AS REVELAÇÕES DO CEGO ASSASSINADO - Narrativa Clássica Sobrenatural - Catherine Crowe

 



AS REVELAÇÕES DO CEGO ASSASSINADO

Catherine Crowe

(1803 – 1876)

Tradução de Paulo Soriano

 

Um fato dos mais notáveis aconteceu em Odessa no ano de 1842.

Um velho cego, chamado Michel, ganhava a vida, há muitos anos, sentando-se todas as manhãs num estrado de madeira, com uma tigela de mesmo material a seus pés, na qual recolhia as esmolas lançadas pelos transeuntes. Esta prolongada prática o tornara bem conhecido entre os habitantes de Odessa e, como acreditavam que era ele um ex-soldado, atribuíam a sua cegueira aos inúmeros ferimentos sofridos em batalha. O cego, todavia, conservava-se silencioso e jamais contradisse tal opinião.

Certa noite, Michel, por acaso, encontrou uma menininha de dez anos, chamada Powleska, que não tinha companhia e estava à beira de sucumbir ao frio e à fome. O velho a levou para casa e a perfilhou. E, desde então, em vez de sentar-se no banco de madeira, passou a andar pelas ruas acompanhado da garota, pedindo esmola às portas das casas. A criança o chamava de pai, e eles eram extremamente felizes juntos.

Já levavam esta vida há cerca de cinco anos, quando um infortúnio se abateu sobre eles. Numa casa que visitaram naquela manhã, um furto havia sido praticado. Powleska, suspeita do crime, foi presa e o velho cego deixado novamente sozinho. Mas, em vez de retomar os seus antigos costumes, o pobre homem desapareceu completamente, e esta circunstância fez com que a suspeita se estendesse também a ele.

 


A garota foi conduzida à presença do magistrado para ser interrogada quanto ao provável esconderijo do ancião.

— Você sabe onde está Michel? — perguntou o magistrado.

— Ele está morto! — respondeu a moça, derramando uma torrente de lágrimas.

Como a jovem estava presa há dias — e, portanto, sem qualquer meio de obter informações de fora —, essa resposta, aliada à sua sincera aflição, provocou nos presentes uma surpresa considerável.

— Quem lhe disse que ele está morto? — perguntaram.

— Ninguém!

— Então, como você pode saber disto?

— Eu o vi morto!

— Como, se você não saiu da prisão?

— Mas, mesmo assim, eu o vi morto!

— Mas como pode ser possível? Explique-nos o que você quer dizer!

— Não posso. Tudo o que posso dizer é que eu o vi morto.

— Quando ele foi morto? E como?

— Foi na noite do dia em que me prenderam.

— Não pode ser; ele estava vivo quando a prenderam.

— Sim, ele estava vivo. Porém, foi morto uma hora depois. Apunhalaram-no com uma faca.

— Onde você estava então?

— Não sei dizer. Mas eu o vi morrer.

A convicção com que a moça dizia aquelas coisas impossíveis e absurdas fazia-os pensar que ela realmente estava doida ou fingia-se de louca. Assim, deixando Michel de lado, eles passaram a interrogá-la sobre o furto. Perguntaram-na se era culpada.

— Ah, não! — ela respondeu.

— Então, como a encontraram na posse do pertence furtado?

— Não sei. Não vi nada além do assassinato.

— Mas não há motivo para supor que Michel está morto: o seu corpo não foi encontrado.

— Está no aqueduto.

— E você sabe quem o matou?

— Sim. Foi uma mulher. Michel saiu andando, bem devagar, depois que eu fui tirada dele. Uma mulher seguiu-o com uma grande faca de cozinha. Mas ele a ouviu e se virou. A mulher, então, jogou-lhe algo cinzento em sua cabeça, e o golpeou repetidamente com a faca. O trapo cinza ficou muito manchado de sangue. Michel caiu ao oitavo golpe, e a mulher arrastou o seu corpo até o aqueduto e lá o deixou caído, sem tirar o trapo que grudara no rosto dele.

