A APARIÇÃO NO NAVIO - Narrativa Clássica Verídica Sobrenatural - Anônimo islandês do séc. XIX

 



A APARIÇÃO NO NAVIO

Anônimo islandês do séc. XIX

Tradução de Magnus Söndhal

(1865-1921)

 

Robert Bruce nasceu na aldeia do Torbay, no Sul da Inglaterra, filho de pais pobres, mas avós fidalgos. Dedicou-se à vida marítima. Passa-se, o que se segue, em 1828. Tinha ele, então, trinta anos. Era piloto do um grande navio mercante, que viajava entre Liverpool e St. John, em New-Brunswick, na América.

Em caminho para o leste, perto de Newfoundland, já com quase seis semanas de navegação, o piloto e o comandante estavam, ao meio-dia, observando a altura, e desceram juntos para calcular a distância percorrida nas últimas 24 horas. Numa repartição da popa estava o gabinete do piloto e, perto da porta da cabine estava o piloto, junto a uma mesa, mergulhado em seus cálculos.

Não prestou atenção ao comandante, julgando que este estivesse numa saleta próxima. Por isso, disse ele, em alta voz, mas sem olhar:

— Pelo que calculo, a distância é esta. Estará correta? Qual é a sua opinião?

 Ninguém respondeu. Perguntou de novo o olhou pela porta. Julgou ver o comandante sentado, junto a uma mesa, na saleta, e escrevendo na lousa. Mas, no entanto, ainda não obtivera resposta.

Levantou-se, foi à porta, e, então, o que estava na saleta levantou a cabeça e encarou o piloto. Era um homem a quem nunca vira!

Bruce não era nenhum medroso; mas o desconhecido encarava-o calado, e o piloto ficou certíssimo de quo jamais tinha visto aquele homem. Apoderou-se dele, então, tal pânico, que não pôde se conter.  Em vez de ficar a pedir explicações ao hospede intruso, correu num desespero mortal em busca do comandante.

 —Bruce! — disse este. —Que tem, homem?

—O que tenho? Quem é que está sentado na saleta, junto à sua mesa?

— Ninguém, que ou saiba.

— Pois um desconhecido lá está, sem dúvida alguma.

 — Um desconhecido? Você não está em seu juízo, Bruce. Provavelmente ora o segundo piloto. Quem mais entraria lá sem ordem?

— Mas quem é aquele que estava sentado à sua cadeira, voltava a cara para a porta, e escrevia na sua lousa? Além disso, ele olhou bem para mim, e eu nunca em minha vida encarei melhor homem algum!

 — Aquele? Quem, pois?

— Sabe Deus quem. Eu não sei quem é. Vi um homem a quem nunca tinha visto.

— Está louco, Bruce!  Um homem desconhecido!  E nós que estamos em alto mar há mais de cinco semanas!

— Bem o sei, capitão. Mas, ainda assim, eu o vi.

— Pois vá, então. Vá ver quem é.

O piloto hesitava.

—Até hoje — disse —, não tenho acreditado em almas do outro mundo, mas, se devo dizer-lhe a verdade, não me animo bem a entrar lá sozinho.

— Que loucura! Vá imediatamente, para que não sirva do caçoada a toda a tripulação.

Bruce mudava de cores.

— Espero, capitão que concorde em que, até hoje, não tenho sido desobediente. Mas, se não o contrariasse, eu lhe pediria que  fôssemos juntos.

Foi, então, o capitão e o piloto o seguiu.

Ninguém estava na saleta, nem no gabinete.

— Eis aí, Bruce. Não lhe disse que você estava com a razão perturbada?

— É fácil falar assim, capitão. Que eu tenha pouca esperança de retornar à pátria se não digo a verdade! Vi um homem sentado junto à mesa, escrevendo na sua lousa.

 — Escrevendo na pedra!  Então, devemos ver o que ele escreveu — disse o comandante, tomando a lousa.

—Meu Deus, o que é isto?!  Não foi você, Bruce, que escreveu?

 O piloto tomou a pedra o olhou. Lá estavam escritas, com clareza, estas palavras:

“Rumem para o noroeste.”

—Está zombando de mim? — disse o capitão, zangando-se.

— Sabe Aquele que tudo sabe — disse o piloto — que eu não sei a razão de tudo isto mais que o senhor, capitão. Disse-lhe apenas o que aconteceu.

