ACALANTO DAS ÁGUAS - Conto Fantástico - Tânia Souza


ACALANTO DAS ÁGUAS

Tânia Souza

 

Sentiu as folhas e o frio da terra sob seus pés descalços. No meio da floresta, esgueirando-se entre as árvores centenárias, estremeceu ao confundir os gigantescos loureiros com vultos em meio à forte neblina. Havia um pesado silêncio no bosque que se estendia por extensões incalculáveis, ela poderia jurar que nunca antes pés humanos cruzaram suas barreiras. Mas uma vez... talvez não fosse lenda. Talvez ela tivesse uma chance.

O frio do amanhecer aos poucos desaparecia e o ar parecia agora bafejado por murmúrios longínquos. Pequenas frestas de luz invadiam os galhos das árvores mais altas e desciam entrecortados, iluminado as trevas. Plantas desconhecidas estendiam-se espinhosas e feriam sua pele, rasgando o tecido fino que a envolvia. Tentou vencer o medo e a sensação de que logo seria alcançada; desde que deixara a vila, caminhara sem descanso, mas os cavaleiros não desistiriam tão fácil.

Uma única chance, talvez.

Olhos. Podia senti-los, espreitando-a desde que adentrara aquele estranho universo. Havia um cheiro de incontáveis eras e criaturas desconhecidas desafiando quem ousasse adentrar seus domínios. Entretanto, por mais sombrios e escuros que fossem os caminhos, as árvores e a vegetação eram verdes, vívidas. Entre pedras lisas e cobertas por musgos esverdeados, descobriu um veio d’água que corria entre os pedregulhos e abaixou-se para a água que corria, bebendo com as mãos e reconhecendo as ervas que seu povo sempre usara para curar.

Um ruído despertou de súbito sua atenção, a voz acariciante de um sonho, trazendo em si promessas e delírios como os que a levaram até ali. Seguiu o curso do pequeno riacho, em busca do som fascinante, e logo chegou a uma clareira onde a água formava uma pequena e transparente cacimba e um estreito finalizava o caminho.

Chegou devagar, com medo de assustá-la. Uma chance. Sentiu as lágrimas descerem e o coração apertado, entre medo, alegria perante a presença viva da magia.

A criatura das águas sorriu. Os longos e amendoados cabelos confundindo-se com as raízes frondosas e troncos gigantescos que brotavam na beira do rio. A pele era quase transparente e os longos cílios em torno dos olhos dourados devassaram a alma de Gwen. Em meio às águas transparentes, a moça se moveu e as escamas prateadas refletiam-se à luz.

Ouvia ainda o galope desesperado dos seus perseguidores quando mergulhou os pés na água cálida. Ao seu redor, outros rostos surgiam e mãos suaves a tocaram até que apenas o aconchego morno das águas a envolvesse.

Aquele não era mais o mundo no qual Gwen crescera. Para homens e mulheres como ela, viriam tempos difíceis. Alguns, ouviram o chamado das árvores; outros, da terra; alguns, das cavernas, e até mesmo do ar. No entanto, grande parte do seu povo já não conseguia ouvir, e, tomada pelo medo, ardia o fim de sua essência. Mas Gwen ouvira a sagrada acolhida das águas.

Finalmente, estaria livre.

Quando os cavaleiros chegaram ao lago, apenas águas.


 

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