Como era fácil verificar essas últimas afirmações, eles enviaram agentes ao local. Lá, o corpo foi encontrado, com o trapo sobre a cabeça, exatamente como ela havia descrito. Mas quando lhe perguntaram como sabia de tudo isso, ela limitou-se a responder:

— Não sei.

— Mas você sabe quem o matou?

— Não exatamente. Foi, contudo, a mesma mulher que lhe arrancou os olhos. É possível que ele me diga o nome dela hoje à noite. Se ele o disser, contarei a vocês.

— Quem você quer dizer com ele?

— Ora, Michel, com certeza!

Naquela noite, sem permitir que ela suspeitasse de suas intenções, eles ficaram a observá-la. Viram que a garota não se deitara, senão permanecera sentada no catre, envolvida por uma espécie de sono letárgico. Seu corpo conservava constante imobilidade, exceto nos intervalos em que o repouso era interrompido por violentos espasmos nervosos, que permeavam todo o seu corpo.

No dia seguinte, quando levada à presença do juiz, ela declarou que agora poderia dizer-lhes o nome da assassina.

— Mas, vejamos — disse o magistrado. — Michel nunca lhe contou, quando vivo, como perdeu a visão?

— Não, mas ele me prometeu que, na manhã do dia em que eu fui presa, me contaria.

— Como assim?

— Na noite anterior, Michel veio até mim e indicou-me um homem escondido atrás do andaime no qual ele e eu estávamos sentados. Ele me mostrou o homem, que nos escutava, e disse: “Vou contar-lhe tudo amanhã.” Então o homem...

—Você sabe o nome desse homem?

— É Luck. Ele, seguida, meteu-se por uma rua larga, que leva ao porto, e entrou na terceira casa à direita...

— Qual é o nome da rua?

— Não sei. Mas a casa é um andar mais baixo que as outras vizinhas. Luck disse a Catherine o que tinha ouvido, e ela lhe propôs assassinar Michel. Mas ele se recusou a fazê-lo, dizendo: “Já não fomos pérfidos o suficiente quando lhe queimamos os olhos, há quinze anos, enquanto ele dormia à nossa porta, e, depois, o arrastamos para o campo?”. Então, entrei para pedir esmolas e Catherine colocou um pratinho no meu bolso, para que eu fosse presa. Depois, ela se escondeu atrás do aqueduto para esperar por Michel e o matou.

— Mas, já que você diz tudo isso, por que guardou o pratinho?  E por que não nos contou nada disto?

— Ora, até então, eu não tinha visto o sucedido. Somente ontem à noite Michel me mostrou o que aconteceu.

— Mas o que induziu Catherine a cometer o crime?

— Michel era seu marido, mas ela o abandonou para fugir à Odessa e se casar novamente. Uma noite, há quinze anos, ela viu Michel, que viera à sua procura. Ela entrou rapidamente em casa, e Michel, acreditando que não havia sido visto, deitou-se à porta para observá-la. Mas ele adormeceu. Luck, então, queimou os seus olhos e o carregou para longe.

— E foi Michel quem lhe contou isso?

— Foi. Michel veio a mim, muito pálido e coberto de sangue. Ele me tomou pela mão e me mostrou tudo isto com os dedos.

Por conta do depoimento da jovem, Luck e Catherine foram presos. Verificou-se que ela realmente havia se casado com Michel no ano de 1819, em Kherson. A princípio, eles negaram a acusação, mas Powleska insistiu e, posteriormente, confessaram o crime.

Quando informaram as circunstâncias da confissão a Powleska, ela disse:

— Eu já sabia: contaram-me ontem à noite.

Este caso, naturalmente, despertou um grande interesse, e as pessoas de toda a redondeza correram à cidade para ouvir a sentença. 


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