MARIA! NÃO ME MATES, QUE SOU TUA MÃE! - Conto Clássico de Horror - Camilo Castelo Branco
MARIA!
NÃO ME MATES, QUE SOU TUA MÃE!
Meditação sobre o espantoso crime
acontecido em Lisboa:
Uma filha que mata e despedaça a sua mãe.
Mandada imprimir por um mendigo, que foi
lançado fora de seu convento, e anda pedindo esmola pelas portas.
Camilo Castelo Branco
(1825 – 1890)
PAIS
DE FAMÍLIA!
Atendei
e vereis o maior de quantos crimes se tem visto no mundo! Vereis uma filha
matar a sua mãe, porque esta lhe não deixava fazer o quanto desejava.
Vereis
como essa filha corta a cabeça da sua mãe, e os braços, e as pernas, e vai pôr
cada pedaço de corpo da sua mãe em diferentes lugares, para que ninguém
conhecesse o cadáver da morta, nem a mão que a matara e despedaçara. Vereis
como a matadora da sua mãe, da sua mãe, ó pais de famílias, da sua mãe que a
trouxera nas entranhas, que lhe dera o alimento dos seus peitos, que a criara
ao seu lado com beijos e afagos, que tirara o pão da sua boca para o dar à sua
filha, que fora talvez pedir uma esmola para que a sua filha não tivesse fome,
e não desse seu corpo em troca de um bocado de pão! Vereis como esta filha sem
alma, sem medo de Deus, sem temor das penas do inferno, é descoberta como
matadora da sua mãe, por um milagre, pela providência de Deus! Vereis aquela
mulher com alma de tigre comer com toda a vontade e contentamento, ao pé da
cabeça ensanguentada da sua mãe, e responder quando lhe perguntam se é aquela a
cabeça da sua mãe.
—
Sim! — disse ela — essa é a cabeça da minha mãe!
E
continuou a comer.
Pais
de famílias! Eu vou contar-vos o mais triste e espantoso acontecimento que viu
o mundo, e que talvez não torne a ver. Chamai vossos filhos para junto de vós.
Lede-lhe esta história, e fazei que eles a decorem, que a tragam consigo, e que
a repitam uns aos outros.
Pais
de famílias! O que escreveu estas linhas com o seu pouco saber talvez vos terá
ido à porta mendigar as migalhas da vossa mesa.
Deus
Nosso Senhor Jesus Cristo permita que eu possa levar a compaixão ao coração dos
que me lerem, que eu desgraçado pecador fico pedindo a Deus pela alma daquelas
infelizes mãe e filha.
*
Em
Lisboa, na travessa das Freiras nº 17, havia um homem chamado Agostinho José,
casado com Matilde de Rosário da Luz.
Tinham
duas filhas, uma das quais se chamava Maria José. Farto de trabalhar para
sustentar com o suor do seu rosto a honra da sua família, Agostinho José
morreu, e deixou entregue à sua virtuosa mulher as suas duas filhas,
dizendo-lhe:
—
Matilde, quando não puderes trabalhar com as tuas filhas, vai pedir uma esmola
para lhes dares um bocado de pão, mas não as deixes cair na desgraça de
mundanas, porque eu não me poderei salvar se as minhas filhas desonrarem minhas
cinzas.
O
pobre velho morreu abraçado à sua querida mulher e amados filhos, e pode-se
dizer que os levou atravessados na garganta para a sepultura.
A
desgraçada viúva pôs uma das suas filhas a servir em casa de honrados amos, e
ficou com a outra, em casa, para a ajudar a viver.
Metia
compaixão ver aquela mãe, tão contente com a sua filha, depois de terem ambas
repartido entre si os poucos lucros do seu trabalho, aplicados para um bocado
de pão e uma sardinha, ver como ela ensinava à filha as orações que já a sua
mãe lhe havia ensinado, o modo de pedir a Deus um meio de passar a vida com
honra e sem vergonhas do mundo! Maria José (este era o nome da filha) parecia
que amava a sua mãe com toda a sua alma e coração.
