A HISTÓRIA DO HOMEM LEOPARDO - Conto Clássico de Horror - Jack London
A HISTÓRIA DO
HOMEM LEOPARDO
Jack London
(1876 – 1916)
Tradução de Paulo Soriano
Ele
tinha um olhar sonhador e distante e a sua voz triste — insistente e gentil
como a de uma criada — parecia a plácida personificação de uma profunda
melancolia. Ele era o Homem Leopardo, mas não parecia sê-lo. Sua profissão — o
seu meio de vida — cifrava-se em exibir-se numa jaula de leopardos adestrados, diante
de concorridas plateias, e emocioná-las com certas demonstrações de coragem,
pelas quais seus empregadores o recompensavam numa escala proporcional às
emoções que ele produzia.
Como
eu disse, ele não parecia um Homem Leopardo. Tinha quadris estreitos, ombros mirrados
e era anêmico, embora parecesse menos oprimido pelo desânimo do que por uma tristeza
cândida e gentil, cujo peso suportava com candura e afabilidade. Durante uma
hora, tentei arrancar-lhe uma história, mas parecia que lhe faltava imaginação.
Para ele, não havia romantismo em sua brilhante carreira, nenhum ato de
ousadia, nenhuma emoção: nada além de uma monotonia cinzenta e um tédio
infinito.
Leões?
Ah, sim! Ele havia pelejado com essas feras. Não era nada demais. Tudo o que se
precisava fazer era permanecer sóbrio. Qualquer um poderia chicotear um leão e
imobilizá-lo com uma simples vara. Certa feita, pelejou com um leão por meia
hora. Tocava-lhe o focinho cada vez que o animal se agitava, e, quando a fera
tomava uma atitude ardilosa, abaixando a cabeça, bastava-lhe estender a perna. Assim
que leão intentava o bote para alcançá-la, ele retraía o membro e batia-lhe nas
fuças novamente. Apenas isto.
Com
o olhar perdido e seu fluxo de doces palavras, ele me mostrou suas cicatrizes.
Havia muitas delas, e uma recente no ombro, onde uma tigresa o alcançou,
chegando até os ossos. Eu podia ver as rasgaduras perfeitamente remendadas no
casaco que ele vestia. Seu braço direito, do cotovelo para baixo, como
resultado da devastação produzida por presas e garras, parecia ter passado por
uma debulhadora. Mas ele dizia que não era nada demais. As velhas feridas
somente lhe causavam algum incômodo quando chegava o tempo chuvoso.
De
repente, seu rosto se iluminou ao recordar-se de alguma coisa, pois desejava
ansiosamente contar-me uma história na mesma medida em que eu me dispunha a
ouvi-la.
—
Suponho que você já ouviu falar do domador de leões a quem outro homem odiava —
disse-me ele.
Ele
fez uma pausa e olhou pensativo para um leão doente na jaula em frente.
—
Ele está com dor de dente — explicou. — Bem, para o público, a maior atração
consistia em que o domador colocasse a cabeça na boca de um leão. O seu
desafeto, que o odiava, assistia a todas as apresentações do domador, nutrindo
a esperança de algum dia ver aquele leão esmigalhando-lhe a cabeça. Ele
acompanhava o espetáculo por todo o país. Os anos se passaram. Ele envelhecia, o
domador de leões envelhecia, o leão envelhecia. E, finalmente, um dia, sentado
em um banco da frente, ele viu aquilo que tanto esperava. O leão abocanhou a
cabeça do domador e necessidade alguma houve de chamarem um médico.
O
Homem Leopardo olhou despreocupadamente as unhas da mão, de uma maneira que
teria sido resoluta, acaso não fosse tão triste.
—
Bem, isso é o que chamo de paciência — prosseguiu —
e
é o meu estilo. Mas não era o estilo de um sujeito que eu conhecia. Era ele um francesinho
magro, diminuto, engolidor de espadas e malabarista. Dizia chamar-se De Ville e
tinha uma bela esposa. Ela era trapezista e costumava atirar-se de cabeça em
uma rede, dando uma volta completa no caminho, e fazia-o tão bem quanto se
possa imaginar.
"De Ville tinha um temperamento
explosivo, tão vívido quanto a sua mão, e esta era tão rápida
quanto a pata de um tigre. Um dia, porque o mestre de cerimônias o chamou de “comedor
de rãs”[1],
ou alguma coisa do gênero, e, talvez, algo um pouco pior, ele o empurrou contra
o fundo de pinho macio que ele usava no seu número de arremesso de facas, e tão
rapidamente que o apresentador de espetáculos não teve tempo sequer de pensar.
E lá, diante da plateia, De Ville pôs-se a arremessar as suas facas, mergulhando-as
na madeira ao redor do mestre de cerimônias, fincando-as tão próximas a seu
corpo que as lâminas transpuseram as suas roupas e a maioria chegou a
beliscar-lhe a pele.
"Os
palhaços tiveram que puxar as facas para soltá-lo, pois ele estava fortemente
pregado à plataforma. Então, circulou o burburinho de que era preciso tomar
cuidado com De Ville, e ninguém ousava exceder um milímetro além do trato
apenas atencioso com a sua esposa. Embora ela fosse dissimuladamente sedutora, todas
as mãos temiam o irascível De Ville.