O capitão sentou-se com lousa na mão, junto à mesa, e ficou pensativo.  Por fim, virou a lousa e a apresentou ao piloto, dizendo, com mau humor:

— Escreva: “Rumem para o noroeste”!

O piloto obedeceu.

O capitão examinou com cuidado a letra de um e outro lado da lousa. Em seguida, mandou chamar o segundo piloto, para fazer o mesmo; enfim, toda a tripulação. Mas, entre essas diversas escritas, nenhuma se parecia, absolutamente, com a letra do lado inverso.

Depois que todos se haviam retirado, o capitão ficou outra vez pensativo e, por fim exclamou:

—Será possível que alguém tenha podido esconder-se, por tanto tempo, neste navio, sem ser descoberto? É preciso revistar todos os cantos do navio.

A ordem foi dada e fez-se a revista com o máximo cuidado e curiosidade. Mas não se encontrou criatura viva, além da própria tripulação.

 — Eis aí, Bruce — disse o comandante, depois de feita a busca. — O que diz disto?

— Eu não sei, capitão, o que dizer. Eu vi o homem escrever. O senhor viu a letra. Alguma coisa é.

 — Assim parece!... O vento é favorável. Estou com vontade de seguir para noroeste e ver o que acontece.

 — Em seu lugar, eu faria o mesmo. Seja o que for que suceda, não há outro inconveniente, além de poucas horas de atraso.

— Pois bem, experimentemos. Diga ao homem do leme que dirija para noroeste.

E, acrescentou, quando o piloto se levantou:

— Mande um homem ficar de observação, alguém de confiança, no cesto de gávea.

Assim se fez.

Ao anoitecer, o vigia gritou que uma grande geleira se achava em direção à proa, e dizia ver um navio bem junto a ela. Quando mais próximos, viu o comandante, com seu binóculo, que era um corpo de navio cuja mastreação fora varrida por alguma tempestade, e que estava preso no gelo. Viu, também, algum movimento na coberta. Chegando a uma pequena distância, foram mandados botes do navio para salvar os náufragos.

Era um navio de passageiros do Quebec, que ia para Liverpool. Ficara preso no gelo, que já começava a quebrar-se, e os passageiros tinham-se visto, já durante semanas inteiras, ali, entre o mar e a morte. Já se desenganavam de obter auxílio, e tanto mais gratos ficavam quanto mais inesperado era o socorro. Os náufragos foram, pouco a pouco, levados para o navio mercante.

Quando veio o terceiro bote, e a gente dele era, com dificuldade, posta para o navio, de tão fraca estava, o piloto reparou num passageiro daquele grupo, e tomou-se de admiração o espanto, quando o encarou. Era o mesmo rosto do que mirara três a quatro horas antes, perto da mesa do capitão!

 A princípio, procurou convencer-se do contrário, julgando aquilo uma ilusão. Mas, quanto mais o observava, tanto menos duvidava de que aquele era mesmo o homem. Não era só o rosto, mas também o desenvolvimento físico e o vestuário que combinavam perfeitamente. Logo que dispensaram aos náufragos os cuidados necessários, aquecendo-os e alimentando-os, e que o navio se pôs, novamente, em rumo certo, o piloto chamou o comandante em particular e disse:

— Parece não ter sido nenhum espírito ou ente sobrenatural que eu vi hoje. Foi um homem vivo.

— Um homem vivo? Que quer dizer?

— Quero dizer que um dos náufragos é perfeitamente o homem que vi hoje escrevendo na sua lousa. Estou pronto a jurá-lo perante a Justiça.

— Cada vez mais isto tudo me parece incompreensíve. — disse o comandante. — Procuremos o homem.

Encontraram-no a conversar com o comandante dos náufragos. E estes dois vieram ao seu encontro, e em belas e sinceras frases, agradeceram o presente da vida, tendo-os salvo da possível morte pelo frio o pela fome. O comandante respondeu, dizendo que não fizera senão o que eles também teriam feito em circunstâncias análogas. Em seguida, pediu que os acompanhassem até o seu gabinete. Ali chegando, voltou-se para o passageiro e lhe disse

— Espero que não julgue que eu esteja a divertir-me. Desejaria que fizesse o favor de escrever algumas palavras nesta pedra.

Isto dito, entregou-lhe a lousa, virada para o lado em que não estava a frase misteriosa.

— Como quiser — respondeu o homem. — Mas o que quer que eu escreva?