Andava
de dia vendendo algumas coisas numa tendinha que tinha comprado com as
economias da sua mãe, e de noite rezava o terço à Virgem Maria, e ao mesmo
tempo compunha meias para fora, com cujo produto se vestia. Toda a vizinhança
olhava para esta rapariga com admiração porque já tinha 29 anos, e ainda não
havia nota ruim que se lhe pusesse, e ninguém se atrevia a pôr nela a boca.
Uma
vez andando Maria José vendendo com a sua tenda, chegou-se ao pé dela um rapaz
de boas maneiras, e começou a conversar com ela sem lhe dizer coisa que tivesse
maldade. A rapariga escutou-lhe as palavras, e ficou entendendo que o José
Maria (era o nome dele) não era mau rapaz e que a não buscava para maus fins.
Continuou
a conversar com ele, até que ele lhe chegou a dizer que se fosse da vontade
dela, que se lhe não dava de casar com ela.
Maria
José não desgostou de ouvir o que disse-lhe o seu conversado, e respondeu-lhe
que quem governava nela que era a sua mãe, e se ele não estava a gozar, que
fosse falar com ela, e talvez lhe desse o sim, porque a sua mãe não a queria
para freira.
O
José Maria foi falar com a viúva Matilde, e esta boa mulher disse-lhe que, se
ele fazia pela vida e era amigo do trabalho, que ela não se lhe dava que a sua
filha casasse, e quanto mais que isso eram coisas que estavam à vontade da sua
filha, e não à sua, porque não era ela que casava.
Ao
que o rapaz respondeu que já tinha o consentimento da sua filha, e que então ia
mandar ler os banhos[1].
José
Maria continuou a ir à casa da esposada, enganando-a que se estavam a ler os
banhos.
A
rapariga afez-se a ter paixão por ele, porque o via a todas as horas, e
esperava que o traidor lhe não mordesse a palavra. A mãe, que tinha mais anos e
mais experiência do mundo, agourava mal daqueles amores, porque os banhos nunca
mais se acabavam de ler, e o José Maria tinha já uma confiança na sua casa como
se fosse marido da sua filha. Quando aquela boa mãe repreendia, com boas
maneiras, a muita fraqueza da filha, esta toda se arrufava, e virava as costas
à mãe, resmungando palavras desobedientes. Filhas ingratas! Mal sabeis vós que
torcer os olhos de mau modo para uma mãe é o mesmo que cuspir nas tábuas da lei
de Deus!
O
enganador José Maria, com o demônio no coração, a impostura na boca, foi pouco
a pouco amolecendo a fraca resistência que Maria José fazia ao seu brutal
apetite. A pobre rapariga, se tivesse ouvido os conselhos da sua mãe, não
cairia na desgraça de se deixar enganar, como de fato deixou pelo seu pérfido
homem, que para outra coisa não ia àquela casa, senão para fazer jogo da
confiança que lhe fora dada.
A
infeliz mãe pressentiu a desonra da sua filha e já não lhe podia valer. Assim
mesmo um dia com as lágrimas nos olhos disse-lhe estas palavras:
—
Minha filha, eu muitas vezes te disse o que eram os homens, não que eu tivesse
queixa do meu, porque o teu pai era honrado e virtuoso como aqueles que o são;
mas porque os rapazes de hoje não são o que eram os de algum dia!
“Disse-to
muitas vezes, e tu ou me respondias com arremesso e enfado ou me viravas as
costas em ar de desprezo. Não te pude valer. Deus Nosso Senhor me perdoe se eu não tive forças para te castigar,
porque eu tinha-te muito amor, e nunca me capacitei deveras que houvesse um
tredo tão grande como o José Maria.
