, a perguntas
repetidas que lhe fizeram, pôde dizer que juntava os ossos para fazer ouro e o
companheiro que fugira era o farmacêutico.
Houve
espanto e houve esperanças. Como fazer ouro com ossos? Seria possível? Mas
aquele homem rico, respeitado, como desceria ao papel de ladrão de mortos se a
coisa não fosse verdade!
Se
fosse possível fazer, se daqueles míseros despojos fúnebres se pudesse fazer
alguns contos de réis, como não seria bom para todos eles!
O
carteiro, cujo velho sonho era a formatura do filho, viu logo ali meios de
consegui-la.
Castrioto,
o escrivão do juiz de paz, que no ano passado conseguiu comprar uma casa, mas
ainda não a pudera cercar, pensou no muro, que lhe devia proteger a horta e a
criação. Pelos olhos do sitiante Marques, que andava desde anos atrapalhado
para arranjar um pasto, pensou logo no prado verde do Costa, onde os seus bois
engordariam e ganhariam forças...
Às
necessidades de cada um, aqueles ossos que eram ouro viriam atender, satisfazer
e felicitá-los; e aqueles dois ou três milhares de pessoas, homens, crianças,
mulheres, moços e velhos, como se fossem uma só pessoa, correram à casa do
farmacêutico.
A
desinteligência não tardou a surgir; os mortos eram poucos e não bastavam para
satisfazer a fome dos vivos. Houve facadas, tiros, cachações. Pelino esfaqueou
o turco por causa de um fêmur e mesmo entre as famílias questões surgiram.
Unicamente, o carteiro e o filho não brigaram. Andaram juntos e de acordo e
houve uma vez que o pequeno, uma esperta criança de onze anos, até aconselhou
ao pai:
—Papai
vamos aonde está mamãe; ela era tão gorda...
De
manhã, o cemitério tinha mais mortos do que aqueles que recebera em trinta anos
de existência. Uma única pessoa lá não estivera, não matara nem profanara
sepulturas: fora o bêbedo Belmiro.
Entrando
numa venda, meio aberta, e nela não encontrando ninguém, enchera uma garrafa de
parati e se deixara ficar a beber sentado à margem do Tubiacanga, vendo
escorrer mansamente as suas águas sobre o áspero leito de granito — ambos, ele
e o rio, indiferentes ao que já viram, mesmo à fuga do farmacêutico, com o seu
Potosi e o seu segredo, sob o dossel eterno das estrelas.
Amei encontrar Lima Barreto aqui. Brasileiro <3 Esse conto mostra bem a cegueira pela ganância.
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