 —Basta escrever duas ou três palavras. Escreva, por exemplo: “Rumem para o noroeste”.

Era fácil notar que o homem achou a frase esquisita, mas fez, sorrindo, o que lhe o comandante lhe pedira.

O comandante olhou bom para o que ele tinha escrito; em seguida, voltou-se para outro lado, com a lousa, e virou-a, de modo que a escrita anterior ficasse para cima.

— E diz que esta é sua letra?

— Não necessito dizê-lo, pois que o senhor me viu escrevendo.

— Esta? — perguntou o comandante, voltando a lousa para o outro lado.

O homem caiu das nuvens. Ele olhava estupefato as frases de um e outro lado, alternativamente. Por fim, disse:

— Que significa isto? Eu não escrevi senão de um lado. Quem escreveu do outro?

 —Não está ao meu alcance responder-lhe — disse o comandante.  — O meu piloto diz tê-lo visto ao meio-dia, hoje, sentado junto desta mesa, escrevendo isto.

O comandante dos náufragos e o passageiro olharam-se atônitos. Em seguida perguntou aquele:

— O senhor não sonhou o que escrevia nesta lousa?

— Não; não me recordo de tal coisa!

— Já que o Sr. fala em sonhos — disse o comandante do navio —, informe-me do que fazia este homem ao meio-dia.

— Isto tudo é muito singular — respondeu o comandante dos náufragos — e eu tinha tenção do tudo narrar, logo que estivéssemos em sossego. Este homem (e apontou para o passageiro) sentiu-se com muito abatimento de torpor, hoje, ao meio-dia, e dormiu muito pesadamente, segundo as aparências. No fim do uma hora, pouco mais ou menos, despertou e me disse:

“—Hoje seremos salvos!

“Perguntei-lhe por que assim julgava; disse-me que sonhara estar em um navio mercante, de três mastros, e que este viria a caminho para nos socorrer.  Ele descreveu minuciosamente o exterior do navio; e o Sr. pode imaginar a nossa surpresa ao ver o seu navio combinando perfeitamente com a sua descrição. Nós não tínhamos prestado muita atenção à sua profecia, nem podíamos compreender a sua realização. No entanto, deu-nos esperanças, porque, nos transes da aflição, a esperança é a única cousa que sempre nos resta. Agora não me resta a menor dúvida de que tenha sido tudo regido por uma Providência cheia de amor. A Ela sejam dados louvores pela sua misericórdia!”

— Não há dúvida — respondeu o comandante do navio — que é a esta escrita que todos devem a vida, seja qual for a sua origem. Ela foi a única causa de eu mudar o rumo do navio para noroeste. Mas você dizia — continuou, voltando-se para o passageiro — que não sonhou ter escrito neste quadro?

— Não; não me lembro disso. Entrou-me na cabeça de um modo esquisito que o navio mercante, que no sonho vi, vinha nos salvar; mas qual a razão de tal convicção, não sei. Há ainda uma coisa interessante: tudo aqui a bordo me parece familiar e há muito conhecido, apesar de estar bem certo de jamais em minha vida ter aqui penetrado. Todos estes fatos são para mim um verdadeiro enigma.  O que o seu piloto viu?

Bruce contou-lhe o que se tinha passado, e todos ficaram certos de que a Providência tinha miraculosamente intervindo para salvar os náufragos das agonias e da morte.

 

Fonte: “Gazeta de Notícias” (RJ), edição de 31 de maio de 1889.


Comentários

  1. tou comentando agora pelo navegador da smart tv...fica show o site na tv

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  2. Nossa! E um relato de experiencia fora do corpo! Observe que o cara nao esteve lucido na projecao e achou que foi sonho e ajuda da Providencia.Esse relato ou narrativa nos mostra que a nossa consciencia na vigilia ou o ego e apenas a ponta do iceberg; nosssa comsciencia e muito maior.O ego nas horas da vigilia em momentos de apuros e ajudado por uma parte do eu que fica no superconsciente ou na quarta dimensao ou Crosta dos espiritas.Nao necessariamente no Astral mas essas nomenclaturas sao so pro estudante de ocultismo assimilar.O certo seria dizer outras dimensoes hiperfisicas.O estilo do texto e muito bonito.Comentei tambem pela smart tv e agora pelo android do celular.Na smart tv o site fica muito bonito e melhor de ler.Show de bola.ass.Roger.

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