“Mas
já agora que não tem remédio, minha filha, filha do meu coração, em bom pano
cai uma nódoa. Minha filha, por alma do teu pai que está na presença de Deus a
pedir teu perdão, pelas cinco chagas te peço que deixes esse homem, que há de
acabar de te lançar na perdição, onde não acharás meios de te salvar da justiça
de Deus, e das vergonhas do mundo.
—
Minha mãe — respondeu-lhe a filha —, ora deixe-me que não estou para aturá-la.
Ainda vinha a tempo com os seus sermões. O valer-me era a tempo, agora que eu
sou dele como se fosse sua mulher, hei
de ser com ele desgraçada até à morte. Sabe que mais? Se casar, casou; se não
casar, é o mesmo; eu gosto e ele gosta...
—
Ai, minha filha — respondeu a mãe —, que linguagem é hoje a tua tão diferente
daquela que era antes deste maldito aqui entrar. Ai, minha filha, que estás de
todo! Ó, meu marido, perdoa-me, perdoa-me! Bem vês que eu não fui culpada.
E
a desgraçada viúva pôs a cara sobre as mãos e começou a chorar quando a sua
filha se pôs a cantarolar e a rir da posição magoada e aflitiva da sua mãe. E
disse-lhe estas palavras insultantes:
—
Ó, minha mãe... Sabe que mais?... Eu não
estou para aturá-la. Se quer estar comigo, há de ver, ouvir e calar, que é
regra de bem viver; se não quiser, a rua é larga, o mundo é grande.
—
Queres dizer com isso que me pões fora de casa, não é o que queres dizer-me?! —
perguntou a mãe.
—
Ou isso, que vale a mesma coisa — respondeu a filha.
A
atribulada viúva, cheia de razão e justa raiva, exclamou em voz alta:
—
Pois então sabe que, se eu até aqui te tratei como mãe carinhosa, de hoje em
diante hei de ser mãe como deve ser.
“Se
de ora em diante aqui tornar a ver José Maria, hei de queixar-me à
administração do concelho que esse homem vem a minha casa contra a minha
vontade, e tu e mais ele haveis de ser atrancados no Limoeiro[2],
tu como filha desobediente e ele como um sedutor de uma rapariga que se deixou
ir das suas palavras.
—
Bem me importa a mim dessas coisas — replicou a filha —; pela constituição não
se prende ninguém por seduzir raparigas, e de mais foi muito do meu gosto;
acabou-se, está dito.
—
Veremos, Maria, veremos qual de nós é que vence! Oh, meu Deus! — dizia a velha
no profundo do seu coração. — Oh, meu Deus, mudai as tenções da minha filha,
mostrai-lhe a verdade das minhas palavras, e fazei que ela conheça o caminho da
perdição, onde a sua má estrela a lançou!
A
filha ria-se de escárnio, e, ao mesmo tempo, estava com ódio a sua mãe.
Deus
não quis tocar-lhe o coração, porque Ele quis ver até que ponto poderiam chegar
os crimes no século de desmoralização e pecado em que vivemos.
Passou-se
aquele dia de lágrimas para a mãe, e Maria José não apareceu em casa o resto do
dia, porque tinha ido aonde estava o seu amante e disse-lhe que a mãe não
queria torná-lo a ver lá em casa, e que, se ele lá tornasse, ela dissera que
havia de ir acusá-lo à administração do concelho.
Com
estas notícias, o malvado atemorizou-se, porque já tinha sido acusado como
vadio e ratoneiro, e era bem conhecido pelos guardas da administração. E,
assim, ou para se desfazer da rapariga, ou porque realmente desejasse o que há
de mais cruel no mundo, aconselhou a rapariga para que matasse a sua mãe!
Oh,
céus, onde estão os vossos raios que não caem sobre a cabeça deste infame, que
pede a uma amante que mate a sua mãe, para mais a salvamento gozar os seus
escandalosos e torpes desejos?! Oh, céus, como quereis que um homem vos insulte
tão claramente, atrevendo-se a proferir estas palavras: oh, filha mata tua
mãe?!… Oh, meu Deus, eu sou um fraco bichinho na terra, e atrevo-me a
interrogar a vossa alta sabedoria! Perdoai-me, meu Deus!