"Mas
havia um camarada, Wallace, que não tinha medo de nada. Ele era o domador de
leões e empregava o mesmo truque de colocar a cabeça na boca do leão. Ele a punha
na boca de qualquer um eles, embora Augustus fosse o seu preferido: um animal
grande e bem-humorado, em quem sempre se podia confiar.
"Como
eu estava dizendo, Wallace — o Rei Wallace, como nós o chamávamos — não tinha
medo de nada, vivo ou morto. Ele era mesmo um rei e eu acredito nisto. Por uma
aposta, eu o vi entrar bêbado na jaula de um leão, que se tornara perigoso, e o
dominou sem vara alguma. Apenas o fez com o punho no nariz na fera.
"Madame
de Ville... "
Ao
ouvir um alvoroço a nossas costas, o Homem Leopardo se virou silenciosamente.
Era uma jaula dividida, e um macaco, mexendo as barras da divisória, teve sua mão
agarrada por um grande lobo cinza, que tentava puxá-la com força total. O braço
parecia esticar-se cada vez mais como um grosso elástico e os companheiros do mono
infeliz fizeram um barulho terrível. Nenhum cuidador estava por perto. Então, o
Homem Leopardo deu uns passos adiante, desferiu um potente golpe no focinho do
lobo com a leve bengala que levava consigo, e voltou com um lânguido sorriso de
desculpas apologético para retomar sua frase inacabada, como se não a tivesse
interrompido...
"—
...olhou para o rei Wallace e o rei Wallace devolveu-lhe o olhar, enquanto De
Ville parecia fulo da vida. Avisamos do perigo a Wallace, mas de nada adiantou.
Ele riu de nós, como riu de De Ville num certo dia em que enfiou a cabeça do
francês num balde de grude quando este quisera brigar.
"A cabeça de De Ville ficou toda enredada
e
eu ajudei a raspá-la; mas ele estava frio como um pepino e não fez nenhuma
ameaça. Eu vi nos seus olhos, todavia, o mesmo brilho que já havia surpreendido,
diversas vezes, nos olhos das feras, e saí do meu caminho para dar a Wallace um
aviso final. Ele riu da advertência, mas, depois disso, deixou de olhar para
Madame de Ville com a mesma frequência.
"Vários
meses se passaram. Nada tinha acontecido e eu começava a achar que nada havia a
temer. Estávamos no Oeste naquela época, realizando espetáculos em São
Francisco. Durante a apresentação da tarde, quando a grande lona abrigava um
sem-número de mulheres e crianças, fui procurar Red Denny, o chefe da equipe de
montagem, que havia levado minha navalha.
"Passando
por um dos vestiários, olhei por um buraco na lona para ver se conseguia
localizá-lo. Ele não estava lá, mas bem à minha frente vislumbrei o Rei
Wallace, de malha, esperando sua vez entrar na jaula dos leões adestrados. Ele
assistia muito jovialmente a uma discussão entre dois trapezistas. Todas as
outras pessoas no vestiário assistiam à mesma cena, à exceção de De Ville.
Notei que o francês olhava fixamente para Wallace com ódio indisfarçável.
Wallace e os colegas estavam ocupados demais acompanhando a peleja para dar-se
conta disto ou do que se seguiu.
"Mas,
pelo buraco da lona, eu vi o que aconteceu. De Ville tirou o lenço do bolso, fingiu
enxugar o suor do rosto (era um dia quente), e, ao mesmo tempo, passou por
detrás de Wallace. Aquele olhar me perturbou vivamente, pois nele surpreendi não
apenas o ódio. Era, também, um olhar de triunfo.
"De
Ville vai ficar espreitando — disse a mim mesmo. E realmente respirei aliviado
quando o vi sair pela entrada do circo e embarcar num bonde para o centro da
cidade. Alguns minutos depois, eu estava sob grande lona, onde eu revisitei Red
Denny. O rei Wallace realizava o seu número e paralisava a plateia encantada.
Ele tinha um ânimo particularmente cruel e manteve os leões agitados até que
todos rosnassem. Todos, exceto o velho Augustus, que era muito gordo,
preguiçoso e velho demais para se irritar com o que quer que fosse.
"Finalmente
Wallace estalou o chicote nos joelhos do velho leão, colocando-o em posição. O
velho Augustus, piscando bem-humorado, abriu a boca e ali Wallace introduziu a
cabeça. Então, sem mais nem menos, as mandíbulas do velho leão se juntaram,
rangendo.”
O
Homem Leopardo sorriu de uma forma docemente melancólica e um olhar distante assomou
em seus olhos.
—E
esse foi o fim do Rei Wallace — continuou, com sua voz triste e baixa. —Depois
que a azáfama amainou, esperei por uma oportunidade e me inclinei para cheirar
a cabeça de Wallace.
“Então
espirrei.”
—Era...
Era...? — perguntei, com hesitante sofreguidão.
—
Rapé. O rapé que De Ville, no camarim, despejou sobre o cabelo de Wallace. O
velho Augustus nunca pretendeu fechar a boca. Ele só espirrou.
[1] Em inglês
“frogeater”, termo que designa, pejorativamente, uma pessoa de nacionalidade
francesa.
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