Maria
José, quando voltou para casa, no dia seguinte, ainda a sua mãe não tinha
comido nem bebido e estava deitada sobre a cama, vestida, com os olhos inchados
de chorar. Parece que tinha envelhecido vinte anos. As rugas da pele tinham-se
profundado, e os cabelos embranqueceram-lhe em o espaço de uma só noite.
—
Então que faz aí, sua tola? — disse a filha já atentada pelo demônio à
desgraçada velha.
A
mãe não respondeu, e continuou a chorar, e, depois de dar magoadíssimos
suspiros, atirou-se da cama abaixo, e lançou-se aos pés da filha.
—
Minha desgraçada filha! (exclamou ela). Atende às lágrimas da tua mãe; bem vês
que é aquela que te deu ao mundo, que sofreu as dores de mãe, que se lança de
joelhos aos teus pés, pedindo que não lhe cubras a cara com o negro véu da
vergonha nos últimos dias da sua vida.
A
mãe ia a continuar, quando a perversa filha, interrompendo-a, com desesperação
e raiva:
—
E olhe que, se assim continuar, não há de viver muito. Das duas uma: ou o José
Maria há de ter aqui entrada a toda a hora do dia e da noite, ou então… então…
Nisto
entrou o José Maria. Era um rapaz de mediana estatura, ao que parecia de vinte
e quatro anos. Tinha os olhos negros, e quase negras as faces. Os cabelos
compridos, com a barba cerrada, pouco lhe deixavam ver as feições. Tinha a
testa franzida continuamente, como o matador que sente um cancro de remorso a
tragar-lhe as entranhas.
Quando
ele entrou, a velha tremeu, e a dissoluta Maria José pendurou-se-lhe nos ombros
a beijá-lo.
Matilde,
assim escarnecida por essa filha prostituta, arrancou do peito um grito de dor
como se lhe tivessem dado uma facada no coração.
Quis
fugir pela porta fora, mas o José Maria e a Maria José não a deixaram Sair por
temerem que a velha se fosse à administração do concelho queixar das afrontas
que lhe faziam. Por fim, a infeliz e atribulada viúva, e mãe de todas as mais
desgraçadas, não teve remédio senão calar-se, porque não queria que os vizinhos
escutassem as desonrosas e vergonhosas questões que tinham em casa.
O
José Maria saiu, e quando já estava de fora da porta, chamou pela sua concubina
e disse-lhe:
—
Maria; ou tu hás de dar cabo dessa maldita velha o mais breve, ou então eu
deixo-te por uma vez, e não quero saber de desgraças.
Maria
respondeu:
—
Ora, eu tenho medo da matar; ela grita e cá por cima mora a mestra de meninas,
que a ouve, e depois se se sabe que há de ser de mim?
—
Tu és uma estúpida — respondeu o malvado —, o matá-la é de dia porque as
meninas fazem barulho a ler, e não se devem ouvir os gritos da tua mãe.
—
Mas eu tenho tanto medo de matá-la!!… Tenho alguma pena dela, se tu casasses
comigo já ela te não proibia que cá viesses, e se me tens amor, a ponto de
quereres que eu mate a minha mãe, então por que não casas comigo?
—
Está bom, está bom, temos lamúrias? — replicou o José Maria. — Se queres,
queres; se não queres, nentes que se escama o gajo.
Isto
são ditos que os vadios e brejeiros têm sempre prontos.
José
Maria foi-se, e a rapariga, desesperada e aflita com os feios modos e
destemperos do seu amante, foi-se ter com a mãe, e descompô-la com estas e
outras palavras:
—
Você é um estupor velho, é a causadora da minha perdição. O meu regalo era
pegar nesta faca e cortar-lhe a cabeça com ela. Sai estafermo, sai daqui...
E,
dizendo isto, deu um pontapé na mãe, que não teve remédio senão sair do lugar
onde estava para o patamar da escada.
A
filha saiu, foi-se ter com o José Maria a uma taverna da rua da Rosa das
Partilhas; enquanto foi, a mãe depois de chorar lágrimas de sangue, e de ter
pedido a Deus que, pela sua infinita misericórdia, desse um jeitinho à vida
errada da sua filha, foi ver debaixo do enxergão se acharia um pé de uma meia
que lá tinha com 3 moedas, restos de todas as economias da sua vida, e que ela
reservava para mandar dizer 60 missas pela sua alma e 60 por alma do seu marido
de esmola, 120 reis cada uma. Mas qual seria o seu espanto e aflição quando não
achou o seu dinheirinho? Primeiramente deu um grito do fundo do coração, e,
depois, perdeu os sentidos e caiu. Este dinheiro já a filha lho tinha roubado
para o dar ao seu amante. Quando Maria José entrou e viu assim desfalecida a
sua mãe, e a cama mexida, conheceu logo que a sua mãe já sabia do roubo, e que
havia de berrar; e assim esteve logo ali para a matar. A velha voltou a si, e,
quando viu diante sua malvada filha, começou com grandes gritos a pedir-lhe o
seu dinheirinho, que era a sua salvação e da alma do seu marido!
A
filha primeiro quis fazê-la calar à força, pondo-lhe a mão na boca; mas, vendo
que nada conseguia, foi-se ter com Antônio Ferreira do Sul, regedor da
freguesia de Santa Engrácia, e disse-lhe que mandasse meter a sua mãe no
hospital, que estava doida, e berrava que a queriam matar.
O
regedor disse-lhe que havia de informar-se do estado da sua mãe, e que ele
daria as providências.
Maria
José veio para casa, e disse a sua mãe que no dia seguinte lhe traria o seu
dinheiro.
A
infeliz desgraçada velha, com isto, sossegou alguma coisa, mas — ó, desgraça! Ó,
dor! Ó, crime sem igual! — a maldita e condenada filha já a estas horas fazia
de conta que às mesmas horas do dia seguinte teria matado a sua mãe!
Oh,
meu Deus, dai-me forças para poder continuar e enxugai-me estas lágrimas dos
olhos!
Filhas
que amais vossas mães, tremei, tremei de horror! Mães que amais vossas filhas,
chorai, chorai de compaixão! Pais de famílias que me ledes, fazei por dar uma
educação aos vossos filhos, que não deixe remorso na hora tremenda em que as
vossas almas estiverem para voar à presença de Jesus Cristo!
Em
toda a noite daquele dia, Maria não apareceu em casa, foi onde estava o José
Maria e pediu-lhe ferros para matar a sua mãe. O malvado deu-lhe duas facas de
sapateiro, e lá disse-lhe que fizesse aquilo que vou contar, se Deus Nosso Senhor
mo permitir.
Eram
dez horas do dia 11 de setembro, quando Maria entrou em casa. A mãe, logo que a
viu, perguntou-lhe com muito bom modo se trazia o dinheiro que lhe tirara, e a
filha respondeu que não tardava. E depois esta sentou-se ao pé da mãe, e disse-lhe
que queria que a catasse; a mãe respondeu que sim. Maria José puxou-lhe a
cabeça para o regaço e catou-a um poucachinho. E indo a mexer-se para tirar do
bolso da algibeira — oh, meu Deus! — uma das facas, a mãe sentiu o barulho das
duas folhas das facas, e perguntou:
—
Que trazes no bolso, Maria?
—
São duas facas, minha mãe
—
Para que andas de faca?
—
São do José Maria que mas deu para eu mandar amolar ao barbeiro.
A
mãe calou-se, e nesta ocasião já a filha tinha uma das facas na mão.
Virgem
Maria, suspendei o braço dessa filha que vai matar a sua mãe!
Maria
José ergue o braço e dá uma facada no lado direito do peito daquela que lhe
dera o ser.
A
infeliz vê-se ferida — dá um grito, ninguém a ouve, a matadora fica-se como
espantada e com o braço erguido diante da sua mãe que já lutava com os arrancos
da morte.
Matilde
umas vezes de joelhos, outras encostada, já com o suor da morte gota a gota
pelo rosto abaixo disse estas tristes palavras a sua filha:
—
Maria, por que me matas? Maria minha filha, tiveste coração de enterrar uma
faca no peito da tua mãe! Tiveste coração de rasgar aquelas entranhas que te
geraram! Maria, por que me matas? Que mal te fiz eu, minha filha, para me dares
esta facada por onde me foge a vida? E se tinhas tenções de me matar, por que
me não mandaste confessar, ou ao menos fazer o ato de contrição? Ah Maria,
Maria, que tens de dar contas a Deus pela minha e pela tua alma!
Ia
para ajoelhar-se diante de uma velha cruz que estava à cabeceira da cama quando
Maria José lhe deu outra facada no pescoço. A desgraçada ainda disse:
—
Meu Pai do Céu… perdoai-me. —E morreu.
Cobre-te
de luto, ó natureza! Chora no Céu Virgem Maria que também fostes mãe carinhosa!
Chorai aves do ar que criais os vossos filhos debaixo das vossas asas! Chorai
que aí caiu uma boa mãe morta com duas facadas aos pés de uma filha já
condenada!
Depois
de morta a sua mãe, Maria José, com a maior presença de espírito e ânimo de
carrasco, com a mesma faca começou a cortar-lhe a cabeça, e vendo que não podia
arredondar o osso, foi cortar com segunda faca, e como ainda não pudesse,
começou a dar-lhe golpes de machada, até que de todo lhe despegou a cabeça do
pescoço. Depois cortou-lhe as orelhas e o nariz e os beiços e deu-lhe mais de
vinte golpes na cara, e queimou-lhe o cabelo. Depois levantou um tijolo do lar
e enterrou os pedaços da cara e da cabeça.
Depois
cortou-lhe as pernas e as mãos. E à noite embuçou-se num capote e pegou no
tronco da mãe e foi pô-lo nas obras de Santa Engrácia. Voltou a casa, pegou nas
pernas e nas mãos e foi pô-las na travessa das Molecas. E depois, voltando para
casa, pôs-se a lavar a roupa ensanguentada da mãe e deitou-se nos mesmos lençóis
onde a sua mãe dormia com ela dois dias antes e com a cabeça dessa mesma mãe
enterrada aos pés da cama. No dia seguinte, saiu de casa e foi-se pôr a ver o
corpo e as pernas da sua mãe entre aquela multidão de pessoas que lastimavam
aquele acontecimento. Aconteceu estar aí o mesmo regedor a quem ela pedira que
mandasse meter a sua mãe no hospital dos doidos. O que o regedor, por uma
inspiração do céu, mandou prender aquela mulher, e levando-a a casa passaram a
perguntar-lhe pela sua mãe, e ela respondia que não sabia. Mas no quintal da
mesma casa estavam a enxugar algumas roupas tintas de sangue. O regedor,
escavando no lar, achou a cabeça e os pedaços de cara — perguntou a Maria José
se conhecia aquela cabeça, e ela respondeu, comendo melancia com pão:
—
Conheço, é da minha mãe!!
Passou-se
a um processo, e a ré foi condenada no dia 5 de novembro a sofrer morte natural
para sempre na forca, que se há de levantar no campo de Santa Clara, passando
por aqueles lugares onde foi pôr os pedaços do corpo da sua mãe. Aqui tendes —
ó povos, o maior crime que viu o mundo, praticado em Lisboa no ano de 1848!
Estes
atentados contra Deus, esta guerra de irmãos com irmãos, estes acontecimentos
de filhos matarem pais, e esses sinais que nos aparecem no céu, tudo indica que
o fim do mundo está chegado.
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